Minha gratidão às acadêmicas e acadêmicos que com sua generosidade me elegeram. Sinto-me honrado em juntar-me aos membros desta instituição que, ao longo de cento e vinte anos, vem consolidando entre suas melhores tradições a da criatividade e da inovação. Expoentes dos mais variados campos têm demonstrado nesta Academia sem academicismo, independente e fiadora de independência, seu compromisso com a palavra.
Nem todos os que me precederam na Cadeira 22 tiveram na literatura o reconhecimento principal de seu trabalho. Mas todos foram homens de cultura que externaram seu amor pelas letras.
O patrono, José Bonifácio, o Moço, renomado professor da Faculdade de Direito do Recife e da Faculdade de Direito de São Paulo, foi expressão romântica do que havia de mais avançado em seu tempo.
Em meados do século dezenove, escrevia poemas de amor não correspondido, de nostalgia da infância e de sonhos de juventude; ao mesmo tempo, de cunho social, nos quais avulta o tema da escravidão.
Mas foi no Parlamento como orador que mais se destacou, na defesa das causas abolicionista e da ampliação do sufrágio eleitoral.
Luís Viana Filho, terceiro ocupante da cadeira 22, narra a impressão deixada por esse sobrinho do Patriarca da Independência em Medeiros e Albuquerque, o fundador da cadeira, num dia de 1886. Bonifácio, no Senado, enlevava a plateia com a defesa do abolicionismo. Quando terminou, a palidez de seu rosto não ofuscava o “olhar rutilante”. Doente, viera contra recomendação médica e dias depois morreria. O episódio faria Machado de Assis, em versos por ocasião de sua morte, dizer que Bonifácio caíra “não ao peso dos anos, mas ao peso do... amor à ... pátria amada”.
Luís Viana Filho atribui a escolha do patrono da cadeira 22 à impressão deixada em Medeiros e Albuquerque por essa figura do cidadão indiferente ao perigo e fiel a seu ideal.
De Medeiros se pode discordar, como muitos o fizeram em seu tempo. Porém ninguém dirá que esse pernambucano de uma inteligência aguda, irreverente e destemida não primava pelo espírito livre que deve cercar o trabalho literário. Exerceu altos cargos públicos, foi parlamentar e jornalista de destaque. Publicou ficção, poesia e crítica literária, além de numerosos discursos e conferências. No ensaio deixou a marca de uma escrita límpida, enérgica e muitas vezes irônica.
Prova da diversidade desta Academia, aqui conviveu com monarquistas, sendo ativista republicano. Com religiosos, fazendo a defesa do ateísmo. Com presidencialistas, advogando pelo parlamentarismo.
Em polêmica de 1928, critica o pressuposto de um autor inteligente para o mundo – tema ainda em voga entre criacionistas. Argumenta que, sendo Deus perfeito e completo, não teria razão para criar nada. E faz a mesma pergunta que li em Richard Dawkins: “quem criou Deus?”
Com vocação de inovador, se dependesse dele o português do Brasil teria abraçado ortografia exclusivamente fonética. Foi dos primeiros a divulgar Freud e a cultivar a literatura policial no Brasil, com o livro de contos Se eu fosse Sherlock Holmes, de 1932, onde cita Conan Doyle e Edgar Allan Poe.
Inovou igualmente ao propor em 1910 o uso na Academia do belo traje cerimonial, que, segundo se chegou a crer, poderia ter concorrido para seus galanteios parisienses dois anos depois.
Contudo, parece que não foi o fardão que lhe serviu para as conquistas amorosas, e sim a velha farda de coronel da Guarda Nacional francesa. Na parte de suas memórias relativa aos amores, conta que na Cidade Luz, durante a guerra, conseguiu licença para engalanar-se com a prestigiosa farda, de cinco galões dourados.
O amor e o sexo já habitavam sua poesia. Ouçamos seu testemunho: “Moço, escrevi as Canções da Decadência e os Pecados, livros em que há numerosos versos de uma sensualidade extrema, que frisa, às vezes, a obscenidade.” “Mas...”, confessará, “tudo aí era literatura.”
E, acrescento, grande literatura para a crítica de seu tempo, o que não foi confirmado com o decorrer dos anos. Embora Canções da decadência ainda esteja apontado como o livro que introduziu em 1889 o simbolismo no Brasil, poucos reconheceriam nele verdadeira afinidade espiritual com o movimento. Indicação de que a imortalidade nem sempre é condescendente.
Talvez mais pelos ataques à igreja do que pela ousadia sexual, suas memórias publicadas postumamente, Quando eu era vivo, ainda não sejam recomendáveis aos conventos de freiras, como observou. Quiçá haja semelhante ousadia atualmente na internet, e não com bilhetinhos bem estudados como os que o sedutor simpático deixava cair sobre o colo da mulher com quem trocava um olhar. A diferença básica é que, com uma nova consciência sobre as relações de gênero, a moral dos tempos não é mais nem menos rigorosa; é de outro rigor. Suas páginas sinceras e espirituosas de “Don Juan burocrático” – a definição é dele – revelam um trabalho metódico, ao qual não faltam estatísticas (quatrocentas e tantas mulheres num só ano).
Este colecionador frenético descobria gostos ou desejos de suas “caças” (termo dele) a partir das informações de um amigo detetive. Elas, “as pobrezinhas” – ele quem diz --, ficavam impressionadas, algo semelhante às cenas de Todos Dizem Eu Te Amo em que o personagem de Woody Allen monta em Veneza sua estratégia de sedução com o conhecimento de detalhes sobre a personagem de Julia Roberts. As táticas são muitas, e a elas não faltou o hipnotismo, tema caro a Medeiros e de livro que publicou em 1921.
Parecia ser rápido em tudo, da cama à escrivaninha, pois foi nesse mesmo período parisiense que publicou não só muitos artigos, mas também seu livro O Regime Presidencial no Brasil. Lançado em 1914, foi reeditado em 1932 com o título de Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil. Para ele, no regime presidencialista, se um presidente chegasse a ser processado pelo Congresso, não se lhe poderia infligir senão a pena da perda do cargo. “Assim, depois de... laborioso processo”, perturbador dos negócios públicos, “chegar-se-ia apenas ao que chega o regime parlamentar com um voto da Câmara.” “O regime presidencial”, além disso, teria trazido “uma corrupção moral inominável”. Seria “o regime das adesões e traições”, pelo interesse do parlamentar em se associar a um poder de duração fixa.
Crítico severo de Dom Pedro II e autor da letra do Hino da Proclamação da República, não hesita em elogiar o regime parlamentar do Império em defesa deste raciocínio. “No tempo do Império,” diz, “por ocasião de discutir-se a Abolição, houve o caso de um deputado mudar de partido. Um só! Em torno disso se fez um escândalo enorme.”
Argumentos defensáveis – convenhamos --, desde que consigamos abstrair-lhes questões conjunturais, interesses partidários e a qualidade dos parlamentos e dos presidentes em épocas específicas.
Evidentemente, o Brasil atravessa uma crise das mais graves e das mais sérias. O aspecto mais impressionante da situação é constituído pelas dificuldades econômicas e financeiras, resultado de um mal mais grave. As classes dirigentes e as classes médias não tiveram o preparo necessário para resolver os nossos problemas sociais, administrativos ou técnicos. Ao lembrarmos que os interesses ocasionais são, o mais das vezes, interesses pessoais, compreendemos facilmente como, aos poucos, se instalou o sistema essencialmente corruptor adotado hoje, por toda parte.
O que acabo de ler sobre a crise grave e séria não são palavras minhas nem de Medeiros e Albuquerque. São de seu sucessor na cadeira 22, o médico e cientista de projeção internacional Miguel Osório de Almeida. Pronunciadas em 1925, foram recolhidas em 1931 no livro A Vulgarização do saber. Nele Miguel Osório defende a “utilidade de por o grande público a par do movimento científico”, o que ele inaugurava no Brasil.
Nesse livro, um dos textos ilustrativos de sua sensibilidade para a dimensão humanista no tratamento dos temas científicos é o que tem por título “A necessidade de esquecer.” É possível traçar um paralelo entre esse ensaio e o conto “Funes, o Memorioso” de Borges. Para o autor argentino como para Miguel Osório, a memória completa é um obstáculo ao pensamento.
Os comentários de Miguel Osório poderiam na atualidade se aplicar à memória e à inteligência artificiais. Com a inundação de informações, são indispensáveis funções cada vez mais seletivas e o “poder de discernimento”. Na experiência científica -- dizia ele --, e em particular nas pesquisas que envolvem as memórias artificiais e as redes informatizadas de comunicação -- podemos dizer hoje --, o estudante se habitua a ver quais os pontos que – cito Miguel Osório -- “poderão ser esquecidos sem grandes prejuízos, porque ele saberá achá-los novamente quando deles necessitar.”
Seu arrazoado não seria contrário ao trabalho de arqueólogo próprio ao escritor que escava o que fora recalcado pelo tempo. A literatura poderá dar atenção, não ao acabado, mas ao inacabado ou parcial; não ao evidente e conhecido, mas ao silenciado, escondido ou ausente. Através da busca de um sentido a um só tempo preciso e incomum para as palavras, o escritor pode trazer à luz o que estava obscuro. O termo grego Aletheia, que, numa de suas acepções, poderia ser entendido como “verdade”, é a negação de Lethe (esquecimento).
O ensaio de Miguel Osório não é um manifesto por este esquecimento. É, sim, um libelo pelo juízo autônomo. Por isso não surpreende que se encaminhe para uma discussão sobre literatura. O autor batia-se com boas razões contra futuristas e passadistas. “Que resta, então?” se pergunta. “Restam”, responde com acerto, “os que são, eles próprios, homens conscientes de si mesmos, espíritos livres, que não admitem escola” e “procuram, em esforço penoso”, descobrir “o mundo que lhes é próprio.”
À época de A Vulgarização do Saber, Miguel Osório de Almeida já havia publicado outro livro de ensaios, Homens e Coisas de Ciência. Pensou em lançar os novos ensaios como “parte dois” deste último livro, de 1925, repetindo seu título. Não o fez por se dar conta de que agora passaria a tratar não só de homens. Um dos artigos até mesmo se intitulava: “As mulheres na ciência.”
O ensaio sobre Sophia Kavalewsky é também sobre literatura. Baseia-se em parte nas Recordações de Infância dessa matemática russa publicadas inicialmente como romance, com o próprio nome de Sophia modificado e o título de As irmãs Rajewsky. As primeiras “impressões sentimentais” de Sophia têm a ver com ninguém menos que Dostoievsky. Então diretor do jornal A Época, ele publica Aniúta, irmã de Sophia que procura se firmar como escritora. As duas e a mãe viajam a São Petersburgo. Ali, quando Sophia ouve a declaração de amor que Dostoievsky faz a Aniúta, sente-se desamparada, mesmo que a irmã não corresponda aos sentimentos do escritor. E, então, com 13 anos, toma a consciência de que o amara. Mais tarde, na Suécia, cultivaria a literatura ao lado dos trabalhos matemáticos. De vida amorosa tumultuada, seus últimos tempos foram de desilusão, como ocorrerá com as Almas sem abrigo do romance que Miguel Osório escrevia à época do lançamento de A vulgarização do saber e que viria a ser publicado dois anos depois.
Referindo-se a esse romance em seu discurso de posse na Academia em 1935, Miguel Osório explica que, cito: “enquanto no laboratório passava horas fazendo medidas rigorosas e complexas, … em casa deixava correr a pena em pálidas tentativas de exprimir as angústias de algumas almas sem abrigo. Quando tudo acabou, aos fisiologistas apresentei uma teoria matemática e físico-química da excitabilidade, aos amigos mostrei duas ou três centenas de páginas; à falta de melhor mereceriam elas o título de romance.” Fim de citação.
E se pergunta a que deve a honra de ocupar um lugar na Academia: “se ao romance que se encontra em toda obra de ciência, mesmo na mais severa e árida, se à ciência e experiência que se acham em todo romance ou obra de imaginação.”
Em seu discurso de posse como Presidente de outra Academia, a Academia Brasileira de Ciências, em 1929, destaca -- como Carlos, o personagem central de seu romance -- os obstáculos encontrados pelos que se dedicam à ciência pura. Carlos é matemático, e, como para Sophia, a literatura desempenha papel crucial em sua vida: desenvolve nele -- esclarece o narrador -- “o espírito crítico”, acirra seu talento e seus sentimentos, mas “não poucos conflitos nasceram desse estado de espírito”. Miguel Osório mostra, assim, que ela, a literatura, não é feita para apaziguar o espírito, mas para aguçá-lo. Não é feita – creio eu -- para opinar, expor demonstrações ou resolver problemas, o que cabe melhor noutras formas de expressão.
Luís Viana Filho também se dedicou à narrativa e à construção de personagens. Como o patrono da cadeira, esse político que veio a ocupar o governo da Bahia e a presidência do Senado, foi sensível à questão social e particularmente à situação do negro, havendo publicado em 1946 O Negro na Bahia, Um ensaio clássico sobre a escravidão. Mas, como contribuição intelectual, notabilizou-se como biógrafo.
Foram seis as biografias com títulos que indicavam o foco na “vida” dos biografados: por ordem cronológica, entre 1941 e 1984, A vida de Rui Barbosa, A vida de Joaquim Nabuco, do Barão do Rio Branco, de Machado de Assis, de José de Alencar e de Eça de Queirós.
O método de Luís Viana Filho é coerente com seu livro A Verdade na Biografia, de 1945. Nele discute as relações entre o romance, a biografia e a história. É inegável – penso -- a importância do personagem e de sua biografia no romance. São o ponto de partida de muitos escritores. É possível escrever romances fortes sem enredo. Mas serão obras frágeis as que não têm personagens marcantes.
Luís Viana Filho pondera, de forma apropriada, que “o biógrafo, a exemplo do historiador, e ao contrário do romancista”, deve “ter sempre os movimentos limitados pela preocupação da verdade, da exatidão e da justiça.” Entretanto, a biografia estaria passando a usar elementos frequentes no romance, embora não exclusivos dele: “a graça, a leveza, a elegância, a maneira de apresentar o assunto, atraindo o leitor para o desdobramento da narrativa.”
São observações que me convidam a acrescentar comentário sobre a relação do romance com a verdade e a história. Os romancistas podem alienar a verdade em troca de uma boa frase quando esta revela a verdade mais profunda da própria ficção. Se o poeta é um fingidor, imagine o ficcionista! Embora nesse trabalho de invenção possam ser incluídos registros e documentos, isso não é o cerne da obra de ficção. Seu compromisso não é com a conjuntura, dinâmica pela natureza; nem com a verdade factual, mutável com o surgimento de novas informações. É com a história não oficial, alternativa ou subterrânea e deve ir além da verdade e da realidade, sob pena de perder sua dimensão de fantasia, que traz em si forma peculiar de transmissão de conhecimento. Dois e dois nem sempre são quatro e não só por formarem o número da cadeira que comento.
O romance não tem necessariamente qualidades morais. E, para Luís Viana Filho, a biografia moderna ou romanceada, que ele pratica, não pretende tampouco “realizar obra de moral”. A sua finalidade seria proporcionar um retrato total do biografado em suas contradições e complexidade, sem se preocupar “com o resultado a que poderá chegar”. O que interessa é a sua humanidade. “E, porventura, não será essa ´humanidade´... o que busca fixar a biografia moderna?” Ele pergunta. Não é esse também, digo, o papel da ficção que ambicione ser mais que passatempo ou entretenimento?
Outro traço frisado por Luís Viana Filho é que “o autor estará sempre presente” na biografia, pois há “maneiras diferentes por que cada um de nós apreende um fato, ou julga certa individualidade.” Não posso negar que disso não escaparia sequer quem discursasse sobre seus antecessores numa cadeira da Academia. No caso do romance, mesmo quando o autor concebe, como julgo que deve ser, narradores diferentes de si; procura se distanciar de seu objeto; quando seus personagens não são unidimensionais e a narrativa abre perspectivas múltiplas e mesmo contrárias, a fabulação ou o mero recorte feito da realidade revelarão um ponto de vista da ficção.
A maneira como o biógrafo realizará sua biografia, conclui Luís Viana Filho, “eis a sua arte”.
Se a questão estética é fundamental para o poeta, para o romancista, assim como o foi para o biógrafo Luís Viana Filho, não será menos para o cirurgião plástico. Durante a adolescência, Ivo Pitanguy sentia que seu caminho seria possivelmente a arte e a poesia. Não se enganou: sua vida foi um longo poema narrativo.
Em seu discurso de posse nesta Academia declara “só ser possível atingir a verdade a partir do belo”. Segundo diz em seu último livro de memórias, Viver vale a pena, o belo forma uma trindade “junto com o bem e a verdade”. Cita o Fedro, de Platão: “em todas as coisas a medida e a proporção constituem a beleza e a virtude”. E arremata: “o belo é associado ao bem e ao que é bom”.
Pitanguy me dá, assim, a oportunidade de encerrar levantando a questão da forma, que nunca é forma sozinha, pois não está dissociada de intenção e conteúdo. Esteta, não se fixou em padrões de beleza, nem jamais acreditou que a beleza se esgotasse nela mesma. Sustenta que “o que há de mais extraordinário e belo no ser humano... é sua diversidade... estética.” Na sua visão, aprimorar, como um escultor, as formas do corpo serve ao propósito de aliviar o sofrimento, a vergonha e a sensação de incômodo, qualquer que seja a classe social dos pacientes; acima de tudo, de “devolver dignidade”.
O tema da beleza o conduziu às artes em geral, nas quais navegou com conhecimento. Sua intimidade com as artes plásticas, da Renascença ao contemporâneo, o levou a presidir o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 1974 e 1985.
Estive com ele uma única vez, tempo suficiente para comprovar sua conhecida afabilidade e seu gosto pela literatura. Recitava nos originais em francês e alemão passagens de As Flores do Mal e do Fausto, entre tantos outros textos de uma longa lista de autores preferidos. É expressão de sua sensibilidade e de sua paixão pelas letras, que, quando conheceu sua mulher, Marilu, ela o tenha surpreendido, segundo afirma, “não só por sua beleza”, “mas por seu interesse em poesia e literatura”.
Disse que sua vida é um longo poema narrativo. Corrijo: daria um filme.
Talvez filme inspirado em histórias que ele mesmo contava, pois era também contador de histórias – e dos bons! Num dos começos possíveis a câmera foca no garoto de seis anos enrolado numa jiboia. Falo daquela jiboia que o encarava numa estrada de terra nos limites da cidade das suas Minas Gerais. Chiou atrás dele quando ele tentou acelerar o passo e finalmente tocou seus sapatos. Por instinto, Pitanguy esticou o braço e fez carinho na cabeça da cobra. Ela estremeceu, porque, conta ele, “em toda sua existência selvagem provavelmente jamais fora alvo de uma demonstração de afeto”. A cobra o seguiu, tornaram-se amigos e essa amizade lhe serviu até para que ele pudesse se acomodar com o máximo conforto no bonde superlotado. Talvez na sua compreensão dos animais estivesse o germe de seu futuro projeto de preservação da floresta tropical e da criação de um santuário de biodiversidade na sua Ilha dos Porcos Grande.
Uma cena do filme o mostraria no Catetinho, ao lado de Juscelino, à época da construção de Brasília. Outra exibiria sua entrada na Avenida no carro da Caprichosos de Pilares ao som do samba-enredo em sua homenagem.
Num romance, porém, seria onde melhor poderíamos analisar as adversidades e o sacrifício que teve que enfrentar, bem como seu compromisso social que cresceu com o contato com pessoas simples. O objeto por excelência do romance é a vida humana, e – recordemos – o título do último livro de Pitanguy é Viver vale a pena.
Um capítulo seria o do pioneiro. Quando se formou em medicina, não havia ainda a especialidade de cirurgia plástica no Brasil. Mesmo após aprimorar-se no exterior, foi só vencendo preconceitos que conseguiu se firmar.
Desde cedo realizava incursões em favelas, que lhe ensinaram, segundo confessa, sobre solidariedade. Continuou atendendo na Santa Casa mesmo após o êxito de sua Clínica Ivo Pitanguy. Quando do incêndio em Niterói do Gran Circo Norte-Americano em 1961, deu assistência aos queimados por mais de seis meses. Depois seguiu tratando sequelas da grande quantidade de vítimas.
Exemplo de ética e compromisso. Prova acabada de uma de suas reflexões: “Todo fenômeno de criatividade surge de uma dificuldade.”
Em vez de fazer desfilar as centenas de famosas e famosos que ele tratou, dou voz a uma delas, uma escritora aclamada mundialmente: Pitanguy, “eu invejo você, eu também queria restaurar as almas através do corpo. Não é isso que você faz?” Clarice Lispector sofreu um grave acidente em 1967 que quase levou sua vida. Sua mão parecia uma garra. Pitanguy lhe fez sucessivas cirurgias, sem nada cobrar, segundo o relato da acadêmica Nélida Piñon. Sem falar de que metade do rosto do acadêmico Alberto da Costa e Silva foi restaurado pelo grande cirurgião.
Por último uma faceta a não ser esquecida: Pitanguy, o professor na PUC e no Instituto Ivo Pitanguy. Este Instituto abrigou alunos de todos os continentes e consolidou o Brasil como centro de excelência na difusão do conhecimento sobre cirurgia plástica. Lemos na introdução de Viver vale a pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento.”
Pitanguy foi, portanto, desbravador e inventor, a exemplo do acadêmico Santos Dumont; da estatura de predecessores no seu campo da medicina, como outro acadêmico, Osvaldo Cruz.
Em suma, a preocupação estética perpassa a cadeira 22, nunca com a visão estreita da busca do belo pelo belo; sempre procurando fazer do belo instrumento da verdade
Nem todos os meus antecessores tiveram obra engajada no sentido estrito, mas todos foram inconformistas. Seus trabalhos não perderam de vista o compromisso social ou político, o que não deveria jamais faltar num país com alarmantes índices de educação e de pobreza e com desigualdades sociais, raciais e regionais extremas.
Que me permitam, antes de finalizar, prestar homenagem à minha terra e à minha família. Tenho orgulho do solo potiguar, onde nasceram Nísia Floresta, precursora do feminismo, e Câmara Cascudo, um dos maiores estudiosos da cultura brasileira. Como humilde gesto simbólico de reconhecimento ao Rio Grande do Norte, quando eu me juntar à poeira de estrelas peço que encaminhem este fardão para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, academia aberta à presença feminina desde sua fundação por Câmara Cascudo em 1936.
Em Mossoró, a segunda cidade a libertar os escravos no Brasil, aprendi desde criança a importância do compromisso com a justiça social. Cidade palco do motim exitoso das mulheres contra o alistamento dos maridos e filhos para a guerra do Paraguai, que levantou a bandeira do voto feminino pela atitude audaz da professora natalense Celina Guimarães Viana, conscientizou-me para os direitos das mulheres.
Um grão de sal do Rio Mossoró aguça o sabor dessas tradições: as histórias da resistência a Lampião, que não alimentaram minha ficção, mas sacudiram minha imaginação infantil. Na fotografia amarelada, meu pai, João Almino de Souza, aos vinte e poucos anos, posava ao lado dos colegas de trincheira com o fuzil do qual jamais saiu tiro. Ouvi relatos de minha saudosa mãe, Natália de Queiroz e Souza, sobre a fuga num trem de mulheres para Areia Branca.
Através dela me ligo ao sol escaldante e à secura do sertão do Ceará; a Iracema, Ereré e à fazenda Benfica, onde nasceu e cresceu. A Fortaleza, para onde nos levou quando, aos meus doze anos, meu pai morreu e meu irmão mais velho, Pedro Almino, assumiu para mim o papel de um segundo pai.
Ali ouvi falar de um sonho do futuro, Brasília, meu território ficcional demarcado no cruzamento dos brasis pela ânsia do moderno, os processos de desmodernização e sobretudo pelas tragédias e esperanças do homem comum.
Meu pai foi o exemplo mais sublime. Autodidata, era leitor assíduo de história do Brasil. Sua biblioteca me apresentou os acadêmicos José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, bem como um membro incontestável da cadeira 41, Graciliano Ramos.
Tive a sorte de viver cercado de mulheres, minhas irmãs Salete, que me ensinou a ler, Fátima, Bernadete e Maria José, esta última já falecida. E a sorte continua. Bia Wouk, companheira de 37 anos, artista plástica de enorme talento, bela que diariamente cria beleza e amante da literatura, sempre me fez ver e ler mais. Nossas duas filhas, a arquiteta e artista Letícia Wouk Almino e a escritora, tradutora e crítica de arte Elisa Wouk Almino são a fonte de nossas mais completas alegrias.
Não citarei nominalmente os muitos amigos na Academia Brasileira de Letras. Mas peço licença para fazer uma exceção, a do primeiro amigo entre os que estão nesta Casa de Machado de Assis. Conheci o filósofo Sergio Paulo Rouanet quando nós dois frequentávamos juntos outra Casa, a de Rio Branco. Foi há mais de 43 anos, ele como Conselheiro da carreira diplomática e meu chefe na Divisão de Política Comercial do Itamaraty. Não esquecerei jamais sua benevolência em acolher um jovem aprendiz que com ele dialogava nas tardes do Logaritmo Amarelo, seu sítio nos arredores de Brasília. Um privilégio os laços de afeição e amizade com ele e com Barbara, que se estreitaram ainda mais quando me tornei padrinho de batismo da filha do casal, Adriana, hoje também grande amiga minha e de Bia. O pensamento iluminista e luminoso de Sergio Paulo Rouanet continuará tanto mais atual quanto mais derrotado esteja pelo progresso do irracionalismo, da intolerância e dos nacionalismos estreitos.
Não posso terminar sem que mais uma mulher entre neste discurso. Agradeço ao Presidente Domício Proença Filho por ter escolhido Ana Maria Machado para me receber. Desde que a conheci em 1982, foi crescente minha admiração pela pessoa cativante e corajosa e pela grande escritora que é, ao brindar um público dentro e fora do Brasil com suas bem construídas invenções de ficcionista, assim como com um fino trabalho ensaístico sobre literatura, leitura e outros temas culturais. Sensível aos novos tempos e magnânima com as gerações mais jovens, Ana Maria Machado, uma das duas mulheres que presidiram esta Casa, leva para a literatura sua solidez e coerência.
Tudo isso é ao mesmo tempo sonho e realidade demais para um modesto ficcionista.