Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera
do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto; cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampados, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes...
Os sertões, 1902)
A SECA
De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.
Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.
Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estoico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.
Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregla as estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.
Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens...
Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...
É o prelúdio da sua desgraça.
Vê-o acentuar-se, num crescendo, até dezembro.
Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.
É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo. (1)
Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último.
Aquele dia é para ele o índice dos meses subsequentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.
A seca é inevitável.
Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há de revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras - não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto considera a pobre apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao, longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos "farejando a água"; - e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício. Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em um lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.
Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessendentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos, - forte e carinhoso - defendendo-se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.
Baldam-se-lhe, porém, os esforços.
A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, constrastando com a fuga das seriemas, que emigram para outros tabuleiros e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a magrém, abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.
À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre.
É mais um inimigo a suplantar.
Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro porque sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, “vindo em cima da fumaça”, é invencível.
O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.
Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita - a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.
Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras.
Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorrado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todos exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.
E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, veem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropiados, os magros bois famintos, em busca do último repasto...
Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se afinal.
Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.
(1). “Conta-se que no Ceará fizeram esta experiência diante do naturalista George Gardner; mas o sábio fazendo observações meteorológicas, e chegando a um resultado diferente do atestado pela santa, exclamou em seu português atravessado: Non! non! Luzia mentiu...” Sílvio Romero, A poesia popular no Brasil.
(Os sertões, 1902.)
Judas-Ahsverus
No sábado da Aleluia os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lava-pés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável Sexta-Feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as atividades — despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se os caminhos — e que as luzes agonizam nos círios bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas rezas e nos retiros, caindo um grande silêncio misterioso sobre as cidades, as vilas e os sertões profundos onde as gentes entristecidas se associam à mágoa prodigiosa de Deus. E consideram, absortos, que esses sete dias excepcionais, passageiros em toda a parte e em toda a parte adrede estabelecidos a maior realce de outros dias mais numerosos, de felicidade — lhes são, ali, a existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, do círculo fechado das “estradas”. Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o Redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfrequentados rincões.
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas sobem por vezes ao céu, levando
disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a divindade; e ele não se queixa. Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas, maciça e inexorável — um grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida — da fatalidade; e submete-se a ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria um esforço inútil. Domina-lhe o critério rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou ingênua, mas irredutível, a entrar-lhe a todo o instante pelos olhos adentro, assombrando-o: é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles brejais, manchando-se. Não lhe vale a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando uma promoção na escala indefinida da bem-aventurança. Há concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, numerosos, e, o que se lhe figura mais eficaz, mais vistos, nas capelas, nas igrejas, nas catedrais, e nas cidades ricas onde se estadeia o fausto do sofrimento uniformizado de preto, ou fulgindo na irradiação das lágrimas, e galhardeando tristezas...
Ali — é seguir, impassível e mudo, estoicamente, no grande isolamento da sua desventura. Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem — e este pecado é o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua...
Ora, para isso, a Igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinização da vingança.
Mas o mostrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à missão complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos em fora, tão pisoado, tão decaído e tão apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de tantos que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a
desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da farragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta.
O judas faz-se como se fez sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do terreiro.
Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa do seu gênio rude longamente trabalhado
de reveses; onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente,
os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas...
Recua meia-dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.
Em torno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a maravilha.
Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ricto expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...
Novo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos...
E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante...
Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel Ângelo: arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma
estrada para toda a Terra. Que a Terra toda contemple o seu infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...
Embaixo, adrede construída desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura demoníaca apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalhos e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente.
* * *
E Judas feito Ahsverus vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, eriçandoa;
cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza. E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem-fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, “de
bubuia” sobre as grandes águas.
Não para mais. À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal” e aperrando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento. As balas esfuziam-lhe em torno; varam-no; as águas, zimbradas pelas pedras, encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e ele parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, este eco de um anátema vibrando há vinte séculos:
- Caminha, desgraçado!
Caminha. Não para. Afasta-se no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um estirão retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De súbito, no vencer uma volta, outra habitação: mulheres e crianças, que ele surpreende à beira do rio, a subirem, desabaladamente, pela barranca acima, desandando em prantos e clamores. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios, os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos e tumulto, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles, descendo...
E vai descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspeto e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços,
desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados...
Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente...
Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos — lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo descendo...
(À margem da História, 1909)