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Gonçalves Dias

CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
                              Coimbra, julho, 1843.

 

CANÇÃO DO TAMOIO
        I

 Não chores, meu filho;
 Não chores, que a vida
 É luta renhida:
 Viver é lutar.
 A vida é combate,
 Que os fracos abate,
 Que os fortes, os bravos
 Só pode exaltar.

         II

 Um dia vivemos!
 O homem que é forte
 Não teme da morte;
 Só teme fugir;
 No arco que entesa
 Tem certa uma presa,
 Quer seja tapuia,
 Condor ou tapir.

         III

 O forte, o cobarde
 Seus feitos inveja
 De o ver na peleja
 Garboso e feroz;
 E os tímidos velhos
 Nos graves conselhos,
 Curvadas as frontes,
 Escutam-lhe a voz!

        IV

 Domina, se vive;
 Se morre, descansa
 Dos seus na lembrança,
 Na voz do porvir.
 Não cures da vida!
 Sê bravo, sê forte!
 Não fujas da morte,
 Que a morte há de vir!

         V

 E pois que és meu filho,
 Meus brios reveste;
 Tamoio nasceste,
 Valente serás.
 Sê duro guerreiro,
 Robusto, fragueiro,
 Brasão dos tamoios
 Na guerra e na paz.

        VI

 Teu grito de guerra
 Retumbe aos ouvidos
 D’imigos transidos
 Por vil comoção;
 E tremam d’ouvi-lo
 Pior que o sibilo
 Das setas ligeiras,
 Pior que o trovão.

         VII

 E a mãe nessas tabas,
 Querendo calados
 Os filhos criados
 Na lei do terror;
 Teu nome lhes diga,
 Que a gente inimiga
 Talvez não escute
 Sem pranto, sem dor!

         VIII

 Porém se a fortuna,
 Traindo teus passos,
 Te arroja nos laços
 Do inimigo falaz!
 Na última hora
 Teus feitos memora,
 Tranquilo nos gestos,
 Impávido, audaz.

         IX

 E cai como o tronco
 Do raio tocado,
 Partido, rojado
 Por larga extensão;
 Assim morre o forte!
 No passo da morte
 Triunfa, conquista
 Mais alto brasão.

         X

 As armas ensaia,
 Penetra na vida:
 Pesada ou querida,
 Viver é lutar.
 Se o duro combate
 Os fracos abate,
 Aos fortes, aos bravos,
 Só pode exaltar.

 

O CANTO DO PIAGA

            I

Ó guerreiros da Taba sagrada,
Ó guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó guerreiros, meus cantos ouvi. 
    
Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar. 

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi! 

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão. 

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti. 

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi! 

            II

Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar. 

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Sons estrídulos torva soltar? 

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer? 

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?! 

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá! 

            III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm. 

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é so! 

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão. 

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar? 

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher! 

Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás. 

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser? 

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão. 

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

 

  LEITO DE FOLHAS VERDES

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo 
À voz do meu amor moves teus passos? 
Da noite a viração, movendo as folhas, 
Já nos cimos do bosque rumoreja. 

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores. 

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala. 

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida! 

A flor que desabrocha ao romper d’alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida. 

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua! 

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazoia na cinta me apertaram. 

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma,
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala! 

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes 
À voz do meu amor, que em vão te chama! 
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil 
A brisa da manhã sacuda as folhas!

 

              I-JUCA-PIRAMA

                        I

No meio das tabas de amenos verdores, 
Cercadas de troncos - cobertos de flores, 
Alteiam-se os tetos d’altiva nação; 
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, 
Temíveis na guerra, que em densas coortes 
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória, 
Já prélios incitam, já cantam vitória, 
Já meigos atendem à voz do cantor: 
São todos Timbiras, guerreiros valentes! 
Seu nome lá voa na boca das gentes, 
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, 
As armas quebrando, lançando-as ao rio, 
O incenso aspiraram dos seus maracás: 
Medrosos das guerras que os fortes acendem, 
Custosos tributos ignavos lá rendem, 
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro, 
Onde ora se aduna o concílio guerreiro 
Da tribo senhora, das tribos servis: 
Os velhos sentados praticam d’outrora, 
E os moços inquietos, que a festa enamora, 
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto, 
Sua tribo não diz: - de um povo remoto 
Descende por certo - dum povo gentil; 
Assim lá na Grécia ao escravo insulano 
Tornavam distinto do vil muçulmano 
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro 
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro 
Assola-se o teto, que o teve em prisão; 
Convidam-se as tribos dos seus arredores, 
Cuidosos se incubem do vaso das cores, 
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira 
Entesa-se a corda da embira ligeira, 
Adorna-se a maça com penas gentis: 
A custo, entre as vagas do povo da aldeia 
Caminha o Timbira, que a turba rodeia, 
Garboso nas plumas de vário matiz.

Em tanto as mulheres com leda trigança, 
Afeitas ao rito da bárbara usança, 
O índio já querem cativo acabar: 
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, 
Brilhante enduape no corpo lhe cingem, 
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

                    II

Em fundos vasos d’alvacenta argila 
    Ferve o cauim; 
Enchem-se as copas, o prazer começa, 
    Reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam, 
    Sentado está, 
O prisioneiro, que outro sol no ocaso 
    Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo, 
    Mostra-lhe o fim 
Da vida escura, que será mais breve 
    Do que o festim!

Contudo os olhos d’ignóbil pranto 
    Secos estão; 
Mudos os lábios não descerram queixas 
    Do coração.

Mas um martírio, que encobrir não pode, 
    Em rugas faz 
A mentirosa placidez do rosto 
    Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta 
    No passo horrendo? 
Honra das tabas que nascer te viram, 
    Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes 
    Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
    Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, 
    Lá murcha e pende: 
Somente ao tronco, que devassa os ares, 
    O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse, 
    Como viveu; 
E o caçador que o avistou prostrado 
    Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes 
    Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 
    Da fria morte.

                  III

Em larga roda de novéis guerreiros 
Ledo caminha o festival Timbira, 
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas, 
O enduape na cinta se embalança, 
Na destra mão sopesa a iverapeme, 
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo 
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, 
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, 
Como que por feitiço não sabido 
Encantadas ali as almas grandes 
Dos vencidos Tapuias, inda chorem 
Serem glória e brasão d’imigos feros.

“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro; 
 “Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, 
 As nossas matas devassaste ousado, 
 Morrerás morte vil da mão de um forte.”

Vem a terreiro o mísero contrário; 
Do colo à cinta a muçurana desce: 
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,  
Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa 
O índio, que ao redor derrama os olhos, 
Com triste voz que os ânimos comove.

                IV

Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas, 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante, 
Que agora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do Norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas, 
De tribos imigas, 
E as duras fadigas 
Da guerra provei; 
Nas ondas mendaces 
Senti pelas faces 
Os silvos fugaces 
Dos ventos que amei.

Andei longes terras 
Lidei cruas guerras, 
Vaguei pelas serras 
Dos vis Aimoréis; 
Vi lutas de bravos, 
Vi fortes - escravos! 
De estranhos ignavos 
Calcados aos pés.

E os campos talados, 
E os arcos quebrados, 
E os piagas coitados 
Já sem maracás; 
E os meigos cantores, 
Servindo a senhores, 
Que vinham traidores, 
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo, 
Meu último amigo, 
Sem lar, sem abrigo 
Caiu junto a mi! 
Com plácido rosto, 
Sereno e composto, 
O acerbo desgosto 
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado 
Já cego e quebrado, 
De penas ralado, 
Firmava-se em mi: 
Nós ambos, mesquinhos, 
Por ínvios caminhos, 
Cobertos d’espinhos 
Chegamos aqui!

O velho no entanto 
Sofrendo já tanto 
De fome e quebranto, 
Só qu’ria morrer! 
Não mais me contenho, 
Nas matas me embrenho, 
Das frechas que tenho 
Me quero valer.

Então, forasteiro, 
Caí prisioneiro 
De um troço guerreiro 
Com que me encontrei: 
O cru dessossego 
Do pai fraco e cego, 
Enquanto não chego 
Qual seja, - dizei!

Eu era o seu guia 
Na noite sombria, 
A só alegria 
Que Deus lhe deixou: 
Em mim se apoiava, 
Em mim se firmava, 
Em mim descansava, 
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado 
De penas ralado, 
Já cego e quebrado, 
Que resta? - Morrer. 
Enquanto descreve 
O giro tão breve 
Da vida que teve, 
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo, 
Mas forte, mas bravo, 
Serei vosso escravo: 
Aqui virei ter. 
Guerreiros, não coro 
Do pranto que choro: 
Se a vida deploro, 
Também sei morrer.

              V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; 
Os guerreiros murmuram: mal ouviram, 
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! 
Brada segunda vez com voz mais alta, 
Afrouxam-se as prisões, a embira cede, 
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

“Timbira”, diz o índio enternecido, 
 Solto apenas dos nós que o seguravam: 
 “És um guerreiro ilustre, um grande chefe, 
Tu que assim do meu mal te comoveste, 
Nem sofres que, transposta a natureza, 
Com olhos onde a luz já não cintila, 
Chore a morte do filho o pai cansado, 
Que somente por seu na voz conhece.”

- “És livre; parte.”.
                                - “E voltarei.”
                                                       - “Debalde.”
- “Sim, voltarei, morto meu pai.”
                                                       - “Não voltes! 
É bem feliz, se existe, em que não veja, 
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!”
- “Acaso tu supões que me acobardo, 
Que receio morrer!”
                                   - “És livre; parte!”
- “Ora não partirei; quero provar-te 
Que um filho dos Tupis vive com honra, 
E com honra maior, se acaso o vencem, 
Da morte o passo glorioso afronta.”

- “Mentiste, que um Tupi não chora nunca, 
E tu choraste!... parte; não queremos 
Com carne vil enfraquecer os fortes.”

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas 
O rebater do coração se ouvia 
Precípite. - Do rosto afogueado 
Gélidas bagas de suor corriam: 
Talvez que o assaltava um pensamento... 
Já não... que na enlutada fantasia, 
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, 
Do velho pai a moribunda imagem 
Quase bradar-lhe ouvia: - “Ingrato! Ingrato!”
Curvado o colo, taciturno e frio. 
Espectro d’homem, penetrou no bosque!

 VI

- “Filho meu, onde estás?”
                                           - “Ao vosso lado; 
 Aqui vos trago provisões; tomai-as, 
 As vossas forças restaurai perdidas, 
 E a caminho, e já!”
                               - “Tardaste muito! 
 Não era nado o sol, quando partiste, 
 E frouxo o seu calor já sinto agora!” 
 - “Sim, demorei-me a divagar sem rumo, 
 Perdi-me nestas matas intrincadas, 
 Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; 
 Convém partir, e já!”
                                       - “Que novos males 
 Nos resta de sofrer? - que novas dores, 
 Que outro fado pior Tupã nos guarda?”
 - “As setas da aflição já se esgotaram, 
 Nem para novo golpe espaço intacto 
 Em nossos corpos resta”
                                          - “Mas tu tremes! 
 - “Talvez do afã da caça...”
 - “Oh filho caro! 
 Um quê misterioso aqui me fala, 
 Aqui no coração; piedosa fraude 
 Será por certo, que não mentes nunca! 
 Não conheces temor, e agora tremes? 
 Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, 
 E contra o seu querer não valem brios. 
 Partamos!...” 

 E com mão trêmula, incerta 
 Procura o filho, tateando as trevas 
 Da sua noite lúgubre e medonha. 
 Sentindo o acre odor das frescas tintas, 
 Uma ideia fatal correu-lhe à mente... 
 Do filho os membros gélidos apalpa, 
 E a dolorosa maciez das plumas 
 Conhece estremecendo: - foge, volta, 
 Encontra sob as mãos o duro crânio, 
 Despido então do natural ornato!... 
 Recua aflito e pávido, cobrindo 
 Às mãos ambas os olhos fulminados, 
 Como que teme ainda o triste velho 
 De ver, não mais cruel, porém mais clara, 
 Daquele exício grande a imagem viva 
 Ante os olhos do corpo afigurada. 
 Não era que a verdade conhecesse 
 Inteira e tão cruel qual tinha sido; 
 Mas que funesto azar correra o filho, 
 Ele o via; ele o tinha ali presente; 
 E era de repetir-se a cada instante. 
 A dor passada, a previsão futura 
 E o presente tão negro, ali os tinha; 
 Ali no coração se concentrava, 
 Era num ponto só, mas era a morte!

- “Tu prisioneiro, tu”? 
                                      - “Vós o dissestes.”
 - “Dos índios?” 
                            - “Sim.”
                                            - “De que nação?”
                                                                           - “Timbiras.”
 - “E a muçurana funeral rompeste, 
 Dos falsos manitôs quebrastes a maça...”
 - “Nada fiz... aqui estou.”
                                           - “Nada!” - 
                                                               Emudecem; 
 Curto instante depois prossegue o velho: 
 - “Tu és valente, bem o sei; confessa, 
 Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!”
 - “Nada fiz; mas souberam da existência 
 De um pobre velho, que em mim só vivia...”
 - “E depois?...”
                           - “Eis-me aqui.”
                                                      - “Fica essa taba?”
- “Na direção do sol, quando transmonta.”
- “Longe?”
                  - “Não muito.”
                                             - “Tens razão: partamos.”
 - “E quereis ir?...”
                                 - “Na direção do acaso.”

                          VII

“Por amor de um triste velho, 
Que ao termo fatal já chega, 
Vós, guerreiros, concedestes 
A vida a um prisioneiro. 
Ação tão nobre vos honra, 
Nem tão alta cortesia 
Vi eu jamais praticada 
Entre os Tupis, - e mas foram 
Senhores em gentileza.”

“Eu porém nunca vencido, 
 Nem nos combates por armas, 
 Nem por nobreza nos atos; 
 Aqui venho, e o filho trago. 
 Vós o dizeis prisioneiro, 
 Seja assim como dizeis; 
 Mandai vir a lenha, o fogo, 
 A maça do sacrifício 
 E a muçurana ligeira: 
 Em tudo o rito se cumpra! 
 E quando eu for só na terra, 
 Certo acharei entre os vossos, 
 Que tão gentis se revelam, 
 Alguém que meus passos guie; 
 Alguém, que vendo o meu peito 
 Coberto de cicatrizes, 
 Tomando a vez de meu filho, 
 De haver-me por se ufane!”
 Mas o chefe dos Timbiras, 
 Os sobrolhos encrespando, 
 Ao velho Tupi guerreiro 
 Responde com torvo acento:

- “Nada farei do que dizes: 
 É teu filho imbele e fraco! 
 Aviltaria o triunfo 
 Da mais guerreira das tribos 
 Derramar seu ignóbil sangue: 
 Ele chorou de cobarde; 
 Nós outros, fortes Timbiras, 
 Só de heróis fazemos pasto.” –

Do velho Tupi guerreiro 
A surda voz na garganta 
Faz ouvir uns sons confusos, 
Como os rugidos de um tigre, 
Que pouco a pouco se assanha!

                VIII

“Tu choraste em presença da morte? 
 Na presença de estranhos choraste? 
 Não descende o cobarde do forte; 
 Pois choraste, meu filho não és! 
 Possas tu, descendente maldito 
 De uma tribo de nobres guerreiros, 
 Implorando cruéis forasteiros, 
 Seres presa de via Aimorés.”

“Possas tu, isolado na terra, 
 Sem arrimo e sem pátria vagando, 
 Rejeitado da morte na guerra, 
 Rejeitado dos homens na paz, 
 Ser das gentes o espectro execrado; 
 Não encontres amor nas mulheres, 
 Teus amigos, se amigos tiveres, 
 Tenham alma inconstante e falaz!”

“Não encontres doçura no dia, 
 Nem as cores da aurora te ameiguem, 
 E entre as larvas da noite sombria 
 Nunca possas descanso gozar: 
 Não encontres um tronco, uma pedra, 
 Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, 
 Padecendo os maiores tormentos, 
 Onde possas a fronte pousar.”

“Que a teus passos a relva se torre; 
 Murchem prados, a flor desfaleça, 
 E o regato que límpido corre, 
 Mais te acenda o vesano furor; 
 Suas águas depressa se tornem, 
 Ao contacto dos lábios sedentos, 
 Lago impuro de vermes nojentos, 
 Donde fujas com asco e terror!”

“Sempre o céu, como um teto incendido, 
 Creste e punja teus membros malditos 
 E oceano de pó denegrido 
 Seja a terra ao ignavo tupi! 
 Miserável, faminto, sedento, 
 Manitôs lhe não falem nos sonhos, 
 E do horror os espectros medonhos 
 Traga sempre o cobarde após si.

“Um amigo não tenhas piedoso 
 Que o teu corpo na terra embalsame, 
 Pondo em vaso d’argila cuidoso 
 Arco e frecha e tacape a teus pés! 
 Sê maldito, e sozinho na terra; 
 Pois que a tanta vileza chegaste, 
 Que em presença da morte choraste, 
 Tu, cobarde, meu filho não és.”

                  IX

Isto dizendo, o miserando velho 
A quem Tupã tamanha dor, tal fado 
Já nos confins da vida reservada, 
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias 
Da sua noite escura as densas trevas 
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para! 
O grito que escutou é voz do filho, 
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes 
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma! 
- Esse momento só vale a pagar-lhe 
Os tão compridos trances, as angústias, 
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. 
Ele, que em tanta dor se contivera, 
Tomado pelo súbito contraste, 
Desfaz-se agora em pranto copioso, 
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem, 
Gritos, imprecações profundas soam, 
Emaranhada a multidão braveja, 
Revolve-se, enovela-se confusa, 
E mais revolta em mor furor se acende. 
E os sons dos golpes que incessantes fervem, 
Vozes, gemidos, estertor de morte 
Vão longe pelas ermas serranias 
Da humana tempestade propagando 
Quantas vagas de povo enfurecido 
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo 
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, 
Aturado labor de tantos anos, 
Derradeiro brasão da raça extinta, 
De um jato e por um só se aniquilasse.

- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, 
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, 
E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços 
Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo bradando: 
“Este, sim, que é meu filho muito amado!
E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, 
Corram livres as lágrimas que choro, 
Estas lágrimas, sim, que não desonram.”

                X

Um velho Timbira, coberto de glória, 
    Guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava 
    Do que ele contava, 
Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!”

“Eu vi o brioso no largo terreiro 
    Cantar prisioneiro 
Seu canto de morte, que nunca esqueci: 
Valente, como era, chorou sem ter pejo; 
    Parece que o vejo, 
Que o tenho nest’hora diante de mi.”

“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! 
    Pois não, era um bravo; 
Valente e brioso, como ele, não vi! 
E à fé que vos digo: parece-me encanto 
    Que quem chorou tanto, 
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”

Assim o Timbira, coberto de glória, 
    Guardava a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi. 
E à noite nas tabas, se alguém duvidava 
    Do que ele contava, 
Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

 

  AINDA UMA VEZ – ADEUS

                      I 

 Enfim te vejo! - enfim posso, 
 Curvado a teus pés, dizer-te, 
 Que não cessei de querer-te, 
 Pesar de quanto sofri. 
 Muito penei! Cruas ânsias, 
 Dos teus olhos afastado, 
 Houveram-me acabrunhado 
 A não lembrar-me de ti! 

                       II 

 Dum mundo a outro impelido, 
 Derramei os meus lamentos 
 Nas surdas asas dos ventos, 
 Do mar na crespa cerviz! 
 Baldão, ludíbrio da sorte 
 Em terra estranha, entre gente, 
 Que alheios males não sente, 
 Nem se condói do infeliz! 

                       III 

 Louco, aflito, a saciar-me 
 D’agravar minha ferida, 
 Tomou-me tédio da vida, 
 Passos da morte senti; 
 Mas quase no passo extremo, 
 No último arcar da esperança, 
 Tu me vieste à lembrança: 
 Quis viver mais e vivi! 

                       IV 

 Vivi; pois Deus me guardava 
 Para este lugar e hora! 
 Depois de tanto, senhora, 
 Ver-te e falar-te outra vez; 
 Rever-me em teu rosto amigo, 
 Pensar em quanto hei perdido, 
 E este pranto dolorido 
 Deixar correr a teus pés. 

                       V 

 Mas que tens? Não me conheces? 
 De mim afastas teu rosto? 
 Pois tanto pôde o desgosto 
 Transformar o rosto meu? 
 Sei a aflição quanto pode, 
 Sei quanto ela desfigura, 
 E eu não vivi na ventura... 
 Olha-me bem, que sou eu! 

                       VI 

 Nenhuma voz me diriges!... 
 Julgas-te acaso ofendida? 
 Deste-me amor, e a vida 
 Que me darias - bem sei; 
 Mas lembrem-te aqueles feros 
 Corações, que se meteram 
 Entre nós; e se venceram, 
 Mal sabes quanto lutei! 

                       VII 

 Oh! se lutei!... mas devera 
 Expor-te em pública praça, 
 Como um alvo à populaça, 
 Um alvo aos ditérios seus! 
 Devera, podia acaso 
 Tal sacrifício aceitar-te 
 Para no cabo pagar-te, 
 Meus dias unindo aos teus? 

                       VIII 

 Devera, sim; mas pensava, 
 Que de mim t’esquecerias, 
 Que, sem mim, alegres dias 
 T’esperavam; e em favor 
 De minhas preces, contava 
 Que o bom Deus me aceitaria 
 O meu quinhão de alegria 
 Pelo teu, quinhão de dor! 

                       IX 

 Que me enganei, ora o vejo; 
 Nadam-te os olhos em pranto, 
 Arfa-te o peito, e no entanto 
 Nem me podes encarar; 
 Erro foi, mas não foi crime, 
 Não te esqueci, eu to juro: 
 Sacrifiquei meu futuro, 
 Vida e glória por te amar! 

                       X 

 Tudo, tudo; e na miséria 
 Dum martírio prolongado, 
 Lento, cruel, disfarçado, 
 Que eu nem a ti confiei; 
 “Ela é feliz (me dizia) 
 Seu descanso é obra minha.”
 Negou-me a sorte mesquinha... 
 Perdoa, que me enganei! 

                       XI 

 Tantos encantos me tinham, 
 Tanta ilusão me afagava 
 De noite, quando acordava, 
 De dia em sonhos talvez! 
 Tudo isso agora onde para? 
 Onde a ilusão dos meus sonhos? 
 Tantos projetos risonhos, 
 Tudo esse engano desfez! 

                       XII 

 Enganei-me!... - Horrendo caos 
 Nessas palavras se encerra, 
 Quando do engano, quem erra. 
 Não pode voltar atrás! 
 Amarga irrisão! reflete: 
 Quando eu gozar-te pudera, 
 Mártir quis ser, cuidei qu’era... 
 E um louco fui, nada mais! 

                       XIII 

 Louco, julguei adornar-me 
 Com palmas d’alta virtude! 
 Que tinha eu bronco e rude 
 C’o que se chama ideal? 
 O meu eras tu, não outro; 
 ’Stava em deixar minha vida 
 Correr por ti conduzida, 
 Pura, na ausência do mal. 

                       XIV 

 Pensar eu que o teu destino 
 Ligado ao meu, outro fora, 
 Pensar que te vejo agora, 
 Por culpa minha, infeliz; 
 Pensar que a tua ventura 
 Deus ab eterno a fizera, 
 No meu caminho a pusera... 
 E eu! eu fui que a não quis! 

                       XV 

 És doutro agora, e pr’a sempre! 
 Eu a mísero desterro 
 Volto, chorando o meu erro, 
 Quase descrendo dos céus! 
 Dói-te de mim, pois me encontras 
 Em tanta miséria posto, 
 Que a expressão deste desgosto 
 Será um crime ante Deus! 

                       XVI 

 Dói-te de mim, que t’imploro 
 Perdão, a teus pés curvado; 
 Perdão!... de não ter ousado 
 Viver contente e feliz! 
 Perdão da minha miséria, 
 Da dor que me rala o peito, 
 E se do mal que te hei feito, 
 Também do mal que me fiz! 

                       XVII 

 Adeus qu’eu parto, senhora; 
 Negou-me o fado inimigo 
 Passar a vida contigo, 
 Ter sepultura entre os meus; 
 Negou-me nesta hora extrema, 
 Por extrema despedida, 
 Ouvir-te a voz comovida 
 Soluçar um breve Adeus! 

                       XVIII 

 Lerás porém algum dia 
 Meus versos d’alma arrancados, 
 D’amargo pranto banhados, 
 Com sangue escritos; - e então 
 Confio que te comovas, 
 Que a minha dor te apiade 
 Que chores, não de saudade, 
 Nem de amor, - de compaixão.