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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Antonio Carlos Secchin

Poetas, sorrateiros ou antenados, acorrei, é chegada a hora de descrever e contar talvez as feiticeiras noites de luar. Versos e luzes que emanam do acadêmico que hoje adentra esta Casa. Iluminado como a lua, mas, decerto, sem ser um satélite. Iluminador como o sol, por ser uma estrela, todavia não de sexta, e sim de primeira grandeza. Ele é recebido na Casa de Machado de Assis, mas também Casa de José do Patrocínio, Dom Silvério Gomes Pimenta, Pereira da Silva, João do Rio, Domício Proença Filho, de tantos, enfim, que na história da Academia marcaram e marcam, de modo indelével, a benfazeja herança da diversidade e a força da afrodescendência para a cultura e as letras do país. Todos eleitos pelo critério da qualidade, numa instituição que, desde as origens, sempre foi plural no que se refere a etnias, classes sociais, orientações de sexualidade e posicionamentos ideológicos, e cuja maior barreira – a de gênero – foi transposta em 1977, com a eleição de uma mulher, Rachel de Queiroz, para o quadro acadêmico, numa justa e tardia concretização de uma demanda que se prolongava por décadas.

Se unirmos numa sequência seus dois nomes, o artístico e o civil – Gilberto Gil/ Gilberto Passos Gil Moreira – o resultado será um verso de doze sílabas, um alexandrino perfeito, comprovando que já na identidade o artista apresenta suas credenciais de régua e compasso. E por vezes o nome prenuncia vocação e destino, pois, segundo o dicionarista Antenor Nascentes, uma das etimologias de “Gilberto” é a de “companheiro ilustre”.

Premonitoriamente, em 1858, o poeta maranhense Sousândrade, na estrofe 72 do canto X do poema O Guesa, no episódio “O inferno de Wall Street”, escreveu: “Gil engendra em Gil rouxinol”, musicado, com o título de “Gilberto misterioso”, pelo compositor Caetano Veloso em 1972. Se os leitores do século XIX nada entenderam, os de hoje podem usufruir o verso em duas acepções. Primeira: Gil se engendra, ou seja, constrói a si, e se metamorfoseia pela música num rouxinol. Além disso, ele igualmente inventa fora de si esse pássaro, numa canção de 1975, em parceria com Jorge Mautner: “Joguei no céu o meu anzol/ Pra pescar o Sol/ Mas tudo que eu pesquei/ Foi um rouxinol”. Ora, sendo o poeta um rouxinol, ao pescar a si mesmo num outro, o cantor e o objeto do canto, em relação especular, fundem-se numa só unidade. Transforma-se o pescador na coisa pescada.

No discurso que há pouco ouvimos, o novo acadêmico nos proporcionou prazerosa viagem pelos itinerários dos seus antecessores. Gostaria apenas de sublinhar a incidência de uma irmandade clandestina que congrega os nomes da cadeira em torno de três eixos, diretamente vinculados a Gilberto Gil: a música, a poesia e o Nordeste.

Senão, observemos: o patrono Joaquim Manuel de Macedo foi libretista, ou letrista, da ópera O fantasma branco, de 1863. A música é elemento de relevo na sua mais famosa obra, A moreninha, de 1844. Uma balada de 22 estrofes e 132 versos ocupa na íntegra o capítulo X desse romance. O primeiro ocupante da cadeira, embora fluminense, de modo transversal se relaciona a Gil, através do nome – Salvador, não da Bahia, mas, no caso, de Mendonça. Salvador de Mendonça e Joaquim Manuel de Macedo nasceram na mesma cidade, o que deve gerar grave crise de ciúmes em dezenas de municípios do Rio de Janeiro, que não podem se ufanar de serem o berço de ao menos um acadêmico, enquanto a modesta Itaboraí, sozinha, ostenta um patrono e um fundador. Na sequência, Emílio de Menezes. Se fôssemos enquadrá-lo nos regimes do funcionalismo público, diríamos que Emílio foi poeta em tempo integral e boêmio em dedicação exclusiva. Sua estreia, em 1893, deu-se com um folheto cujo título se reporta à música: Marcha fúnebre. Os dois acadêmicos seguintes, Humberto de Campos e Múcio Leão, foram poetas eventuais; todavia, iniciaram, a partir de 1919, ano da eleição de Humberto, uma tradição mais do que centenária, e que hoje se reitera: a nordestinidade da cadeira. Com efeito, na sequência do maranhense Humberto de Campos, foram eleitos o pernambucano Múcio Leão, o paraibano Aurélio de Lira Tavares e o norte-rio-grandense Murilo Melo Filho.

Lancei-me a pesquisas para associar Lira Tavares, de algum modo, ao campo da poesia, pois consta que teria escrito versos sob o singelo pseudônimo de Adelita. Tais arroubos poéticos, pelo que pude apurar, caso tenham ocorrido, jamais chegaram ao livro, dispersando-se talvez, como “pecados da juventude”, em velhos jornais dos Estados ou da Capital Federal. Ainda assim, a poesia não escapou incólume de, no mínimo, uma investida de Lira Tavares, pois ele, municiado pelos eflúvios das musas militares, foi o letrista da “Canção da Arma de Engenharia”, cujos dois primeiros versos sentenciam: “Quer na paz, quer na guerra, a Engenharia/ Fulgura, sobranceira, em nossa história”.

Na convergência de música, poesia e origem nordestina, chegamos à figura-síntese de Gilberto Gil.

A Bahia, que já estava toda prosa com toda a prosa de Antônio Torres, nesta cerimônia celebra toda a poesia de Gilberto Gil. Ele passa a ocupar a cadeira 20 no ano de 2022 – 20-22. Como sou atento a combinações e sortilégios numéricos, não posso deixar de referir que se Gil assumisse a cadeira não hoje, mas daqui a exatas duas semanas, no dia 22 do ano 22, ele chegaria, 200 anos antes do previsto, à meta de 2222, em seu expresso desejo de sair direto do bom sucesso de sua carreira para depois: o desembarque na ABL.

Foram precoces no pequeno Gil tanto a vocação acadêmica quanto a musical, pois, aos 6 anos, ei-lo matriculado numa academia de acordeom. Tocou esse instrumento em sua primeira gravação, a toada “Bem devagar”. Ressaltemos que a letra, apesar do título, não se refere à injusta e renitente fama de que a maioria dos filhos da Bahia cultiva o malemolente pecado da preguiça. Consta, inclusive, que alguns, em protesto, pensaram em criar um movimento contra essa tese, mas tiveram preguiça de levá-lo adiante. A canção foi gravada pelo conjunto “As três baianas”, em 1962. Portanto, em 2022 Gilberto Gil não comemora apenas 80 anos de idade, mas também 60 anos de carreira musical. Carreira que se traduz em números superlativos: cerca de 60 discos gravados, 600 composições, e a impressionante marca de 4.400.000 resultados nos mecanismos de busca por seu nome na Internet.

Em 1967, com “Domingo no parque”, atuou na linha de frente da renovação da música popular, pela incorporação de ritmos e de instrumentos até então ausentes de nosso cancioneiro. Engajou-se na criação da Tropicália, movimento que extrapolou o domínio musical para, numa visada irônica e crítica, abarcar também o cinema, o teatro, as artes plásticas. Não por acaso, uma encenação como O rei da vela, de Zé Celso Martinez Correia (1967) e um filme como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969), constituíram-se em releituras tropicalisticamente provocativas dos dois mais afamados participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

Paralelamente à trajetória musical, consensualmente reconhecida como uma das mais importantes da história da MPB, Gil sempre se revelou um pensador agudo de questões centrais da cultura brasileira, e igualmente um desassombrado homem de ação.

Preso em 1969, compelido ao exílio pela ditadura militar, retornou ao país em 1972. Na década seguinte, iniciou seu trabalho como político e gestor cultural, em Salvador, no ano de 1987, no cargo de presidente da Fundação Gregório de Matos, equivalente ao posto de Secretário de Cultura. Ocupou-se de projetos para a regularização de terreiros de candomblé. Chefiou uma excursão ao Benin, em companhia do artista plástico Carybé e da ialorixá Mãe Stella de Oxóssi. No retorno à Bahia, criou a casa do Benin, no Pelourinho. Impedido pelas antigas lideranças políticas do Estado de candidatar-se à prefeitura, concorreu à Câmara Municipal e tornou-se o vereador baiano mais votado na eleição de 1988: o autor do “Expresso 2222” obteve expressivos 11111 votos, numa perfeita simetria numérica. Em 2003, no primeiro governo Lula, assumiu o Ministério da Cultura. No discurso de posse, definiu-se como “um artista que nasceu dos solos mais generosos de nossa cultura popular, e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo”. Num comentário, infelizmente extensivo aos dias de hoje, lamentou uma realidade “em que que discursos ferozes e estandartes bélicos se ouriçam planetariamente”. Exaltou as marcas de nossa formação cultural: “Somos um povo mestiço que vem criando, ao longo dos séculos, uma cultura essencialmente sincrética (...) ao mesmo tempo, essa cultura é una: cultura tropical sincrética tecida ao abrigo e à luz da língua portuguesa”. Arrematou, incisivo: “O Brasil não pode continuar sendo sinônimo de uma aventura generosa, mas sempre interrompida”. E formulou uma diretriz pragmática à sua missão ministerial: “avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção”.

Essa perspectiva, ampla, ecumênica, dissolve hierarquias e congrega alteridades. Não mais o grito, que neste salão ecoou em 1924, na voz de Graça Aranha: “Morra a Grécia!”. Não, viva a Grécia, sejamos os primeiros neo-helenos. Mas que Pindorama e a África também estejam aqui, afrodionisíaca mistura de cores, sons, texturas, pensamentos, palavras, epidermes e poemas, sob as bênçãos de Zeus dançando com Iemanjá, ao som do chocalho de Tupã. Africósmica Bahia-Brasil, não só a Bahia de Todos os Santos, mas a Bahia de todos os cantos: os católicos, da procissão “se arrastando que nem cobra pelo chão”; dos cantos e pontos do candomblé e do afoxé dos Filhos de Gandhy. Bahia de todos os santos e de todos os sonhos, a começar pelos da liberdade, comemorada na proclamação da independência da então província baiana, em 2 de julho de 1823.

Embora não se deva dissociar o criador do homem público, é enquanto artista – artista do verso, artista da música – que Gilberto Gil entra para esta Casa, na condição de primeiro compositor eleito em 125 anos de ABL. Não como o primeiro letrista, porque, para nosso júbilo, atualmente contamos no quadro acadêmico com as preciosas presenças de Antonio Cicero e de Geraldo Carneiro, ambos também autores de livros de poemas, enquanto Gil é autor de livro de canções.

Recordo Homero, que, há quase três mil anos, fundou a literatura ocidental. Eis o primeiro dos 15693 versos da Ilíada: “Canta, ó musa, a cólera de Aquiles”. A canção está na raiz da poesia, embora não tenhamos registro da melodia grega que a acompanhava.

Também rememoro os versos 1 e 15 de Os Lusíadas, de Camões, poema que, em 1572, estabeleceu a moderna língua portuguesa: “As armas e os barões assinalados”; “Cantando espalharei por toda parte”.

Nosso modernismo, assim como efetuou o diálogo entre formas cultas e populares de expressão linguística, estabeleceu conexões entre a música popular e a erudita, conforme o exemplo de Villa-Lobos.

A contribuição dos ritmos nordestinos, em especial o maracatu, foi registrada pelo poeta Ascenso Ferreira, no livro Catimbó, de 1927, do qual reproduzo: “Zabumbas de bombos,/ estouro de bombas, / batuques de ingonos,/ cantigas de banzo,/ ranger de ganzás.../ Loanda, Loanda, aonde estás?”.

Cronologicamente mais próximo a nós, coube a Vinicius de Morais efetuar o trânsito da literatura livresca para o registro mais distenso e informal da bossa-nova. No âmbito específico da Academia, não nos esqueçamos de que alguns poetas de livro foram esporadicamente letristas: Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar. João Cabral, mesmo refratário à música, tornou-se parceiro de Chico Buarque. E todas as letras dos principais hinos brasileiros foram escritas por poetas da ABL: “Hino à Bandeira”, Olavo Bilac; “Hino da República”, Medeiros e Albuquerque; “Hino Nacional”, Osório Duque-Estrada.

A geração de Gilberto Gil, marcada pela formação universitária, a partir da década de 1960 é incorporada em definitivo ao quadro dos estudos acadêmicos, tornando-se objeto de dezenas de dissertações e de teses.

Nos debates acerca da natureza dos poemas e das letras, certos preceitos parecem sedimentados: 1) poema e letra não são sinônimos, trata-se de realizações distintas, apesar de operarem com um material linguístico em comum; ambos valem-se de versos, muitas vezes regularmente metrificados e rimados; 2) não há superioridade necessária de uma espécie frente à outra. Várias línguas também utilizam-se de termos diferenciados para bem demarcarem as duas modalidades: em inglês, poem e lyrics; em francês, poème e paroles.

A letra não é idêntica, em seus processos, ao poema, nem é inimiga dele, para usurpar-lhe o espaço, como se chegou a temer. As instâncias de produção e de consumo de ambos são diversas. Na letra, a palavra pode prescindir do papel ou da tela, e viver apenas no ar, unida às notas musicais, e assim circular de modo mais irrestrito do que no poema, com o qual, normalmente, costumamos ter uma relação mais íntima e silenciosa.

Grandes letristas são também poetas não porque escrevem poemas, mas porque produzem poesia em suas letras.

Existem duas frases que apontam para os vínculos estreitos entre a música, a literatura e a vida. Na fraseologia popular, a expressão: “Tudo acaba em samba”. E, no campo erudito, um famoso verso de Mallarmé: “Tudo no mundo existe para acabar num livro”. Vida alimentada pela música e pela literatura. Caetano Veloso, numa canção, diz que os livros “são como a radiação de um corpo negro/ apontando para a expansão do Universo”. Corpo negro que pode ser triplamente interpretado: um corpo cósmico; um corpo negro bailarino, no universo da dança; e o corpo negro da letra deslizando sobre o palco da página branca.

Experimentador de formas, explorador de um largo espectro temático, o cancioneiro de Gilberto Gil assombra pela complexidade e pela amplitude, pautando-se, ao mesmo tempo, por um princípio de clareza e comunicabilidade.

Em sua obra, há temas bastante recorrentes: a metalinguagem; a celebração das multietnias como afirmação antirracista; a alegria; a denúncia social; a busca da transcendência numa realidade que a despreza ou a ignora; as considerações estoicas e serenas sobre a finitude. Leia-se, a respeito, a letra de “Não tenho medo da morte”, a seguir parcialmente transcrita, e observe-se a originalidade com que a questão é tratada, num jogo vertiginoso de supostos paradoxos:

Não tenho medo da morte

Mas sim medo de morrer

Qual seria a diferença

Você há de perguntar

É que a morte já é depois

Que eu deixar de respirar

Morrer ainda é aqui

A morte já é depois

Já não haverá ninguém

Como eu aqui agora

Pensando sobre o além

Não terei pé nem cabeça

Nem fígado, nem pulmão

Como poderei ter medo

Se não terei coração?

Não tenho medo da morte

Mas medo de morrer, sim

A morte é depois de mim

Mas quem vai morrer sou eu

O derradeiro ato meu

E eu terei de estar presente

Assim como um presidente

Dando posse ao sucessor

Terei que morrer vivendo

Sabendo que já me vou

Morrer de morte matada

Morrer de morte morrida

Quem sabe eu sinta saudade

Como em qualquer despedida

Entre tantos núcleos temáticos, destaco em Gil a vertente lírica. Vou limitar-me à análise de uma única peça, reveladora do alto nível de elaboração oculto sob a aparência de extrema simplicidade. São versos marcados pela delicadeza com que Gilberto Gil envolve e desenvolve o tema da relação amorosa. Refiro-me a “Flora”, composta em homenagem à sua mulher, pouco depois de tê-la conhecido em 1979. A letra antevê certeiramente uma longa duração para a vida em comum do casal. Existem outros textos inspirados na musa: “A linha e o linho”, “Mar de Copacabana”, “Seu olhar”, “A faca e o queijo”; nenhum desses, porém registra explicitamente o nome da esposa, o que não lhes diminui a qualidade, em versos como “É a sua vida que eu quero bordar na minha/ Como se eu fosse o pano e você fosse a linha” (“A linha e o linho”).

Na coletânea Todas as letras, organizada por Carlos Rennó, e cuja terceira edição, ampliada, sairá este ano a tempo dos festejos do octogésimo aniversário de Gil, o poeta comenta: “os elementos e as imagens da canção são todos extraídos do reino vegetal. ‘Flora’ é como se eu penetrasse no bosque para encontrar a fada”. Incluída no elepê Luar (1981), de forte impregnação pop, sua melodia suave e algo bossa-novística funciona como uma parada para descanso, à margem do caminho principal do disco, e nos desperta a mesma sensação de abrigo, de um doce refúgio, amorosamente celebrado pela letra. Flora, cantada e encantada por Gil, ganhou seu companheiro de estrada. E nós ganhamos esta canção:

Imagino-te já idosa

Frondosa toda a folhagem

Multiplicada a ramagem

De agora

Tendo tudo transcorrido

Flores e frutos da imagem

Com que faço essa viagem

Pelo reino do teu nome, ó Flora

Imagino-te jaqueira

Postada à beira da estrada

Velha, forte, farta, bela senhora

Pelo chão, muitos caroços

Como que restos dos nossos

Próprios sonhos devorados

Pelo pássaro da aurora, ó Flora

Imagino-te futura

Ainda mais linda, madura

Pura no sabor de amor e de amora

Toda aquela luz acesa

Na doçura e na beleza

Terei sono, com certeza

Debaixo da tua sombra, ó Flora

Citando Sousândrade, diria que “Gil engendra” uma fina carpintaria poética a partir de uma premissa e de uma promessa, contidas na abertura do texto:

“Imagino-te já idosa”.

A promessa, cumprida e comprida, é manter vivos, e até fortalecidos, o amor e a cumplicidade, não obstante o transcurso triturador do tempo. A premissa é que a viagem para o futuro será, basicamente, abastecida pelo potente combustível da linguagem poética, pois “imaginar”, nessa letra, não é apenas pressupor, conjecturar. Imaginar é, antes de tudo, colocar em imagens. Produzir um discurso a partir de um fluxo articulado de metáforas – e aderir a elas, viajar com elas, mais do que se reportar a uma realidade empírica. Como a viagem é em torno de um nome, o leitor atravessa uma floresta de palavras, admira a vegetação, plantada não nas terras da natureza, mas germinada no solo fértil da linguagem. O nome Flora é a matriz de onde brotam as metáforas que se expandem ao longo do texto. Ao vegetalizar a amada, na contramão de tantos que humanizam os vegetais, o poeta enfim se habilita a percorrer “as flores e os frutos da imagem”, numa paixão sutilmente vivenciada no aconchego das carícias e das pétalas da palavra.

Nas duas primeiras estrofes –

Imagino-te já idosa

Frondosa toda a folhagem

Multiplicada a ramagem

De agora

Tendo tudo transcorrido

Flores e frutos da imagem

Com que faço essa viagem

Pelo reino do teu nome, ó Flora – a árvore não é nomeada, ao contrário da “jaqueira”, da estrofe seguinte.

Projetada num futuro podado dos traços da juventude (ou seja, sem a incipiente “ramagem de agora”), a árvore, passará, depois, a dispor de atrativos invisíveis e inviáveis no presente: só tardiamente conseguirá ser “frondosa” e “multiplicada”. Ao pré-valorizar o envelhecimento, Gil escapa da pressão premente, quase compulsória, do carpe diem, em prol de um inesperado carpe noctem.

A seguir,

Imagino-te jaqueira

Postada à beira da estrada

Velha, forte, farta, bela senhora Pelo chão, muitos caroços

Como que restos dos nossos

Próprios sonhos devorados

Pelo pássaro da aurora, ó Flora

A particularização em “jaqueira” da árvore inespecífica no início da letra não é arbitrária. Além de a jaqueira cumprir o requisito de ostentar ampla ramagem, ela, enquanto signo verbal, acrescenta ao texto um sentido diretamente vinculado ao mundo dos afetos, pela presença, em seu interior, do verbo querer: jaqueira. Observe-se o perfeito paralelismo entre os versos iniciais de ambas as estrofes: “Imagino-te já idosa”/ “Imagino-te aqueira”. A reiteração do “já”, em idêntico posicionamento frasal nos dois versos, abre a possibilidade de se fragmentar formal e semanticamente a palavra “jaqueira”. O próprio texto, à frente, vai fornecer mais um subsídio para corroborar essa hipótese de leitura. O feminino é generoso, receptivo. Se o poeta é o caminhante, ainda que o seja numa via que desemboca não num espaço, mas num tempo futuro, a mulher é o ponto ou porto de acolhida.

No mesmo diapasão valorizador da velhice, uma rima toante interna vai aproximar pela fonética dois vocábulos em geral dissociados pela semântica: “velha/bela”. Ademais, a sucessão, no mesmo verso, de três adjetivos – forte, farta, bela – insere a palavra “velha” numa sequência de total positividade. Vizinha da fortaleza, da fartura e da beleza, a velhice se regenera e se engrandece. Idêntico potencial de revitalização pode ser apontado em “caroços”: de início, algo descartado, como inúteis restos de antigos sonhos. Mas tudo se altera se consideramos que os caroços, esses dejetos da árvore, sem a beleza das flores e sem o sabor dos frutos, quando lançados à terra transformam o que era fim em súbito começo: morrem como caroços, para renascerem como sementes.

Na conclusão:

Imagino-te futura

Ainda mais linda, madura

Pura no sabor de amor e de amora

Toda aquela luz acesa

Na doçura e na beleza

Terei sono, com certeza Debaixo da tua sombra, ó Flora

Opera-se uma retomada qualitativa de adjetivos, pois “linda” amplia “bela”, e “madura” atenua “velha”. Além disso, “madura”, que, na esfera do humano, destoa do culto extremado à juventude, potencializa-se na escala do vegetal, por ser a madureza o estágio ótimo e mais apetecível de uma fruta.

O ostensivo jogo paronomástico “amor/amora” insere de novo no âmago da palavra o signo do afeto, o amor, conforme o que havíamos destacado a propósito de “jaqueira”.

Curiosamente, amora e jaqueira, já irmanadas numa similar função poética, apresentam outra insuspeitada afinidade: apesar da enorme desproporção de tamanho entre os frutos das respectivas árvores, ambos pertencem à mesma família botânica, a das moráceas. Na escala da Natureza, nem chegam exatamente a ser frutas, catalogam-se como frutescência, espécie intermediária caracterizada pela presença de gomos, numa configuração não inteiriça. Um projeto de fruta em progresso, que parou no meio do caminho, ou à beira da estrada evolutiva. Na língua portuguesa, da mesma origem de “amora”, existe o termo “mórula”: agregado de células decorrente da segmentação do óvulo fecundado. No texto, há um agregado de imagens fecundadas pelo desdobramento do nome “Flora”, responsável por uma dupla noção de doçura: doçura de afetos e de frutas.

Diante de tantas ramificações botânico-poéticas, tive a tentação de sugerir ao poeta que assinasse a letra não como Gilberto Gil, mas como Gilberto Moreira, pois “moreira” é uma variante popular e antiga de “amoreira”. Desse modo, antes mesmo de surgir a primeira palavra do texto, o autor já estaria insinuando um recado amoroso, latente em seu próprio sobrenome.

Até aqui, falei do recém-acadêmico em terceira pessoa.

Na conclusão do discurso, dirijo-me diretamente a ele – a você, Gilberto Gil.

Num verso famoso, Mário de Andrade contabilizou: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”. Mas, diante de sua obra, Gil, esse total é insuficiente, não expressa a abrangência de sua produção, e tampouco dá conta da sua importância ou exprime o nosso respeito pelo seu desempenho na vida artística e cultural do Brasil. A cadeira 20 vai comportar muitos Gilbertos. Por isso, equivoca-se quem supõe que a ABL esteja simplesmente acolhendo Gilberto Gil; na verdade, ao acolhê-lo, ela se engrandece com a chegada do múltiplo Gilberto Mil.

Hoje, dia 8, encontramo-nos, literalmente, regidos pela lua nova. Daqui a três horas, ela já será crescente.

Então, recorrendo à lua, terminemos pelo princípio. Sim, as noites de luar. No começo e no desfecho desta saudação, evocamos a claridade propagada pelas criações do compositor. A partir de agora, nós, seus confrades, seremos iluminados, com certeza, por toda aquela sua luz acesa, transformada em pura doação de melodia, poesia e beleza. Salve, Gilberto Gil.

Discurso de recepção a Gilberto Gil, proferido na Academia Brasileira de Letras no dia 8 de abril de 2022.