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Discurso de posse

Nesta noite de júbilo, que me propiciou a vossa generosidade, senhores acadêmicos, sinto, sei, que o mais presente de todos, no salão em festa, é alguém que se ausentou do mundo; ausentou-se, não o digo morto, pois a palavra lúgubre sombrearia a memória de quem tanto amou a vida e tanto soube vivê-la. Alguém que está muito longe, mas que me vê e me sorri de perto, restituído magicamente à sua luz, à sua força e à sua graça de ser.

Essa presença incorpórea, tão dominadora e magnetizante, bem o compreendeis, é daquele que foi vosso companheiro nesta Casa ilustre e foi o meu mestre, a quem devo muito da formação intelectual e moral, e de quem me tornei o confidente, o revisor dos livros, o irmão que, através das cartas, segundo me dizia, o povoava de Brasil quando na Europa ou na América; enfim, o meu, o nosso amado Gilberto.

Este momento de poesia vivida também me restitui ao verdor da juventude, na evocação dos primeiros encontros com três de vós, senhores acadêmicos, os que mais cedo se ligaram à minha vida.

Rapazola, avançando no Curso de Humanidades, ia eu passar as férias em Itabuna. O vaporzinho da Navegação Baiana zarpava de Salvador ao anoitecer, amanhecendo em Ilhéus. Só de tarde o trem me levaria à antiga Tabocas. A espera e o almoço, na casa simples do Tio João, pessoa ressumante de energia e vivacidade, ainda pobre de dinheiro, porém riquíssimo de humor. Caladona, de ar sempre sério e, contudo carinhosa, hospitaleira, a sua mulher, Eulália, exemplar na devoção ao marido e à prole em começo. Ali havia um garoto, Jorge, alourado, franzino, de pouco falar, arredio. Eu, dez anos mais velho, já em tentativas de soneto e cometendo artiguinhos num jornal de Itabuna, bem longe estava de pressentir que o primogênito de João e Eulália se revelaria o grande romancista do Brasil moderno, escritor-poeta com a sua original e poderosa ficção traduzida em quase todos os idiomas e em todos os continentes.
 
Outros dois baianos, que enobrecem a Academia, prosadores de alto valor e figuras da maior expressão no quadro político e jurídico do País, conheci-os, a eles que são autênticos mestres do Brasil, quando ainda ignorados calouros, como eu, com receio de trote, na iniciação do curso superior.

Pedro Calmon, que se tornaria autor de tantas obras consagradas na Literautra, na Ciência Jurídica e na Historiografia, professor catedrático e diretor de Faculdade, magnífico Reitor, deputado federal, ministro da Educação e Saúde, representante do Brasil em congressos internacionais, presidente do Instituto Histórico, Pedro Calmon só contava então com um título – o de ter apenas dezessete anos, título pelo qual trocaria, creio eu, todos os que hoje o ilustram. Corria março de 1920 e em diáfana manhã de Salvador nos apresentamos um ao outro, na Faculdade de Direito. A inteligência transparecia-lhe no olhar, a elegância inata no aprumo do porte e nas maneiras de boa estirpe, o gosto de viver, e conviver, no sorriso fácil.

Naquela translúcida manhã, também veio a mim, ou fui a ele, não recordo qual a iniciativa, mais um novo colega, da mesma idade, igualmente de finura nos modos, gentil nas palavras, mas com certa sisudez aparente, no tom, no rosto. Sisudez enganosa, desfeita assim que começamos a falar e lhe percebi, na delícia da conversa, o talento despretensioso e a natureza franca. Explicou-me que sua cidadezinha natal, no sertão, era Livramento do Brumado. Adorei o topônimo. Bonito, sonoro, um quê de poético. Livramento do Brumado... Só depois compreendi que a denominação do lugar se ajustava ao moço, com a bruma de aparente sisudez na fisionomia, porém com a vocação de amar a liberdade, espírito aberto às ideias novas e generosas do tempo, incapaz de se prender a teorizações justificadoras da tirania política e da injustiça social. Viria ele a ser, precocemente, catedrático do Direito que naquela manhã principiávamos a estudar, jornalista e escritor de primeira ordem, diretor de Faculdade, parlamentar de projeção, secretário da Presidência da República, ministro do Trabalho e do Exterior, primeiro-ministro e, por fim, ministro do Supremo. Mas, quando o conheci, no madrugar da carreira marcada pelo mérito intelectual, pela bravura, honradez e coerência, no começo da Travessia, título do seu inédito e admirável livro de memórias, que tive o privilégio de ler nos originais, então, era só – e é ser tanto! – Hermes Lima.

Em nossa turma, bem pequena, formávamos um quinteto, completado por Adalício Nogueira, poeta promissor, depois um luminar da magistratura, chegando ao Supremo, e Nestor Duarte, que se fez romancista dos bons, autor, de estudo notável no campo da Ciência Política, professor de Direito e parlamentar brilhante. Unia-nos a mesma admiração por um terceiro-anista, moço extraordinário, de singular inteligência e firmeza de caráter, com o sinete das figuras excepcionais, prenúncio do grande e injustiçado brasileiro que se devotou heroicamente à luta de modernizar e democratizar a Educação no País, aquele que nos orgulharíamos de ter como confrade, se não perdesse a vida quando já próxima e certa sua eleição para a Academia. Sabeis de quem falo: Anísio Teixeira.

Dos cinco fraternos calouros, dois se contrastavam. Nestor, bonitão, semblante de linhas simétricas, nariz aquilino, dentes perfeitos, no corpo a harmonia de um deus em escultura helênica. Eu, magriço, cabeçudo, pescoção curto e fino, cara espinhosa e de salientes maçãs. Feio, sim, bem feio, como soem ser os Amados, até que de cabelos brancos, parecem – tiro por mim – uns velhotes bem simpáticos...

E houve ocasião em que Hermes fez brincadeiras à custa de minha diferença com o Nestor, diferença ainda maior porque ele se vestia e penteava bem, eu com desalinho nas roupas e grenhas rebeldes. Tanto que, um dia, ouvi Donana dizer à Iaiá, minha irmã mais velha: “Estou doida que Genolino dê para namorar. Assim talvez se arranje melhor.” Todavia, Hermes é que tinha namorada, moçoila do curso normal no Educandário dos Perdões. Certa feita, não podendo ir ao encontro marcado com a garota, pediu ao Nestor que a prevenisse. Ora, uma semana depois, os três no jardinzinho da Faculdade, à beira do tanque em que dormitava um pequeno jacaré, Hermes explodiu: “Seu Nestor, noutra eu não caio. Você não me leva mais recadinhos a namorada nenhuma. A menina agora só tem um assunto – Nestor para cá, Nestor para lá, que é feito do Nestor?, quando é que ele aparece? – Um enjoo! A partir de agora, vou no seguro. Quem há de levar recado meu é o Genolino.”

Por um instante, amuei. Mas, depois, rompemos juntos em boa gargalhada. Porque – parece incrível! – os jovens de então gostavam de rir e não tinham vergonha da sua alegria.

O rapazinho de dezessete anos, em quem o senso de humor já prevalecia, é hoje o septuagenário que, embora num fardão solenérrimo, se mantém jovial. E feliz porque a Academia lhe concedeu a Cadeira 32, a de tantos autores predispostos ao riso e com os dons de o suscitar nas suas criações literárias.
 
Veja-se o patrono, Manuel Araújo Porto-Alegre. Iniciador do nosso Romantismo, em companhia de Gonçalves de Magalhães, não o contaminou, como no outro, aquela tristeza, mais escrita do que sentida realmente, dos que lançaram no mundo europeu a revolução inspiradora. Não o atingiu o spleen de Byron, moléstia de muitos, nem cultivou a melancolia lamartiniana, mal de que padeceu, ou fingia parecer, Magalhães, como indicou ao intitular de Suspiros Poéticos e Saudades e sua obra deflagradora do movimento no Brasil.

Num paradoxo, Porto-Alegre adquiriu renome com a arte em que falhou seu verdadeiro talento. Arquiteto, pintor e desenhista dos melhores, além de excelente diplomata, não foi bom poeta. E poeta que nem soube refletir a novidade romântica, pois a sua produção de versejador tem um tardio cunho classicista, contraditório com as ideias inovadoras que auxiliou a divulgar na revista Niterói. O pouco de apreciável que ainda se lhe descobre nos poemas, de Brasilianas a Colombo, é a aceitação da temática nacional ou a força descritiva de certas estrofes, com o pincel do pintor ajudando a lira do vate.

A sua propensão ao humor bem a denuncia o fato de que, embora tenha produzido tragédia e drama, o patrono da Cadeira 32 também se aventurou a escrever uma sátira teatral e três comédias. E a Martins Pena deu estímulo para levar à ribalta as facetas cômicas dos nossos costumes. Por fim, não é de se esquecer que Porto Alegre foi diretor de A Lanterna Mágica, periódico satírico e o primeiro no Brasil a utilizar caricaturas.

A Cadeira tutelada por quem deveria ser literalmente merencório e não o foi, essa Cadeira tem no seu Fundador, Carlos de Laet, o nosso maior satirista, o mestre sem par da zombaria combatente, mobilizando toda a força intelectual, toda a enorme erudição, todo o profundo conhecimento do idioma, ao serviço de convicções por que se batia a rir, a escarnecer, a polemizar com prodigiosa veia epigramática.

Homem de tradição, tradição na Política, na crença, nas Letras, adversário do Republicanismo, como do Agnosticismo, Protestantismo, Positivismo e outros “ismos” que lhe faziam ferver o sangue católico, e por fim adversário do Modernismo antiacadêmico, até quem não o aprecie pelo que defendeu há de lhe apreciar o ardor, a pertinácia e a coerência da sua longa peleja. Não é nos versos de moço, nem nos sutis artigos de Em Minas, obra do refúgio nas montanhas, ao tempo da perseguição florianista, nem é mesmo no obstinado labor do magistério que se vê a marca reveladora da sua singular figura humana. Foi à imprensa belicosa que ele deu a vida da sua vida, até os derradeiros dias de ancião. Carlos de Laet, o matador – chama-o Assis Chateaubriand, ao lhe escrever o elogio fúnebre. E acrescenta que no grande humanista, filólogo e crítico de Religião, admirou sobretudo o polemista que esgrimia com estocadas de gênio.

Alceu Amoroso Lima o definiu como “o nosso Chesterton”. Sim, ouso ponderar, um Chesterton com o mesmo catolicismo ironizador, mas sem a poesia devaneante do inglês, gordo meninão com a cabeça nas nuvens. Laet, realista, de prosa seca e sem divagações, atingia o alvo com setas letais, embebidas no veneno da mofa. Eis um sinal da sua concisão na dialética irrespondível. Ao afirmar Afrânio Peixoto que no Brasil só Rui Barbosa sabia português, Laet argumenta: “Das duas uma – ou o Sr. Afrânio sabe Português ou não sabe. Se ele sabe, Rui não é o único; se não sabe, não pode julgar se Rui sabe.” E eis um exemplo de sua presteza sardônica. Ao ouvir Laet fazer, em aula, restrições ao transformismo darwiniano, um aluno aparteia: “Ora, professor! Papai disse que nós descendemos do macaco”. E Laet, de pronto – “Não me interessam questões particulares de sua família.”

Contudo, raramente zombava à toa. Os motejos eram a alegria das suas zangas. E as zangas vinham-lhe das convicções teimosas. Quando o admirável Elmano Cardim proficientemente dirigia o Jornal do Commercio e me convidou a escrever ali o rodapé dominical, aproveitei o ensejo para buscar, nas amarelecidas coleções do velho órgão, os folhetins de Laet. Deliciou-me a leitura. Se já bem mortas as questões que discutia, permanecera bem viva a graça candente do comentador.

Ao ironista magistral, piedoso no culto da sua fé e impiedoso com os inimigos dela, fiel no amor à Monarquia e inexorável no rancor aos maiorais republicanos, sucedeu Ramiz Galvão, também devoto da Igreja, mas condescendente com os incréus, também monarquista mas resignado com o fim do Império.

Laet, agressivo, irreverente. Ramiz, a placidez e a circunspecção. A seriedade intelectual de Laet conduzia-o à troça militante. O seu pacífico e gravebundo sucessor dedicou-se a fainas de erudição alheias aos debates da época. Aos oitenta, Laet ainda fazia rir com os seus escritos sobre as pessoas e os assuntos então no cartaz. Aos dezenove, Ramiz publicou O Púlpito no Brasil, com dois séculos de sermões escolhidos e examinados pelo saber precoce e pela precoce paciência de um autor que fugia às brincadeiras da juventude. E, assim, longe do que se lhe agitava ao derredor, continuou a ser, vida afora, aquele que compôs a Biografia de Frei Camilo de Monserrate, o Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, e o Catálogo da Exposição de História e Geografia do Brasil. Remodelador da Biblioteca Nacional, presidente do Instituto Histórico, professor emérito e o maior helenista do País, chegou a nonagenário como foi rapaz, sempre se eruditando e sempre fechado no aspecto, doce na voz, gentil nas maneiras, mas sem se lhe perceber um fugidio sorriso na boca encoberta pelos coerentes bigodes brancos.

No discurso de posse, disse Viriato Correia que, desejoso de aligeirar o elogio do antecessor, foi à procura dos seus parentes mais chegados a fim de colher uma anedota qualquer, um instantezinho de humor que lhe houvesse desenrugado a fronte. Não havia. Ramiz Galvão partiu deste mundo sem anedotas. Ninguém da família se lembrou de um gracejo seu, uma sátira, uma pilhéria.

Viveu, morreu, sem rir? Não creio. Os que nunca riem são, em geral, cruéis, inclementes. Deles é que saem os fanáticos, os tiranos, os inquisidores, os policiais torturadores. Galvão era bom, ameno, tolerante. E imagino que, de noite, no silêncio do gabinete, o helenista que traduziu o Prometeu Acorrentado de Ésquilo ia buscar na estante o seu Aristófanes e, lendo-o no original, que gostosas risadas, as desconhecidas risadas humanizadoras do scholar carrancudo.

Deixo, porém, o sábio de fisionomia austera e majestoso porte porque me faz sinal, impaciente, pronto a se introduzir no discurso, um diabrete do Jornalismo, da Ficção e da Arte Cênica, miúdo e buliçoso como os elfos da mitologia nórdica, geniozinhos de traquinagem que Shakespeare simbolizou na figura de Puck, em “Sonho de uma Noite de Verão”.

Capeta em forma de gente, Viriato Correia é a antítese do seu antecessor. Ramiz estreia, aos dezenove anos, com estudo pesadão sobre Oratória Sacra. Correia, aos dezesseis, com artiguetes de humorismo e ironia num jornal maranhense. Galvão só escreveu peçazinhas insossas para festa escolar. Correia, copioso autor de comédias e burletas para o grande público. Ramiz, sem imaginação. Viriato, o fantasista dos contos com que principia a vencer na Literatura. O primeiro investiga a História do Brasil a sério, escrupuloso e enfadonho. O segundo só vê no passado o pitoresco e o romanesco, lançando-se a reconstituições graciosas, nem sempre fiéis, em livros de habilidoso divulgador. E também no teatro, com “A Marquesa de Santos”, o seu triunfo maior, dentre as vinte e sete criações aplaudidas pelas plateias que divertiu, encantou, comoveu.

Que gigante de trabalho, na imprensa, na produção de ficcionista e comediógrafo, em volumes de historiador ligeiro, até no magistério, o pigmeu de nome bem mais comprido do que o corpo, Manuel Viriato Correia Bayma do Lago! E com seu tamanhinho de Pequeno Polegar, foi na Literatura o primeiro bom vovô das nossas crianças. Inicia em 1908, antecedendo a Lobato, a publicação de suas numerosíssimas historietas infantis, deliciosas e edificantes.

O elfo intelectual do Maranhão teve uma namorada esquiva – a Academia. Merecendo-a, sofreu derrotas após derrotas, até que, enfim, ela se entregou ao que foi mais laborioso e paciente do que Jacó à espera de Raquel. E eleito, dizia, redizia, ao teatrólogo que tanto admirou quanto estimou: “Candidate-se, Joracy, candidate-se.” Tal qual Joracy fez comigo, pela afeição que nos prendia. O maranhense ao carioca, o carioca ao sergipano, pretenderam dar o voto... e deram a vaga.

Doador foi sempre na vida, até na morte, aquele a quem tenho a honra de suceder. Em Joracy Camargo, a cabeça criadora seguia os impulsos do coração generoso. E eu já o sabia um bom quando bati minhas primeiras palmas ao autor de talento, na representação de “O Bobo do Rei”.

Foi em 1931, na Pauliceia, ao fim dos seis anos que lá vivi, anos de iniciação na Imprensa e na Literatura, ao abrandar-se o efervescer do Modernismo. Jovem redator do Correio Paulistano, até que a Revolução de 30 suspendesse o jornal, via ali Menotti no apogeu, líder do movimento renovador, com Oswald de Andrade. Via Cassiano oferecer a esse movimento a contribuição original da sua bela poesia densa de Brasil. Via Cândido Motta Filho, inteligência bem moça, na revelação da sua agudeza crítica. Só não via dramaturgos e comediógrafos em meio aos rebeldes.

O teatro diferente de então resumia-se ao de Brinquedo, travessura carioca de Álvaro Moreyra e Luís Peixoto, esbanjando fantasia. Algum tempo depois é que Oswald escreveu “O Homem e o Cavalo”, “A Morta” e “O Rei da Vela”, tentando uma revolução na Dramaturgia brasileira, porém principalmente no processo, na técnica, na forma, com um hermetismo perturbador que desprovia de apelo popular as ideias e os intentos inovadores, revolução extemporânea, sob o já avelhantado influxo de Alfred Jarry e dos surrealistas franceses.

Ledor de Bernard Shaw e outros que sarcasticamente demoliam nas suas peças os conceitos e preconceitos do capitalismo opressor, propondo reformas sociais, surpreendia-me a omissão do tempo novo no teatro nosso, teatrinho de costumes, em que a presença da realidade se reduzia à exploração burlesca das aperturas sofridas pela pequena classe média.

Então, vim a conhecer Joracy. Foi, repito, em 1931, na estreia paulistana de “O Bobo do Rei”, sua primeira obra de real valor, premiada, aliás, pela Academia, a do seu encontro feliz e duradouro com o estupendo intérprete, Procópio Ferreira. Se me deleitou o diálogo, com paradoxos wildeanos, se apreciei a construção das cenas que conduziam ao desfecho verossímil, também me impressionou a temática, de cunho social, buscando na indigência dos morros as figuras de Pinguim e Picolé, portadoras de alegria ao solar de milionários blasés. O amor ao próximo refletia-se na criatividade artística. Era o prenúncio da consagração do autor e do ator, em “Deus lhe Pague”.

Não foi só na plateia que aplaudi “O Bobo do Rei”. Foi também no Diário de São Paulo, como crítico teatral. O comediógrafo agradeceu e logo o afeto nos ligou. Assim, numa noite de garoa, convidei-o a cear em restaurante boêmio. Bom vinho, bom macarrão, boa conversa. E Joracy me confidenciou uma ideia que lhe bolia e remexia por dentro. Era a de transformar um mendigo em protagonista de comédia dramática, porém mendigo que fosse mais um presenteador do que um pedinte, pobre diabo com a riqueza espiritual dos anjos e também com a astúcia de um Maquiavel; no adro da igreja, ao invés de suplicar esmolas, em tom lamurioso, diria galanteios às damas ricas e beatas, cordial e animador com toda a gente.

E não tardou a peça, de sensacional triunfo no Brasil e no exterior. Dir-se-ia que outras de Joracy, com menor sucesso, contêm personagens mais convincentes, entrecho mais plausível, conjunto mais harmônico. Ainda assim, “Deus lhe Pague” a todas supera, porque foi pioneira. Acertadamente, o ensaísta Décio de Almeida Prado lhe atribuiu a significação histórica de haver estendido o alcance da comédia brasileira, trazendo aos palcos nacionais um reflexo, embora longínquo, das preocupações provenientes da revolução russa e da crise econômica universal. Com “Deus lhe Pague”, acentuou, olhamos, bem ou mal, para o mundo contemporâneo. Olhamos bem, creio para o mundo novo e para o novo Brasil. Adonias Filho, de tanto valor na crítica literária quanto na obra de ficção que já o projeta além das fronteiras. Adonias, em seu discurso recebendo Joracy neste salão, salientou que “Deus lhe Pague” trouxe ao nosso Modernismo a Dramaturgia que lhe faltava. A peça coincidiu com o advento dos romances nordestinos e com eles colheu, ainda que de outra forma e noutro campo de observação, a fala e o sentir popular.

O Joracy tão humano, que já se anuncia em “O Bobo do Rei”, revelou-se em “Deus lhe Pague”. Redimir um vulto simbólico da miséria extrema, levar às ovações de todas as plateias um sofredor anônimo das sarjetas, foi o que ao dramaturgo pediu a sua alma piedosa. Mais do que num pensamento político socializante, a comédia inspirou-se na simpatia natural, sentimental, do autor pelos desgraçados. Talvez sob a influência russa de Tolstoi, não sob a de Lenine. Em lugar do Marxismo, o Cristianismo em sua fonte, a dos Evangelhos.

Todavia, seja qual for a motivação que se lhe atribua, o teatro de Joracy revela uma consciência atuante, que apreendeu e exprimiu os anseios da época, expôs os desequilíbrios sociais, denunciou os prósperos exploradores da pobreza desarmada, fez da cena um veículo de contestação aos privilégios da minoria, que ninguém ainda se atrevera a questionar diante das plateias.

Tem um quê de contraditório a predileção de Joracy por um gênero de Literatura que se baseia em conflitos existenciais. Quem criou tantas personagens, grotescas ou patéticas, que se digladiam no entrechoque dos sentimentos e das situações, foi a mais conciliadora das criaturas. No cuidado constante de não aborrecer ou decepcionar alguém, ia a extremos pitorescos. Na edição especial que a Revista da SBAT dedicou à sua memória, conta Luís Peixoto uma historieta que me afirma autêntica e bem retrata o Joracy que não queria causar desânimos. Em resumo, foi assim o episódio...

Certa vez, apareceu-lhe um rapaz com pistolão grosso: carta da presidência da República. Trazia-lhe uma peça, pleiteando que a lesse. Pois sim – respondeu o que jamais acertava a dizer não. Dias depois, volta o moço e Joracy: “Parabéns. Esplêndidos os três atos.” E o autorzinho em projeto: “Quer então me recomendar ao Procópio?”. Joracy, quebrando o corpo: “Sem dúvida... Mas, por que não reduz a comédia a dois atos? Ainda ficaria melhor. Se fizer isso, recomendo.” O rapaz concordou e ao fim de uma semana reapareceu com a condensação feita. Após leitura às pressas, Joracy: “Agora, sim! É coisa boa! E seria ótima num ato só. Tal qual no teatro grego. E introduza um coro, ouviu?”. Novamente o rapaz aquiesceu. E tornou com texto que não ia além de algumas páginas. Joracy folheou-as e: “Que maravilha! Você conseguiu transformar a peça em verdadeira sonata. Estou notando que sua vocação é de músico. Vá por mim. Entre no Conservatório e há de ser um violinista de primeira!”

O rapaz saiu, sumiu. Muitos e muitos anos depois, um cidadão amadurecido avistou Joracy na rua, aproximou-se, bateu-lhe no ombro. E: “Mestre, recorda-se de mim? O que lhe trouxe uma carta do presidente. Segui o conselho que me deu. Agora sou o violino spalla na orquestra do Municipal.”

Até sem querer, Joracy fazia o bem. A vida é que, no começo, o tratou mal. Carioca da gema, dos que vêm de lares modestos, educação com esforço, casadinho aos dezenove anos, recorreu ao ganho miúdo e incerto da imprensa para sustentar a mulher e os filhos que surgiam. Logo o atraiu a criação teatral. A ninguém interessou a sua primeira comédia, “Fruta do Mato”. Insistiu, na ânsia de melhorar a situação do bolso. E eis que, em 1925, estreia na revista, mas de parceria com autor já encaminhado. A seguir, um sucesso, com obra toda sua, também revista. E outra mais, de boa aceitação. Os títulos de ambas testemunham a paciência jovial do lutador: “Me leva, Meu Bem”; “Calma no Brasil”.

E o comediógrafo? Mesmo com a frustração da tentativa inicial, foi teimando, à espera de obter um apoio. E em vão. Finalmente, o ator-empresário Jayme Costa aceitou um original seu. E só porque Joracy, num truck, apresentara a peça como francesa, que havia traduzido. A história, de um humor pungente, contou-a Raimundo Magalhães Júnior, que tanta coisa do passado pesquisa e esclarece, disfarçando na fluidez e na limpidez da prosa a canseira da investigação.

A segunda comédia de Joracy já lhe foi pedida, não oferecida com o amargor de um estratagema irônico. Abria-se o caminho a “O Bobo do Rei” e a “Deus lhe Pague”. E ora divertindo, ora comovendo, Joracy escreveu 32 comédias. E seis revistas, uma opereta, várias peças infantis, duas novelas e muitas peças radiofônicas, além de argumentos cinematográficos.
 
Se no último tempo do viver reduziu a produção foi porque à defesa dos direitos autorais se devotou de corpo e alma, o corpo combalido e a alma guardando a energia de jovem. A essa defesa serviu com o fervor de um paladino, também com a dialética mais convincente e a diplomacia mais sedutora. Nos congressos internacionais sobre o assunto, ninguém o suplantava, conquistando a admiração geral. Sua morte foi profundamente sentida pelas associações arrecadadoras do mundo inteiro, solidarizando-se com a SBAT, da qual foi Joracy, por toda uma década, o presidente eficientíssimo, abnegadíssimo. Eleito seu presidente de honra, já certo do fim, não abandonou a causa. A derradeira vez que o vi de pé foi no meu apartamento. As vésperas de novo e irrecuperável derrame, sugeriu-me uma reunião com Raymundo Faoro, o jurista de tanto mérito e o pensador político de Os Donos do Poder. É que, integrando Faoro o Conselho Federal de Cultura e havendo ali matéria de direito autoral a ser debatida, queria apresentar os pontos de vista da SBAT.

Já tudo exposto, com a brilhante colaboração do seu fiel amigo e companheiro de luta, Daniel Rocha, Joracy provou um imprudente licorzinho, levantou-se devagar, apoiando-se na bengala. Um gesto de adeus. Sorria.

É assim que o acalento na memória. Não o que depois encontrei no leito, alheado da vida que lhe sumia, ou, consciente, procurando ocultar, disfarçar, a dor angustiosa. Esta noite, o que vejo na recordação é o Joracy que me sorriu pela última vez.

Minhas senhoras e meus senhores,

Venho reunir-me aqui, como novo confrade, a velhos companheiros da Literatura, da Imprensa e do Ensino, todos com o seu feitio próprio, diferenciados ou até distanciados pelas ideias políticas ou pelas predileções estéticas, porém todos participantes da mesma aventura que os solidariza – a da vivência intelectual. E se viver é muito perigoso, como advertia Guimarães Rosa, ainda mais o é na tranquilidade aparente de quem escreve ou dá lições. Todavia, a melhor lição do mundo, no correr dos tempos, talvez seja a dos que só têm por si a força do espírito e com ela resguardam, contra os materialmente poderosos, os valores da civilização. Nos três quartos de século que já completou a Academia, quantas vicissitudes, que tormentas, que mutações, que entrechoques de ideologias e de armas, no País, na terra inteira! Entretanto, permaneceu altiva, serena, inviolada, a cidadela cultural que fundou o maior de todos nós, pobre e obscuro de origem, mas que trazia no cérebro a lâmpada do gênio literário.

Sei que a Instituição de Machado de Assis tem o destino de exprimir no plano da inteligência a unidade nacional. Congrega autores brasileiros, como brasileiros, sem os distinguir por sua procedência, sem os eleger num critério de representação por Estados. Ainda assim, perdoem-me uma vanglória. Porque, neste momento, me é imperioso proclamar que, modéstia à parte, sou sergipano. Sou da província minúscula em território e imensa na contribuição às Letras do País, às ideias criadoras e à crítica, ao estudo da nossa formação, ao conhecimento do idioma, ninho de filósofos e filólogos, de poetas e ficcionistas, de historiadores e jurisconsultos, o rincão de Tobias Barreto e Sílvio Romero, que este Solar da Cultura consagrou um dos seus patronos e um dos seus fundadores. Reino de magia em que vivi a infância, a saudade me reconduz ao meu Sergipe nesta hora feliz.

Senhores acadêmicos,

Sou recebido por vós em data que me diz ao coração. Num 14 de novembro veio ao mundo o que amou e desposou Donana, o inesquecível Melchisedeck Amado, o amado velho Melk. Velho?! Apenas expressão de ternura. Jovem foi até o fim da vida. E que vida! A de um herói no afã de conseguir, em ambientes de pobres recursos econômicos, os meios necessários ao conforto do lar, à completa educação dos filhos, tantos e tantos, esquecendo-se de si para assegurar bem o futuro deles. Melk, de multiformes labores, que frequentemente o afastavam de nós, e que era, na volta, a alegria chegando, a festa dentro de casa, em Itaporanga, em Aracaju, em Maroim, em Ilhéus, em Itabuna, em Salvador.

Conheceis, pelas memórias do seu primogênito, quanto o seduzia o Teatro. E por que me fiz teatrólogo, porque teatrólogos foram o patrono e quase todos os ocupantes da Cadeira 32, com a única exceção de Laet, cujo humor, aliás, se afina com o de Shaw, preferi a data de hoje, a data do velho Melk. E a vós, senhores acadêmicos, agradeço a escolha com que me honrastes e que agora me permite descer desta tribuna com o pensamento alteado até onde está aquele que via nos filhos nascer a luz da aurora.

14/11/1973