Não fora a alegria com que recebemos cada novo companheiro e eu vos diria que esta é a vossa festa. Hoje, tudo aqui é vosso, ou para vós, pois assim nos habituamos a acolher os que chegam para o nosso convívio de cada dia. Em verdade sei que é a vossa grande festa espiritual, aquela que cada um de nós imaginou algum dia. Certamente tereis acalentado aquele sonho que me faz lembrar esta página de René Doumic:
Inicialmente é uma vaga idéia encontrada pelo meio do caminho da vida, menos uma idéia do que um desejo, sonho ainda remoto. O futuro imortal distingue-se, porém, na sua carreira, na qual tem posição de relevo. Seu nome começou a circular sobre os lábios dos homens. E de vários lados lhe chegaram solicitações. Os de seu círculo admiram-se de que ainda não haja pensado na Academia, sugerem-lhe que deveria apresentar-se, e, fortalecendo-lhe o ânimo, graças à fácil difamação, insinuam que faria melhor figura do que muitos outros. Sem dúvida, ele não cede logo a essas vozes tentadoras; mas são vozes de sereias, muito agradáveis para que se recuse por muito tempo a escutá-las. A idéia toma corpo, deixa de parecer-lhe presunçosa; habitua-se a ela: eilo virtualmente no prélio.
Porventura, terá sido diferente o vosso caminho, ou o vosso sonho? Permiti que vos diga não o acreditar. Tende, porém, a certeza de serem os nossos votos para que vos sintais perfeitamente a gosto na Poltrona dita da imortalidade, e que Monteiro Lobato, nas famosas cartas a Godofredo Rangel, confessou que o assustava.
Espero que não vos assusteis. Contudo, para não incidirdes no erro tão freqüente de imaginar que conheceis a nossa Academia, desejo advertir-vos que ela é misteriosa. Da Academia Francesa escreveu Valéry que a sua singularidade consiste em ser indefinível. O conceito bem se aplica à nossa Casa, e,por certo, muito contribui para a curiosidade pública, primeiro passo em direção à fama que, por todo o País, envolve a nossa instituição.
Aliás, embora tal mistério nos seja essencial, e involuntário, por ele pagamos certo preço, pois é grande, e até importante, o número daqueles que, por não nos aceitarem como somos, investem contra nós. Sem querer, contribuem para a nossa maior notoriedade, e para nossa grandeza. A alguns o tempo concede a graça do arrependimento; outros, no entanto, jamais alcançam compreender-nos, talvez inconformados com a circunstância ou a eventualidade de não se lhes haverem aberto as portas às primeiras pancadas com que nos anunciaram o desejo de ingressarem para a nossa Companhia. Sem dúvida, esquecem-se de que Victor Hugo foi três vezes vencido em prélios acadêmicos. Ou julgarão o exemplo mesquinho?
Também não alcançam que nos recusemos à eventual monotonia de uma reunião de escritores. Nisso, por sinal, temos sido recalcitrantes. Dir-seia que amamos a variedade, por vezes o contraste, e até o inesperado. Já reparastes, Senhor Deolindo Conto, como são freqüentemente sem lógica as sucessões na Academia? Um orador substitui um romancista ou vice-versa. Um poeta toma o lugar de um historiador; um médico sucede a um filósofo. Daí esta observação de Mário de Alencar: “Não somos uma agremiação de sábios, nem temos sido, apesar do nosso título, nem podemos ser uma privativa companhia de puros homens de letras.”
Sinal de que, conservando bem presentes os bons conselhos dos fundadores, jamais nos descuramos de ter conosco alguns grands seigneurs. Ou não vos lembrais do que, aí pelo início do século, dizia Nabuco a Machado de Assis: “Nós precisamos de um certo número de grands seigneurs de todos os partidos. Não devem ser muitos, mas alguns devemos ter, mesmo porque isso populariza as Letras.” Certo? Errado? A verdade é que, fiéis ao ensinamento, jamais inscrevemos em nosso pórtico algo semelhante ao que, para afastar os profanos, se colocara no da Academia de Platão: “Só entra aqui quem for geômetra.” E graças a isso podemos ter o orgulho de contar entre os dos nossos antecessores nomes como os de Oswaldo Cruz e Santos Dumont, que, certamente, aqui não entrariam trazendo como passaporte um volume de crônicas ou poesias.
Aliás, não fazemos mais do que seguir a Academia Francesa, nosso proclamado modelo, e ainda hoje repleta de políticos, e militares, que parecem tornar cada vez maior e mais luminosa a legenda da instituição. Émile Picard, ao arrolar alguns dos sábios que a integraram, teve a satisfação de mencionar Flourens e Claude Bernard entre os fisiologistas; Cuvier, o fundador da Anatomia; Berthelot, o químico; e Dumas, o extraordinário autor das Lições de filosofia química. É possível que os argutos eleitores desses sábios acadêmicos soubessem da indissolúvel união entre a Ciência e a boa linguagem. Aquela não vive sem esta. Daí haver Joaquim Nabuco, nosso primeiro Secretário-Geral, lembrado no seu discurso inaugural: “A Literatura quer que as Ciências, ainda as mais altas, lhe dêem a parte que lhe pertence em todo o domínio da forma.” E por que não evocarmos este conceito posto por Lavoisier no prefácio à sua célebre Química – “Por mais certos que sejam os fatos, por mais justas que sejam as idéias que tiverem feito nascer, eles não transmitiriam senão impressões falsas e não dispuséssemos de expressões exatas para os designar.”
Mas, se a desvanecem os nomes dos famosos sábios que a ilustraram, não se sente a tricentenária Academia da França menos orgulhosa por haver acolhido os grandes marechais de França, cuja lista se abre com Villars, o vencedor de Friedlingen, e se prolonga até Foch, o herói de Verdun.
Contudo, por mais plausíveis os argumentos que abriram as portas da Academia àqueles que o próprio Machado de Assis chamou “os expoentes”, não têm impedido as agressões, as críticas, as verrinas que de quando em quando nos caem sobre o telhado, talvez para provar se está bastante sólido. Muitos ainda não perdoaram a teoria de Nabuco, que dizia a Machado: “Devemos fazer entrar para a Academia as superiorides do País.” Ao que acrescentava ser o meio de “torná-la nacional”, evitando-lhe talvez sorte igual às muitas que, desde a Colônia, jamais lograram alcançar a maioridade. Em verdade, é o que se tem feito. Cabe, porém, acentuar que a Academia escolheu os seus caminhos graças ao consenso mais ou menos geral pois jamais conheceu a figura dos “grandes eleitores”, em que pese à influência, em certas fases, de Machado, Rio Branco, Mário de Alencar, ou Afrânio Peixoto. Aqui, Senhor Deolindo Couto, cada qual – apesar de quanto se diga – não tem mais do que o próprio voto.
Ah! o voto. Eis a fonte dos nossos sofrimentos. “A contagem”, escreveu Doumic, “é a grande máquina de fazer decepções; ela será o ponto de partida de todas as recriminações.” Não lembrou Maurois, nas suas Memórias, haver candidato que, tendo a certeza de vinte e sete votos, apenas alcançou três? Na realidade não há candidato derrotado – e freqüentemente até os eleitos – que se não considere traído. Nem há como impedir que medrem todas as lendas e fantasias a propósito da insegurança ou fluidez das promessas eleitorais dos acadêmicos. Que fazer se tomam a simples cortesia por inabalável compromisso? Daí os equívocos, os mal-entendidos, as incompreensões, que não custam em transformar-se em áspera objurgatória. E devemos confessá-lo que nos têm feito mal, pois, não raro, atemorizam alguns daqueles que desejaríamos entre os nossos. Assusta-os o mistério ou a proclamada dubiedade dos votos acadêmicos. Numa carta que está a completar sessenta anos, pois é de 13 de dezembro de 1904, obervava Nabuco a Machado:
Parece-me que alguns não suportam a idéia da não eleição, como se fôsse um desaire. Você sabe que não há desaire; a escolha de um nome pode ser explicada por circunstâncias, além do valor pessoal do candidato. O preterido não perde nada; ao contrário, fica uma espécie de dívida por parte da Academia, que não fará parar à porta, esquecido, quem já tiver direito a ocupar cá dentro uma Cadeira.
Infelizmente poucos aceitam a hipótese do insucesso. Quantos, que estimaríamos aqui sentados, não evitam a nossa porta, e passam ao largo, esmagados pelo espectro de possível mau êxito? Aliás, para lhes deter os passos de tímidos namorados da Academia, há, além do eventual malogro, o pedido de inscrição e as visitas de praxe aos futuros confrades. “Via sacra das visitas”, chamou-as Maurois, que acrescentava:
Visitar trinta e nove homens todos, ou quase todos, notáveis, uns como escritores outros como generais, prelados, almirantes, homens de ciência, embaixadores, não é nada entediante. Longe disso. Os que têm intenção de votar a favor do visitante, dizem-no logo, e isso torna o encontro amistoso e confidencial; os que lhe são hostis, recorrem a várias táticas curiosas de observar, e que vão da franqueza absoluta à total abstenção.
De fato, se para muitos a exigência representa um nonado, ou até agradável oportunidade para novos conhecimentos, para outros significa obstáculo que o temperamento jamais lograria transpor. Não seria o caso de cogitarmos de o retirar da soleira da nossa porta? Por que não admitirmos, em lugar da inscrição e das visitas, uma simples aquiescência do candidato? Na Academia Francesa, invocada desde a nossa fundação, é recente o exemplo de Henry Montherland, conhecido ouriço do mundo intelectual parisiense, e que transpôs os umbrais da Instituição sem bater à porta dos atuais colegas. Tudo muda, a começar pelas idéias, hábitos e preceitos. E, mercê de Deus, nada tem variado mais do que a nossa Academia, que, apesar da aparência conservadora, jamais permaneceu à margem da natural evolução das tendências ou preferência de cada época. Realmente, o exterior pode ser o mesmo; mas quanto tem caminhado o pensamento da Casa de Machado de Assis. Por isso, a antiga desavença com o inquieto e fabuloso Graça Aranha não impede aqui estarem muito a gosto alguns dos demônios da Semana de Arte de 1922. Outros demônios virão às nossas Poltronas, que, possivelmente, os transformarão em anjos cheios de candura, nédios como Jorge Amado, ou sedutores como Menotti del Piechia.
Afinal, o que sustém a nossa agredida imortalidade senão permanente adaptação ao gosto de cada época, independente ou acima de idéias, correntes, seitas, ou escolas?
Mas, nesse desfiar de motivos para a tradicional malquerença que, em cada geração, faz que alguns se atirem contra nós, ainda não vos disse tudo. Quem não ouviu censuras ao tranqüilo chá com que antecedemos as reuniões das quintas-feiras? No entanto, não é mais do que modesta reminiscência da Revista Brasileira, onde, primeiramente, se encontravam à tarde os fundadores da Academia. “Conversava-se de tudo”, lembrou mais tarde Mário de Alencar – “sem programa, como num encontro casual. Havia chá e biscoitos, havia cordialidade, havia prazer sem constrangimento”. Sinal de que ontem, como hoje, tinham o bom gosto de não falar mal dos desafetos.
Não é essa, aliás, função em geral reservada aos amigos?
Também as reuniões semanais da Academia não escapam ao escalpelo dos nossos críticos. Não entendem que alguns homens de boa vontade se encontrem apenas para “compor a eurritmia do pensamento”. Em verdade, cada qual se colocando alheio à própria profissão, é o que fazemos em nossas sessões rotineiras, na pequena sala onde sob a inspiração dos patronos e fundadores, cujas efígies temos à vista, continuamos um comércio de idéias iniciado há quase sete décadas na redação da Revista Brasileira.
Até o hábito dos retratos é o mesmo de outrora. Conta, aliás, Rodrigo Octavio, que, ao tempo em que o seu escritório de advogacia serviu de sede à Academia, lhe oferecera José Veríssimo preciosa coleção de retratos de acadêmicos, que, em fila, colocou na parede. Certo dia, havendo uma consulente levado uma filhinha, esta, apontando para as fotografias enfileiradas perguntou: Mamãe quem são aqueles gatunos?
Por último, vos lembrarei os pequenos sentimentos que nos rodeiam por causa do benemérito legado do livreiro Francisco Alves. Razão teve Afrânio Peixoto ao dizer que “ele nos dá abastança e nos causa tanta injusta animosidade”.
Nada disso, no entanto, Senhor Deolindo Couto, impediu que a Academia, durante uma existência que já não é breve, lograsse levar a bom termo aquela missão que Machado de Assis apontou como essencial: “conservar, no meio da federação política, a unidade literária.” Tornamo-nos, assim, a mais famosa instituição cultural do País, e à qual a pátina do tempo tem juntado, como queria Joaquim Nabuco, mistério e solenidade. Hoje, com todas as suas galas, ela se abre para vos acolher como um dos nossos companheiros.
Já vos disse bastante, senão demais, sobre a Casa a que vindes pertencer. Deixo à vossa maliciosa inteligência tentar devassar os mistérios, as sutilezas e peculiaridades que um bom convívio vos irá mostrando dia a dia.
Agora, depois de vos dizer da alegria com que vos recebemos, cabe-me falar de vós. Por sinal, não fosse a necessidade de atender velha praxe, não precisaria fazê-lo, tantos e tão notáveis são os títulos e as excepcionais qualidades que vos exornam a invulgar personalidade. Começarei, porém, por lembrar que, de todos nós, ides ser o derradeiro a ser ungido por um dos nossos fundadores. De fato – e com isso não revelo nenhum segredo, fostes o último a ter o voto de Magalhães de Azevedo, que há muito era o único sobrevivente do quadro inicial da Academia. Assim, a centelha que recebestes para transmitir a outras gerações vos veio de um daqueles que há quase setenta anos se reuniram para dar início à Academia Brasileira de Letras, em cujo quadro hoje vos integrais ad immortalitatem.
E como é luminoso, Senhor Deolindo Couto, o caminho pelo qual, partindo da Rua da Glória, em Teresina, onde nascestes, chegastes até aqui. Mas, ao tentar recompor os vossos passos antes da adolescência, a grande figura com que me deparo é a do magistrado Henrique Couto –, vosso pai, vosso mestre, e ainda hoje tão presente nas vossas horas. Conheci-o e admirei-o há quase trinta anos, quando, iniciando-me na Câmara Federal, tive-o honrosamente como colega. Representava o Maranhão, que tão bem serviu. E, malgrado a diferença de idade, haver-lhe granjeado amizade, ao tempo em que cresceu continuadamente a minha admiração pelo jurista, que, dentro das boas normas de então, era também aprimorado humanista, amigo dos clássicos da antigüidade, que versara profundamente. Juiz em Brejo dos Anapurus durante a vossa infância, aí vos ministrou ele não somente a instrução primária, mas também parte da secundária.
Contudo, o que ele acima de tudo vos propiciava, naqueles remotos e austeros sertões do Maranhão, era admirável exemplo de devoção à família e à coletividade. Um exemplo – permiti dizer-vos – que, no convívio de nossa amizade, vejo repontar freqüentemente. E a ele tanto vos afeiçoastes, e tanto vos esforçastes por o imitar que até a excelente caligrafia lhe copiastes, e de tal modo que, hoje, revolvendo manuscritos daquela época, muitas vezes tendes dificuldades em saber se são dele, ou se são vossos. Diante de tão poderosa influência, justo que já estejamos a nos perguntar por que também não trilhastes a mesma carreira das Letras jurídicas. Por quê?
Em verdade, se na origem de toda vocação há sempre um exemplo, que a faz despontar e a incentiva ao longo da vida, conforme observação de Roger Martin du Gard, nenhuma prova melhor poderieis ter, Senhor Deolindo Couto, em abono da conclusão do romancista do que o vosso próprio caso.
Tudo levaria a supor que, filho de magistrado, desde cedo ambientado no culto do Direito e da Justiça, não teríeis outro caminho a seguir senão aquele que conduz à investidura dos tribunais.
No entanto, não foi o que se deu.
Contrariando a inclinação que deveríeis trazer convosco e advinha da alta e nobre lição paterna, optastes pela Medicina. E, ainda na adolescência, para ela vos orientastes com aquela firme vontade de bem realizar, que explica os sucessivos triunfos de toda uma vida consagrada à cultura.
A Medicina vos recompensou com as mais altas glórias a opção da juventude. Primeiro aluno de vossa turma na velha Faculdade de Medicina de Salvador, continuastes no Rio de Janeiro a manter essa preeminência, de que resultou, com o orgulho de vossos colegas, a simpatia e o apreço de vossos mestres. Mas só o título de doutor em Medicina, com uma larga carreira aberta diante de vosso olhar, não vos bastava; a Ciência vos convocava a outros misteres, nos amplos limites de seus horizontes, e a essa convocação prontamente atendestes, disputando uma cátedra na Faculdade Nacional de Medicina. criando e dirigindo o Instituto de Neurologia, recebendo a consagração de membro efetivo da Academia Nacional de Medicina, aceitando pouco depois a sua Presidência, e sem deixar de aprimorar, a cada hora, a cada dia, o vosso tirocínio de homem de ciência, na amplidão dos anfiteatros ou na reclusão dos laboratórios.
Ao apreciar a vossa vida vitoriosa, para inquirir o mistério de sua inclinação, fui levado a concluir que não poderíeis confirmar a tese de Roger Martin du Gard. Onde o exemplo que teria decidido o vosso destino, a ponto de vos afastar do caminho paterno?
Encontrei a resposta a essa pergunta no vosso discurso de posse como Membro Titular da veneranda Academia Nacional de Medicina, no trecho em que recordais os dias de infância e juventude em Brejo dos Anapurus, ao tempo a terceira cidade do Maranhão: surgiu-me o pendor profissional naquele recanto onde não havia senão um velho médico, beatificado pela gratidão de todos, que, sem exceção, eram seus clientes, e, sem discrepância, gratuitos.
Facilmente imaginamos, no menino que despertava para o entendimento do mundo, a fascinação exercida pelo velho médico sertanejo, perdido num pequeno burgo do interior, e a atender ao sofrimento alheio, sem outra recompensa além da gratidão humana, nem sempre fácil de encontrar.
Foi ele quem vos deu o exemplo de bondade, dedicação, vontade de servir, espírito de abnegação e sacrifício que, simultaneamente ao exemplo de honradez, amor aos estudos e probidade profissional que recolhestes de vosso pai, iria decidir, desde cedo, o rumo de vossa vocação.
Devo aqui assinalar uma circunstância, que me parece altamente expressiva, entre aqueles muitos avisos misteriosos com que o destino, revelia de nossa vontade, vai traçando o roteiro de nossa existência sobre a terra. A rua onde nascestes, na capital piauiense, tem este nome que as sucessivas gerações não conseguiram mudar: Rua da Glória.
Lembro-me agora que, entre as frases populares que encantavam Maurice Barrès, homem de sua terra e de seu povo, figurava esta, que desejo aplicar ao vosso caso: “Cada um de nós segue a estrada que passa na sua aldeia.”
Seguistes a Rua da Glória, Senhor Deolindo Couto, e foi ela que, orientando os vossos passos, nos muitos caminhos deste mundo, vos trouxe à consagração da Academia Brasileira, a que pertenceis agora pelos altos valores de vossa personalidade.
Um dos biógrafos de Napoleão acentuou a circunstâcias de que este, por uma espécie de premonição magnética, ainda nos dias de sua juventude, ao enumerar, num de seus cadernos de estudo, as possessões inglesas na África, escreveu estas quatro palavras numa página em branco: “Santa Helena, pequena ilha...”
Acabastes de assinalar, Senhor Deolindo Couto, que, também na vida de vosso antecessor nesta Academia, um pequeno fato, aparentemente destituído de sentido, trazia em
si idêntica premonição. A Casa das Estrelas, loja de comércio situada no sobrado onde transcorreu uma parte de juventude de Adelmar Tavares, diz-nos hoje que, em realidade, o convívio com os astros seria o destino do grande poeta lírico:
A noite baixou silente,
E então cantei tristemente
As mágoas... para esquecê-las...
E a noite, ouvindo o meu canto,
Que era a música de um pranto,
Encheu-se toda de estrelas...
Às estrelas, que desde cedo iluminaram o caminho do poeta que vos antecedeu na Academia, corresponde a constância da glória no vosso destino. E outro não foi o motivo por que, ao sairdes de Salvador para o Rio de Janeiro, onde completaríeis a vossa maturidade de espírito, foi no bairro da Glória que encontrastes a vossa primeira residência na Capital da República.
Por isso, na noite em que festivamente vos recebemos na Casa de Machado de Assis, culminação de toda uma vida gloriosa consagrada à cultura, é-me grato acentuar que a glória tem sido, na ordem geográfica e no plano do espírito, o ambiente natural e o termo de vossas jornadas, como se a ruazinha de Teresina, que vos acolheu quando chegastes ao mundo, tivesse verdadeiramente o simbolismo daquela estrela cadente que riscou o céu no instante do nascimento de Liszt.
Não sucedeis nesta Casa apenas a um poeta, que soube ser um dos mais puros líricos da Literatura brasileira –, intérprete genuíno da alma de nosso povo. Sucedeis também ao magistrado, que honrou a toga, no exercício contínuo da perfeita justiça. Trovador e juiz, Adelmar Tavares pode ser compreendido por vós no magistral discurso que acabais de proferir, porque trazeis em vosso espírito, de harmonia com a vocação científica, uma apurada sensibilidade de escritor e uma consciência orientada no sentido do Direito.
Quem tem, como eu, a fortuna do vosso convívio, sabe de longa data que, no decorrer dos diálogos convosco, repontam freqüentemente reminiscências jurídicas que de início nos surpreendem, como se vos houvésseis dado ao capricho de estudar Medicina e Direito. E mais: servido sempre por aquela retidão de ordem moral, que é a essência dos verdadeiros magistrados.
É a voz de vosso sangue que fala nessas ocasiões, restituindo-nos a lembrança e a admiração ao vosso pai, o Desembargador Henrique Couto, cujo nome se engrandeceu na magistratura do Maranhão e na Faculdade de Direito de São Luís, como figura eminentíssima, que se recorda como ensinamento às novas gerações.
Dele herdastes também, Senhor Deolindo Couto, com a propícia conspiração do ambiente intelectual da terra de João Lisboa e Gonçalves Dias, o gosto das coisas literárias, que também cedo madrugou em vosso espírito.
Dez anos de infância passastes no sertão maranhense, antes que fôsseis trazido a São Luís, para uma nova etapa de vossa existência. E nesse período só tivestes um mestre, na pessoa de vosso pai.
Com emoção já me recordastes uma vez este traço biográfico do Dr.Henrique Couto: as manhãs de seu dia, durante o tempo em que morastes em Brejo dos Anapurus, ele os emprega integralmente no mister de ensinar aos cinco filhos, a que se somavam mais três ou quatro meninos, numa espécie de microescola, em vossa própria casa. E como ao tempo vigorava o regime dos exames parcelados, foi esse mestre que vos preparou para os exames do Liceu de Teresina, cenário de vossos primeiros triunfos, com as notas distintas ou plenas que constituem a alegria conjunta do pai e do filho, no regresso ao lar.
Razão tinha Joaquim Nabuco quando afirmava, no famoso capítulo em que recordou o engenho de Massangana, que os filhos dos pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído das vagas.
Quando o Conselho Federal de Educação vos elegeu seu Presidente, como sucessor de nosso saudoso amigo e mestre Edgard Santos, destacou em vossa personalidade esta outra faceta, que vos identifica ainda uma vez com o vosso pai: o educador. E isto porque não se extraviou com o tempo, antes se aprimorou com ele, o gosto de ensinar e educar, despontado na juventude.
Certa vez, a cidade de Caxias, palco do conflito que daria ensejo à primeira grande ação pacificadora do único duque de nosso nobiliário, voltou a convulsionar-se por ação de dois grupos políticos. E o que fez o Duque de Caxias para dirimir o conflito, armado, seria feito pelo Dr. Henrique Couto, no litígio político, como juiz investido de igual missão. Ao chegar, encontrou a cidade em pé de guerra. Grande parte da população se havia retirado para outras cidades, temendo a repetição dos episódios sangrentos do século passado. Sem efetuar uma única prisão, nem usar de outras medidas coercitivas, o magistrado conseguiu, utilizando sobretudo a sua força moral, normalizar a situação, podendo os caxienses, dentro de poucos dias, retornar aos seus lares.
Só uma pessoa de sua família quis o Dr. Henrique Couto levar em sua companhia nessa hora espinhosa: fostes vós, Sr. Deolindo Couto. E ali aprendestes como lição, para o resto da vida, que se pode chegar à paz pela própria paz, com a compreensão do instinto cordial do povo brasileiro.
Homem de paz tendes sido, Sr. Deolindo Couto, sem contudo, desprezar aquele instinto de luta, para uma melhor afirmação da própria personalidade, que está na essência da condição humana.
A habilidade com que se conduziu o Dr. Henrique Couto iria influir em vossa vida não apenas por esse ensinamento, pois daí resultou, andando o tempo, a sua nomeação para Secretário de Estado da Justiça.
Mudastes-vos assim para para São Luís, onde se vos desvendou um novo mundo. Desde o Colégio Oscar de Barros, cujo diretor escreveu haverdes sido o melhor aluno que por ali passara, até o Instituto Gomes de Sousa, onde se cursavam os derradeiros exames secundários. Aí, como recordastes ao discorrer doutamente sobre Gonçalves Dias, conhecestes e admirastes Coelho Neto, então em propaganda da sua candidatura à Câmara Federal. E o intenso interesse da capital maranhense pelas coisas do espírito logo vos arrebatou para duas sociedades literárias, de uma das quais fostes o adolescente fundador.
Concluído o curso secundário, o vosso pendor à Medicina vos fez emigrar para Salvador. E, como bom nortista, somente a paisagem carioca deteria a vossa caminhada para o Sul. Por certo, para quem vinha de São Luís, não deviam surpreender os sobrados coloniais baianos, muitos deles verdadeiros arranha-céus debruçados sobre o azul do golfo imenso.
Conhecestes então uma Bahia, que já vive apenas em nossa memória e em nossa saudade. Uma Bahia cheia de “repúblicas” de estudantes vindos do Norte e do interior do Estado, e para os quais a cidade se abria acolhedoramente, outorgando-lhes todos os privilégios. Fostes então um desses privilegiados, aos quais tudo era permitido na antiga metrópole brasileira, tão coisa dos seus forais de cultura bem como da sua tradicional hospitalidade.
Na velha Faculdade de Medicina instalada no antigo Colégio dos Jesuítas, o que vale dizer no local do primeiro centro de educação do Brasil, iniciastes o curso, inevitavelmente ambíguo, de Ciências Médicas e Letras Acadêmicas. Felizmente, não passou de um ano essa amena dispersão. Pois bastou pisar na terra de Castro Alves como calouro com pretensões gramaticais para logo integrardes uma sociedade literária de estudantes em que, à maneira da nossa, tinha cada um o seu patrono, que devia louvar por ocasião da posse. Tal como acabais de fazer hoje.
Descontado portanto o que fizestes, e por sinal lapidado na mais pura linguagem, ao entrar para a Academia Nacional de Medicina, cronologicamente é este, Senhor Deolindo Couto, o vosso segundo discurso de posse acadêmica. O primeiro foi aquele, há coisa de quarenta anos e creio que o elaborastes com emoções bem mais ternas e alvoroçadas do que agora, porque aí os sonhos de mocidade ainda não tinham sofrido os contrastes da vida.
No encontro do Maranhão de Sotero dos Reis com a Bahia de Carneiro Ribeiro ficastes com o sergipano João Ribeiro. O seu elogio, que então realizastes, talvez jamais fosse lido pelo mestre da crítica. Não importava: para vós, era menos uma apreciação do filólogo que neste País e nesta Casa se distinguiu pela universalidade do conhecimento, do que uma tomada de atitude. Preferistes às tricas vernáculas a cultura variada, humanista e severa; deixando de lado as questiúnculas de português, tão comuns na época, elegestes para “guia e autor” um sábio; pedindo-lhe no começo do caminho a mão de companheiro, não queríeis evidentemente a notabilidade transitória dos que brigam pela colocação do pronome; a vossa ambição era de voar pelos mesmos espaços, até onde sobem os eruditos do idioma. Mas com estilo, donaire e austeridade.
Na Bahia, com um pé na soleira da glória, isto é, no seu 1.º ano médico, todos compreendemos esse fervor literário. Alguns dos vossos contemporâneos vos recordam ainda, o mais estudiosos deles, distribuindo-se com método entre as aulas de mestres insignes, ao lado das vetustas igrejas do Terreiro, e a casa humilde da Rua da Lama, a que se seguiu o sobradão do Jogo do Carneiro, povoado de uma revoada de estudantes de diversas escolas, acamaradados em torno de alguns ideais coletivos.
Com a bagagem maranhense assumistes o primado entre eles; com a academia de jovens, firmastes a posição de vernaculista exímio. Na transição da primeira para a segunda série da Faculdade de Medicina não se podia pedir mais...
Viestes, porém, para o Rio de Janeiro; a existência trouxe- vos, numa quadra difícil, a sobrecarga de outros deveres; deixastes, Deus sabe com que silenciosa resignação, o convívio da musa, para obedecer à Ciência; e como interno da vigésima enfermaria da Santa Casa, o menino letrado dissipou-se na obstinação correta do aluno, pontual, aplicado e atento.
O professor, porém, chamava-se Antônio Austregésilo. Ele próprio, detestando a clínica teórica, recomendando aos discípulos que não citassem ninguém, mestre do exemplo e da experiência, o criador da Escola Neurológica brasileira era contudo uma organização perfeita de homem de cultura, que a todo momento conciliava os médicos e os poetas, tanto é certo que “não fazem mal as musas aos doutores”.
Tínheis como ele o que bastava para levar vida afora esse compromisso de aliança – das Letras e da Medicina. Inclinação não vos faltava; faltou-vos o tempo. Porque, não para coexistir mas simplesmente para subsistuir, fostes ser interno do Hospital Naval, soerguido numa aba de morro, ao lado do Túnel Velho; e, depois de dois anos rudes, passastes, por honrosa seleção, a interno oficial da Clínica Neurológica da Faculdade Nacional de Medicina, vosso pouso definitivo.
Já então a especialidade vos absorvia. A ela jurastes uma fidelidade aflitiva. Destas que não se rompem nas situações mais sedutoras. O resto seria acidental (dizíeis): que os mistérios de todas as suas sutilezas e de todo os seus segredos dar-vos-iam, no Brasil e no mundo, a notoriedade justa. E com esta imensa disposição de saber, defendestes vitoriosamente a tese doutoral ao mesmo tempo em que os doutores se faziam em júri de borla e capelo, e a golpes de concurso abristes sucessivamente as portas do Hospital Nacional de Alienados, da docência universitária da cátedra, em sucessão do mestre. A esta ascendestes com uma tese extraordinária que já vos segue os passos na fama universitária. De fato, tendes sido mestre admirável. Não faz muito que, ao empossar-se na Academia Nacional de Medicina, evocou um dos vossos colaboradores, o docente que ministrava o primeiro curso de extensão universitária sobre neurologia infantil. E lembrou o encantamento com que vos ouviam as aulas, “não só pela exposição clara e escorreita, como também pela agilidade de raciocínio e pela erudição”.
Após o concurso, em telegrama de parabéns trocadilhou Afrânio Peixoto, “braço é braço, abraço de Afrânio Peixoto”. Fora concorrente Antônio Austregésilo Filho. No dia seguinte ao resultado, em sua companhia vos visitou o professor Austregésilo. Simples como costumava, disse que ia entregar-vos o filho. Respondestes, com bondade e emoção, que trabalharíeis na caldeira como igual, pois com ele dividiríeis os serviços. E assim foi – no clima da mais leal e fraterna amizade – até o fim.
Pagastes à Alemanha o tributo que desde Francisco de Castro os jovens médicos se habituaram a pagar aos seus maravilhosos hospitais, cursando em Berlim, com o professor Bonhoeffer, a Patologia e a Clínica do Sistema Nervoso. E, uma vez titular da Cadeira, pusestes o melhor do entusiasmo na criação do Instituto de Neurologia da Universidade do Brasil, que é vosso desde a aparelhagem mais delicada até aos requintes da sóbria elegância com que esteticamente o concluístes.
Dispenso-me de discretear sobre os altos méritos que vos credenciam, primus inter pares, nessa neurologia ali tão bem montada, instrumentada e atuante: destes à cidade e à Ciência um pequeno e formoso hospital. Desejo apenas demonstrar que o professor de Neurologia, chamado a pontificar nos congressos internacionais do ramo, membro egrégio de quantas associações dela se ocupam aqui e no estrangeiro, longe de se ter deformado na especialidade – que é o meio de saber-se cada vez mais do cada vez menos – continuou, como no limiar da carreira, a unir a Arte à Ciência.
Mostrastes sem querer, ou contra a vontade, que não é em vão que se lê na infância João Franciso Lisboa ou Antônio Henrique Leal. Sócrates tinha o seu demônio interior; vós tivestes, novelesco, numeroso e irônico, o vosso pequeno demônio, aquele Camilo das primeiras leituras. Talvez dele vos lembrásseis em Lisboa, no ano de 1953, apogeu da vossa trajetória científica, pois ali, vice-presidente do congresso internacional de Neurologia, que convocara mais de três mil professores de todo o mundo, vos coube a distinção de ser – entre os maiores – um dos seus escolhidos para darem a aula programada.
A figura oracular da assembléia era Egas Moniz, prêmio Nobel, esse espantoso Egas Moniz de que esboçastes o retrato iluminado de justiça e admiração. Lutava ele, contorcido pelo reumatismo deformante, com o declínio irreparável das forças: lembrava, no imenso conclave, Pasteur naquele congresso de Londres, em que hemiplégico, entrou pelo braço de Lister. Uma ovação análoga saudou estrandosa e prolongamente o velho mestre.
Pasteur, recebido com tão ruidosa demonstração de carinho, a princípio não a compreendeu; e perguntou, curiosamente, a Lister se era o príncipe de Gales que ia entrando. Ao que o inglês respondeu: “é o príncipe da Ciência, Pasteur!”
Ornado com esse principado imperecível, o sábio português recebeu apoteose semelhante. Já não podia atender aos inumeráveis convidados, que o procuravam. Abriu exceção para Deolindo Couto e Aloísio de Castro. A vossa aula causou impressão memorável. Não faltou com a cesta de rosas e o seu cartão de cumprimentos exuberantes, Júlio Dantas, este egresso irreversível da Medicina para os jardins da Poesia, do Teatro, do Conto, da Crônica, leve e gentil onde há... “rosas de todo o ano”. Conjuraram-se ambos, Moniz e Dantas, para vos academizar: e assim foi que a Academia das Ciências de Lisboa vos acolheu com voto unânime.
Mas, nesse discretear sobre a universidade do vosso renome, não esquecerei o Hospital da Salpétrière. Aí, em certa manhã de 1949, ao visitardes o serviço de professor Haguenau, pediu- vos este a opinião sobre um caso estranho, talvez dos mais estranhos dos últimos tempos, e que ainda pairava sem interpretação. Não demorastes em discorrer sobre o caso, do qual já havíeis visto outro idêntico. E à tarde, ao apresentar-vos a um colega, dizia o professor Haguenau: Le professeur Couto, qui nous a enseigné quelque chose ce matin. Einstein gostava que lhe gabassem a música: era violinista. Mais discreto, temíeis aparecer como profundo conhecedor da Literatura clássica. Só vos deixastes apanhar quando isto foi absolutamente necessário: na tribuna, em que se dão as mãos Hipócrates e Horácio, falando a língua castiça das academias.
As vossas orações e conferências, que formaram e dão vários volumes, têm tudo o que pudicamente ocultáveis no medo que não vos perdoamos – de trair, com as amenidades do espírito, as exatidões da Medicina. Levam todas o cunho da eloqüência plasmada na frase escorreita; aligeiram-se na beleza da forma; ganham com a adjetivação rica e relevo literário; compaginam-se entre as antológicas, de que nesta Academia estão cheios os anais, onde tanto reluziram Aloísio de Castro, Austregésilo, Fernando de Magalhães, Miguel Couto, Miguel Osório de Almeida; e ensinam, e se fazem aplaudir e amar, Clementino Fraga, Silva Mello, Maurício de Medeiros, Peregrino Júnior.
Ao apresentar um dos volumes em que reunistes algumas páginas primorosas, pode Pedro Calmon dizer com acerto: elas mantêm e continuam ilustre tradição, pois harmonizam amavelmente a Medicina com as belas letras. Realmente vêm “de um tempo em que os médicos conspícuos, com mão diurna e noturna (conforme a recomendação horaciana) entremeavam de boa leitura o estudo interminável”.
Em verdade, sempre que deixais o estetoscópio para tomar a pena do escritor, tudo quanto produzis traz a marca do estilista que a intimidade com os clássicos tem constantemente aprimorado. Nem será possível omitir os nítidos perfis com que tendes composto a galeria da vossa admiração. Aí estão comprovando como se bem ajustam, em vossa personalidade, o sábio e o artista, os de Ramón y Cajal e Egas Moniz, dentre os estrangeiros, e os de Carlos Chagas e Francisco de Castro entre os nossos, e a cuja glória compusestes páginas admiráveis pelo bom gosto, a agudeza das observações, e a nota justa de erudição.
Por esses documentos de excelente Literatura se descobre, na sua dimensão integral, a amplitude da vossa individualidade. E principiamos a entrar nos recintos, vedados à curiosidade pública, onde se refugiam os vossos pendores de grande humanista, familiarizado como raros com os problemas da língua portuguesa, versando-lhe com tenacidade a doença e a saúde, explico-me, o direito e o avesso da língua, como disse Vieira, em dia com os filósofos e os lexicógrafos, escrupuloso no escrever sem concessões ao Modernismo, quando este significa o desleixo verbal, e preso com filial carinho aos sublimes modelos de outrora, nessa linha de procedimento intelectual que vos faz neurologista, contemporâneo dos mais avançados, e vernaculista, contemporâneo dos mais antigos e prudentes.
Disso a Academia acaba de ter a prova. Em homenagem ao centenário da morte do cantor de “Y-Juca-Pirama” (logo emendastes, Jucá) precisava-se de quem falasse de Gonçalves Dias, homem de ciência. Aceitastes o desafio; e a vossa encantadora palestra, depois de esgotar doutamente o tema, resumiu de modo comovente a biografia tormentada do poeta, acrescentando à sua poliantéia um comentário original, vigoroso e inesquecível. Só se surpreenderam com esse brilhante ensaio os que não vos vêem nas reuniões amáveis do Instituto após a jornada exaustiva, quando o clínico – terminada a sua manhã de sabedoria e caridade, abençoado por quantos enfermos lhe receberam a visita – ainda acha um momento para discuitir, em roda de confrades, as antigas e modernas Letras, com os seus reptos de recitativo poético.
Às reuniões semelhantes, no gabinete do diretor da Biblioteca Nacional, o saudoso Rodolfo Garcia, chamou uma vez Josué Montello à academia Garciana. Ali, ao crepúsculo, recolhendo do trabalho, escritores despreocupados, sob a presidência paciente de Garcia e a presidência efetiva de Afrânio Peixoto, aquele cachimbando, quieto, sobre algum texto paleográfico, este falando fascinantemente, com a sua prosa colorida, experimentavam a sensação vaga de estarem num jardim helênico, onde as asperezas do mundo eram substituidas pela doce lição dos filósofos.
Tendes a vossa Garciana, espontânea e involuntária, ao meio-dia, do salão decorado de gravuras cariocas, que é pela manhã a ponte de comando, de onde dirigis o melhor hospital neurológico destas bandas, e àquela hora um conciliábulo de toda cultura, abrindo sobre os horizontes do pensamento e da Arte as suas janelas inocentes. Aí falais muito dos maranhenses; e de Camilo, de quem tendes uma das mais completas coleções bibliográficas do País, com a vantagem, ou antes, a agravante, de ter lido, anotado e comentado cada um dos livros úmidos de tanta lágrima, cintilantes de tanta malícia, risonhos de tanta pilhéria.
Sois um camiliano como poucos, além disto com a virtude da peregrinação, pois estivestes em São Miguel de Seide, e a teimosia de completar-lhe o acervo, indo desvendar as suas raridades onde quer que se escondam. Tendes, a propósito do autor das Novela do Minho, a vossa própria opinião médica. Para vós é triplicemente um lingüista, um escritor inimitável e um doente: está na vossa estante, na vossa Literatura e na vossa enfermaria.
Outro dia, com uma penada, mostrastes quão errados andavam os diagnósticos sobre a enfermidade de que morria, sonhando com as palmeiras onde canta o sabiá, o maior lírico da província que vos alimentou, com a seiva ateniense de seu espírito; contastes numa lúcida palestra, de exata medicina, o que sofreu Camilo. Continuais neurologista, sem os desvios, que poderiam ser tomados à conta de futilidade, embora, nesta liberal República das Letras, de que somos cidadãos desimpedidos, lhe chamássemos “fugas vocacionais”; mas seguindo a estrada reta, olhando para a frente, integralmente vós realizais, acima e fora do sacerdócio médico, a harmonia esplêndida da vida para a qual nascestes.
Bem razão me assistia, Senhor Deolindo Couto, ao falar da clara estrada pela qual chegastes até aqui, onde os vossos amigos e admiradores de ontem serão os vossos companheiros de amanhã.
Contudo, não me sendo dado, na brevidade desse discurso, análise mais acurada para sublinhar o alto teor literário dos vossos ensaios, desejo apenas, para concluir, lembrar uma frase de Catão já por vós invocada certa feita: “As raízes das Letras são amargas, mas os seus frutos são doces.” São estes, que,entre nossas alegrias, estais hoje a recolher. Esperamos que eles vos saibam bem. E que da Poltrona onde vos deveis sentir tão à vontade, possais continuar a colhê-los com a tranqüilidade de quem semeou árdua e desinteressadamente. É esta a recompensa aos que, como vós, passam pela vida inspirados por um ideal de Beleza e de Cultura, cuja continuidade constitui não a nossa imortalidade, mas a imortalidade das Academias. Não precisais sequer vos levantar para apanhar aqueles frutos maravilhosos, feitos de sonho e ilusão, e por isso mesmo imperecíveis. Eles são vossos. E da justiça com que eles vos chegam a mancheias podeis avaliar pelo calor dos aplausos que ides ouvir.
4/12/1964