Com alegria, estamos todos aqui reunidos esta noite para saudar e receber um novo confrade, o escritor catarinense Godofredo de Oliveira Neto, nascido em Blumenau em maio de 1951. Ele nos traz em sua bagagem as culturas do vale do Itajaí, onde passou a primeira infância e onde fez seus estudos secundários, impregnando-se brasileiramente de variadas e ricas contribuições, oriundas das populações indígenas e africanas, de mistura com as colaborações das imigrações russa, alemã, italiana e polonesa, bem como dos ricos aportes açorianos e africanos de Florianópolis e do litoral de seu estado – marcos que se somam e se fundem, a enriquecer sua obra ficcional, em particular os romances de sua chamada Trilogia Catarinense.
Sua chegada a nossos quadros confirma a vocação da Casa de Machado de Assis para a incorporação da diversidade e da variedade de saberes e falares que compõem a cultura nacional, representando as mais diferentes áreas de nossa criação nas humanidades e na ciência. Como tem sido muito ressaltado recentemente. Aliás, vale lembrar logo de saída que, desde que recebemos pela última vez um romancista, tivemos dez sessões solenes em que demos posse e acolhemos entre nós, pela ordem: um historiador, um filósofo, um jurista, um cineasta, uma atriz, um músico, um médico, mais um jurista e um economista.
Dando seguimento a esse processo de representatividade variada, hoje a Academia Brasileira de Letras se abre e se enfeita, solenemente, para empossar na cadeira denúmero 35 um homem de letras. Um mestre . Não apenas por exercer o magistério e ser um professor da faculdade de letras, como foi acentuado por ocasião de sua eleição. Mas, se nós aqui hoje o reconhecemos como mestre, é pelo fato de Godofredo de Oliveira Neto ser um senhor romancista. Um respeitável criador de ficção literária. Um fingidor de mundos inventados, ainda que por vezes diretamente nascidos da Historia com agá maiúsculo. Mas mundos ficcionais, não palpáveis nem verificáveis. Mundos que na verdade só existem por meio da palavra, encarnada em situações imaginadas, vividas por personagens de romances, novelas ou contos que não existiram na realidade concreta e que, no entanto, pelos séculos afora, a partir desse universo irreal, apenas inventado e fingido pela imaginação literária, têm feito homens e mulheres compreender sua existência e lhe dar sentido.
Pois convém lembrar, para começo de conversa, que é nessa tradição ficcional que a obra de Godofredo de Oliveira Neto se insere. Um universo que brota do uso inventivo das palavras e é por ele constituído. Mesmo quando se alimenta do real e bebe da História. E talvez seja oportuno evocarmos, quase como epígrafe, a observação do grande romancista anglo-americano do século XIX Henry James que, em seu prefácio a Os Papeis de Aspern, assinalava essa diferença fundamental: “O historiador, essencialmente, quer mais documentos do que ele pode em verdade usar; o ficcionista apenas quer mais liberdade do que ele pode de fato tomar.”
Pois é justamente essa liberdade preciosa e irrenunciável que caracteriza a ficção. E é essa autonomia exigente que Godofredo de Oliveira Neto vem reivindicando em sua trajetória de criador. É dela que vem se apossando, para nela sedimentar o que escreve. É essa liberdade que lhe confere as ferramentas para desenvolver aquilo que a narrativa de ficção literária propicia de forma única: a incorporação da alteridade por meio das letras. Ou seja, a possibilidade de se aproximar do outro até submergir em sua alma e entrar em sua pele, a fim de nele se instalar provisoriamente a ponto de senti-lo e compreendê-lo ou de nele se transformar. Sem que, no entanto, nesse processo o ficcionista e/ou o leitor percam sua própria identidade pessoal e crítica.
Tão necessário em nosso momento atual como sempre foi através dos tempos, é esse fenômeno poderoso e raro que constitui o mistério que caracteriza essa forma de expressão artística - a literatura de ficção. Trata-se de algo que é quase uma instância de magia, e que apenas a arte ficcional criada com palavras permite com tamanha intensidade, ao compartilhar com cada leitor a possibilidade e a liberdade de dar vida a esse universo inexistente, ao mesmo tempo que nesse processo lhe transmite sua própria visualização, numa imagem única, secreta e irrepetível. Tal como o ato de leitura individual conseguir imaginar. Sem que o leitor seja forçado, como espectador, a encarnar a ação em um cenário a partir de então fixado e reconhecível por todos os que a ela assistem. E sem ter de vestir com as feições e traços físicos específicos de atores os diferentes personagens da história, a partir de então não mais livremente imagináveis e diversos para cada leitor, mas idênticos e reconhecíveis por todos os espectadores de um audiovisual.
Essa liberdade de imaginação, generosa parceria criativa do escritor com o leitor, é um fenômeno específico que caracteriza a literatura. Um mecanismo e privilégio único, inexpugnável, que se torna particularmente importante em tempos como os que vivemos hoje, em que imagens alheias nos são quase forçosamente impostas. Entregues já prontas. De forma ao mesmo tempo abundante e restritiva, em todos os minutos e encruzilhadas da existência, limitando os detalhes criativos individuais da invenção de cada um e da empatia pessoal, e trazendo o risco de uma uniformização do imaginário coletivo, por vezes ciosamente intolerante a qualquer desvio do padrão lacrador imposto como desejável ou único aceitável.
É indispensável, portanto, ter em mente que é munido desse cabedal criador libertário de romancista que o novo acadêmico hoje cruza os umbrais de nossa Casa. É a essa longa linhagem de ficcionistas e exploradores da palavra para a criação de um universo alternativo -- existente apenas por meio das letras que se juntam em palavras e frases -- que ele nos chega esta noite, acenando com um convite à leitura criadora e trazendo sua contribuição renovadora, a se plantar nas praias brasileiras da língua portuguesa.
É justamente isso que caracteriza seu percurso. Uma trajetória discreta e consistente, desde seu início, no começo da década de 1980, quando após se diplomar em Letras e estudar Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro se transferiu para Paris. Na volta, estreou na literatura com o livro Faina de Jurema. Uma obra de caráter experimental que pode se orgulhar de ter sido saudada por ninguém menos que o ensaísta francês Jacques Derrida, que se declarou muito tocado pela cumplicidade que encontrava nessa escrita.
Mas nesse momento o jovem ficcionista Godofredo de Oliveira Neto ainda estava mais voltado para sua formação pessoal e profissional. Foram anos dedicados à construção de sua carreira acadêmica como crítico, pesquisador e docente, fazendo seu mestrado , doutorado e pós-doutorado , dando aulas em universidades estrangeiras e nacionais em diferentes continentes, da Sorbonne a Georgetown, e se fixando na UFRJ, onde hoje é Professor Titular de Literatura Brasileira.
Sua inquietação intelectual, no entanto, não ficou apenas no âmbito das letras e da literatura, mas o levou a incorporar nessa formação uma graduação em Relações Internacionais na Universidade de Paris II. Esse campo de estudos o capacitou, em seguida, a ocupar cargos técnicos em instituições nacionais e internacionais e grupos de pesquisa ligados à UNESCO. Certamente essa vertente de suas atividades teria agradado a seu predecessor nessa cadeira, nosso saudoso e querido acadêmico Candido Mendes, sempre tão atento à necessidade de congraçamento entre culturas de povos diversos, e tão atuante na promoção de diálogos interculturais. Pois Godofredo de Oliveira Neto também atuou nessa área, concentrando-se no âmbito específico do nosso idioma. Fundindo as duas linhas de sua formação, foi levado a presidir a Comissão de Língua Portuguesa do Ministerio da Educação e o Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - entidades responsáveis pela implementação do acordo ortográfico nos países lusófonos. Nesses cargos adquiriu preciosa experiência no âmbito das relações multilaterais de discussão da língua. Dessa forma, além do romancista que primordialmente hoje recebemos, Godofredo de Oliveira Neto também representa para a nossa Academia Brasileira de Letras um reforço ao quadro de especialistas do idioma, a consolidar a experiência de acadêmicos que entre nós têm trabalhado em nossa comissão de Lexicografia, seguindo uma tradição que pode se orgulhar de nomes de peso nessa área como os de Aurelio Buarque de Holanda, Antonio Houaiss e Celso Cunha (para ficarmos apenas com alguns dos grandes que nos antecederam). Portanto, com a chegada agora de Godofredo de Oliveira Neto, saudamos também o fato de que estamos a nos enriquecer com uma contribuição rara e muito bem-vinda, de um especialista que nos traz sua experiência de muitos anos nessas discussões e deliberações sobre o idioma em foros internacionais.
Mas voltemos a acompanhar um pouco sua biografia, o percurso profissional desse novo acadêmico sempre discreto.
Enquanto desenvolvia e aprimorava sua formação nessas áreas citadas – dos estudos linguísticos, das relações internacionais e da participação ativa em organismos multilaterais - aos poucos, a partir da década de 1990, de forma paralela Godofredo de Oliveira Neto ia escrevendo e publicando os romances que constituem o corpo de sua obra. Nessa trajetória de sua carreira de ficcionista, foi acumulando prêmios significativos, como vencedor ou finalista, com frequência graças a obras que cada vez mais vêm acentuando um nítido movimento no sentido de diluir as fronteiras entre gêneros literários.
Meu primeiro contato com sua obra, ainda na qualidade de simples leitora e apreciadora da qualidade do que lia, se deu nessa ocasião, com a leitura de O Bruxo do Contestado, romance de 1996, que me transportou a um universo de que eu mal ouvira falar e conhecia muito pouco – o do movimento popular e messiânico de cunho separatista ocorrido em sua Santa Catarina natal e no Paraná no início do século XX.
Na recriação desse conflito armado envolvendo beatos e monges, ferroviários desempregados e trabalhadores rurais empobrecidos e revoltados, o romance de Godofredo de Oliveira Neto foi buscar na nossa História um momento brasileiro em que eclodiam rebeliões que deixaram marcas profundas. Como a insurreição nordestina de Canudos que Euclides de Cunha testemunhara e fizera reviver em Os sertões. Ou a revolta da vacina, no Rio de Janeiro, que Joel Rufino dos Santos abordou em Quatro Dias de Rebelião. No entanto, diferente do caráter jornalístico e de reportagem da obra de Euclides com sua arrebatadora avalanche barroca e vocabular, e igualmente diverso da clareza, limpidez verbal e simplicidade de cunho quase didático da novela de Joel, a voz do nosso novo acadêmico é bem outra. Godofredo opta por uma linha de narrativa claramente ficcional, de novela empolgante, com estrutura elaborada . De características altamente sofisticadas em sua maneira de contar.
Recordo que em um seminário em que participamos em Paris, na Universidade da Sorbonne, ao falar sobre o romance brasileiro o acadêmico Candido Mendes lamentou o espaço reduzido que a epopeia narrativa ocupa em nossa literatura, escassa em epos, segundo seu diagnóstico. Certamente abriria uma exceção para O Bruxo do Contestado, em sua surpreendente e atualizada visita ao gênero. Ao desenvolver essa sua narrativa, Godofredo de Oliveira Neto retoma aspectos do mito do sebastianismo em seu percurso histórico, numa intertextualidade fecunda, enquanto ao mesmo tempo incorpora conquistas contemporâneas de um certo modo de narrar refratado e multifacetado, capaz de conquistar o leitor moderno pelo imbricamento de pontos de vista, pela superposição de narradores, pela construção em abismo. Tudo isso obtido graças a um exímio emprego do discurso indireto livre. Ou seja, valendo-se de recursos eminentemente literários, de quem domina o fazer do relato e conta sua história a partir de um ângulo atual. Nesse processo, incorpora nela uma visão oriunda da contemporaneidade e embebida de fatos posteriores aos acontecimentos narrados - ao mesmo tempo impregnados da experiência histórica constituída pela vivência da Segunda Guerra Mundial e da ditadura militar nascida nos anos 1960. Não admira que, em sua publicação, O Bruxo do Contestado tenha sido considerado o romance-revelação do ano, e elogiado com entusiasmo. Tampouco surpreende que estudos críticos sobre a obra romanesca de Godofredo de Oliveira Neto tenham insistido em assinalar quanto esse livro se insere numa preciosa linha de vivenciar e entender o passado para compreender o presente. Ou seja, situa-se como tributário daquele traço criador que a precisão exata de Alfredo Bosi identificava como a possibilidade de uma narrativa conter um discurso de resistência como forma imanente da escrita, mas sem com isso sofrer a redução de se apresentar como defesa ou ataque a uma cultura política específica.
No ano seguinte, 1997, Godofredo de Oliveira Neto deu à literatura brasileira outro romance precioso, inicialmente publicado com o título Pedaço de Santo e, a partir da segunda edição, rebatizado de Amores exilados. Nele, o autor mergulha na exploração das experiências do exílio político da geração que viveu sob a ditadura implantada pelo golpe de 1964 -- um tema riquíssimo e pouco explorado em nossa prosa literária, tão rica em canções do exilio e tão parca em romances do exílio. Nosso novo acadêmico não se furtou a uma imersão em profundidade nesse assunto, pouco presente nas narrativas de ficção em nossa literatura, ainda que tenha se apresentado com relativa frequencia nos livros de testemunho dessa época. Questões como o distanciamento das referências culturais ou a busca de redefinição de identidade surgem então com vigor, inseridas de forma dolorosa num panorama amplo e polifônico, que no entanto é capaz de incorporar miúdos episódios do quotidiano vivido, dessa forma revelando sutis tropeços na alteridade e inesperados esbarrões no estranhamento, nos dolorosos caminhos em busca de pertencimento ou de acolhida do outro, bem como nas tentativas de invenção de uma pátria fora do território nacional e das paisagens embebidas de memória e saudade. Os vários fios da trama vão se tecendo em um processo rico e complexo que aos poucos reelabora os acontecimentos históricos da época e o clima pesado e ácido de uma tessitura de exclusões e dores, que tanto caracterizam a vivência do exilio.
Não vou aqui comentar um a um os diversos romances que se seguem, na obra de Godofredo de Oliveira Neto. Não é este o cenário apropriado ou o momento adequado para minuciosas exegeses de sua obra, reservadas às cátedras universitárias ou aos volumes de leitura crítica – que, aliás, não lhe têm faltado. Apenas pretendi destacar e agradecer a qualidade da emoção que os leitores puderam ter, com sua chegada a nosso panorama literário. Por isso não me detenho no comentário de outros romances seus de sucesso, posteriores, premiados e traduzidos para outros idiomas. Apenas os registro.
Como, por exemplo, Menino Oculto, de 2005, com seu elaborado jogo entre o falsificado e o verdadeiro, o estranho e o familiar, reverberando de apropriações intertextuais e citações de nossos clássicos, oscilando entre as aparências mutáveis, instável em seu jogo entre espelhos e máscaras, a lançar desafios e iscas à capacidade de decifração de cada um. São traços narrativos que fazem compreender que um crítico como José Castello, a respeito desse livro, tenha falado em ficção como tontura, como embriaguez, como desfalecimento, num processo que hipnotiza e ao mesmo tempo liberta.
Tais qualidades também servem para caracterizar outros de seus livros mais recentes. Como, por exemplo, Marcelino Nambrá, o manumisso, livro do ano 2000, reescrito e republicado em 2018 com o título de Marcelino. Ambientado em 1942, ano em que o Brasil declara guerra ao Eixo, explora tramas políticas durante o Estado Novo, acompanhando em sua vinda à capital federal um protagonista saído de um vilarejo do Sul do Brasil, descendente de guaranis, negros e açorianos. A propósito desse romance, Silviano Santiago evoca, com muita propriedade, ecos de características como regionalismo restaurado, efeito retrô e estética romântica. Um romance que se destaca pelo ritmo rápido particularíssimo, que faz o livro pulsar, como assinalou o acadêmico Ivan Junqueira.
Em livros posteriores, como A ficcionista (de 2013) a metaficção vai se exacerbando . Nesse processo de fazer ficção sobre a ficção, se torna cada vez mais evidente o poder que o autor lhe atribui e a intensidade com que busca dominar dois movimentos antagônicos a que recorre em sua literatura – o de dar forma e o de deformar, ou corroer a forma por dentro, num processo de auto-revelação e desenudamento.
E para comprovar como se mantiveram ao longo do tempo as qualidades de sua escrita, farei apenas menção a uma de suas criações mais recentes, um livro intitulado Ilusão e mentira: as histórias de Adamastor e Lalinha. Uma história curtinha e deliciosa, escrita com a tal pena da galhofa a que se referia Machado de Assis e com ele dialogando de maneira sutil e divertida. Mas também de maneira muito séria, ao partir do depoimento de uma presidiaria, amante de dois traficantes em uma comunidade carioca, a contar sua história criminosa cheia de atrocidades.
Aliás, pode ser este o momento de lembrar que as questões sociais, econômicas e identitárias prementes do nosso país nunca estão ausentes da prosa narrativa de Godofredo. Mas jamais se convertem em palavras de ordem ou perorações panfletárias herdadas do velho realismo socialista. Pelo contrário, oscilam entre a empatia e uma certa ambiguidade fértil e sutilmente irônica, que é bem interessante e fecunda em sua rebeldia.
Talvez seja possível dizer que Godofredo de Oliveira Neto parece seguir a observação de Tchecov, que afirmou que o romance não tem de fornecer respostas filosóficas, só precisa é levantar as questões certas. Para isso, necessita alimentar sua força na capacidade de conseguir nos fazer viver temporariamente na pele de um outro, para entendê-lo por dentro e sentir em profundidade o âmago da diferença, o cerne da alteridade. Esse é o papel que deve desempenhar. E aí está sua grandeza – quando consegue. Para conseguir tal proeza, tão desafiadora , o romancista precisa dominar plenamente as palavras com que expressa a verdade do mundo de mentira constituído pela ficção. E, ao mesmo tempo, dominar a maneira como elas se entretecem e combinam na arquitetura delicada, rigorosa e precisa com que se ergue a construção sólida e firme de uma obra de arte literária.
São questões nessa área e reflexões dessa qualidade exigente que devem ser suscitadas por nossa obrigação estatutária, da nossa Academia Brasileira de Letras, no que se refere à defesa e proteção da língua e da cultura nacional no campo literário. Nesse sentido, todos nós aqui reunidos contamos com a colaboração trazida hoje pela chegada do homem de letras Godofredo de Oliveira Neto a nossos quadros. E o festejamos, saudando carinhosamente a ele e sua mulher Claire, a partir de agora membros de nossa família afetiva.
Seja bem-vindo, Godofredo. A cadeira número 35 agora é sua.