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Discurso de posse

Senhores acadêmicos,

Nos versos que abrem A Cinza das Horas, livro de estreia, Manuel Bandeira formulou, contra o destino, uma queixa isenta de ressentimento, mas cônscia de sua justiça e pouco disposta ao perdão. Quem não conhece pelo menos a primeira quadra desse famoso poema?

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

O requisitório iria ressoar, com frequência, nos versos e na prosa do escritor, ao longo de extensos dias que, no entanto, conheceram, em nossas Letras, uma das glórias mais puras, uma veneração e estima que poucos, muito poucos escritores brasileiros alcançariam dos seus contemporâneos.

Na maturidade, o Poeta se terá reconciliado, aparentemente, com aquele “mau destino” que, cumprida a sentença, viera devolver-lhe os bens destroçados, na juventude, “sem razão nem dó”. A “Canção do vento e da minha vida” permitiria supor que Bandeira se dera afinal por indenizado. Aí o vemos, na altura dos cinquenta anos, a lançar para trás longa mirada, e a concluir, não sem remoque e uns longes de gabolice, que tudo o que lhe tirava o vento, reposto lhe era, e tresdobrado: folhas, frutos, flores; aromas, estrelas, cânticos; afetos, sorrisos, mulheres.

Com precaução, pus o verbo no condicional, que é o reino do aleatório. Permitiria – disse. Não estou persuadido de que Bandeira haja efetivamente acertado as contas com o destino, conquanto o faça crer no Itinerário de Pasárgada. “De fato” – escreve –, “cheguei ao apaziguamento das minhas insatisfações e das minhas revoltas, pela descoberta de ter dado à angústia de muitos uma palavra fraterna.”

Se não houvesse a confidência, eu diria que a canção dos dias maduros se inspirara num sentimento impessoal, nascera do espetáculo de outras vidas, pois, contrario sensu, é a impressão que se colhe na sequência da obra.

Com que fundamento me atrevo a dissentir do próprio Bandeira, na inteligência desse poema? Por que ouso imaginar que o poeta se enganou, não na interpretação dos fatos, porém na do sentimento comunicado pelos versos?

Não haveria excessiva impertinência nisto, se concedêssemos que nem sempre somos nós quem melhor vê dentro de nós. Ou que, frequentemente, sejamos quem pior veja. Bandeira, tão arguto para inspecionar os homens e os acontecimentos, poderia ser mau inspetor de si mesmo. Nada para estranhar. O homem é um tumulto de criaturas, e sua unidade talvez se apanhe mais seguramente de fora que do íntimo. Deixo, porém, esses argumentos, quem sabe falaciosos, e procurarei oferecer-vos razões mais objetivas.

Depois do momentâneo contentamento que se espelha na “Canção do vento e da minha vida”, o que se observa é o retorno do leitmotiv, aquela grave queixa que impregnará toda a poesia de Bandeira. Na própria Lira dos cinquent’anos, acrescida, noutra edição, de novos poemas, o lampejo de euforia, o desdém ao vento, é contrariado por este amargo reparo:
 
Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
E, na edição primitiva, não se lia já o duro “Soneto Inglês n.º 2?”

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.

Em Belo Belo, livro dos sessenta anos, vemos multiplicarem-se os vestígios da persistente mágoa. Leia-se o “Poema só para Jayme Ovalle”. Não sei de versos, em nossa Literatura, que exprimam solidão e melancolia mais entranhadas. Este poema, de ritmo obsessivo, raveliano, parece refletir algo de invariável que flutua no sentimento do poeta:

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

Chuva de resignação! Eu a vejo miúda, apagada, essa que encharca, de fato, e se infiltra mais que a dos súbitos aguaceiros. O triste chuvisco da manhã escura representaria a submissão do poeta ao sofrimento – a submissão, longamente exercitada, que prestes vinha aquietar os seus assomos de rebeldia ou as intermitências de desespero?

Não me sinto seguro, ao formular conjeturas dessa espécie, tão fantasiosas, de ordinário. De qualquer modo, é patente, aqui, a interferência da biografia na obra. E não se há de omitir uma confissão do próprio Bandeira, em página sobre Rachel de Queiroz. Diz ele, com alguma faceirice, que sempre versejou sem vocação de poeta, e que nunca fez um verso “senão para desabafar as suas pequeninas penas e ainda menores alegrias”.

Deixo de lado a primeira parte da declaração, infiel por modéstia, mas tomo nota da segunda, que dá à sua poesia o cunho de desabafo. Como, em Belo Belo, nos vemos longe da transitória euforia da “Canção do Vento e da Minha Vida!”

Entretanto, Bandeira está no auge da sua glória. Tudo o que o vento lhe tirara, tinha-lhe vindo, efetivamente, de retorno. Sua vida ficara cheia de tudo, lê-se no poema. Ai de nós... Sempre falta alguma coisa à vida, principalmente nesses complicados seres, que são os poetas. Mas admitamos que sim: eu me arriscaria, então, a insinuar que plenitude não significa satisfação. O animal humano é insaciável, e estar repleto não é estar satisfeito. Pode dar-se até mesmo o contrário, tão inconsequente é a nossa pobre alma.

Cheia estava a vida de Manuel. Dominara o valetudinário a enfermidade que o acometera e invalidara por longos anos. Negaceando a morte, ganhara forças, multiplicara a produção, dera de trabalhar duro, numa idade em que os outros tratam de se aposentar. Seu nome alteara-se nas Letras nacionais e passara a ser conhecido lá fora. Vê-se rodeado de amigos e doces afetos femininos lhe mitigam a solidão. Afeições e amores suprem as carências daquele grande afetivo que perdera pai, mãe, e irmãos.

Nada disso apaga, porém, a lembrança da adolescência truncada, e nem sempre se mostrará ele resignado, como no poema para Jayme Ovalle.

Nesse mesmo livro, a ferida se abre de novo, em versos desentranhados de “Um retrato da morte”, de Fidelino de Figueiredo:

– Tu és a Morte? – pergunta.
E o Anjo torna: – A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.

Vire-se a página, e se encontrará um Manuel que tristemente cisma:

Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será.

Porém o leitmotiv retorna, vivo, veemente, é no segundo “Belo Belo”, poema que deu nome ao livro. Aí, Manuel abjura, categórico, o poema assim também epigrafado, e anteriormente inserido na Lira dos Cinquent’Anos. Há uma explosão de sentimentos bem diversos dos que inspiraram a “Canção do Vento e da Minha Vida”. Vê-se que a vida não ficara cada vez mais cheia de frutos, de flores, de folhas. Nem de aromas, estrelas, e cânticos. Nem de afetos, e mulheres, e tudo. A plenitude era ilusória. O poeta lamenta:

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero.

Deixo de ler, aqui, todo o poema, que é, por certo, um dos mais felizes dessa fase da produção bandeiriana. São bastante conhecidos esses versos. Quero apenas lembrar que o segundo “Belo Belo” remata nesta exclamação imbuída de sombrio niilismo:

Vida noves fora zero.

Vida noves fora zero! Tudo se converte em nada. Tudo, por fim, é nada. Nada são os frutos, as flores, as folhas. Os aromas, as estrelas, os cânticos. Os sorrisos, os afetos, as mulheres.

Tudo? Nem tudo. Algo escapa à voragem do nada. No poema “Cotovia”, onde, a meu ver, se manifesta o Bandeira mais genuíno, o poeta nos revela um bem que lhe dá instantes de integral felicidade. Um bem que redime: o afloramento do mundo da infância à tona da consciência dilacerada. Só nesse relampaguear de lembranças encontrará refrigério. Trazendo-lhe o mais remoto dos seus dias de criança, a cotovia, de pequenino bico, que sabe torcer o destino e,

... no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais profundo,
traz-lhe, ao mesmo tempo, a extinta esperança, a perdida alegria. A infância é, pois, tudo o que fica desta vida que não passa de uma traição, uma “agitação feroz e sem finalidade”.

Relembre-se, agora, o “Noturno do Morro do Encanto”. Naquele fundo de hotel, que parece um fim de mundo, o poeta mal sente o existir. É uma sombra. Apenas ouve o tempo, “segundo por segundo, urdir a lenta eternidade”. Viveria ainda bastante, após esses versos de 1953. O moço tuberculoso, a quem, em 1914, o médico suíço não dera além de quinze anos de vida, rompeu, galhardamente, até uma idade que nem os mais ambiciosos ousam almejar. Mas a premonição da morte não o deixa, nunca o deixaria. No fundo do hotel, pressente que ela o espreita. Ingênua! Talvez nem desconfie que já foi riscado do mundo dos vivos:

Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.

A morte viria depois de Manuel transpor a pouco pisada soleira dos oitenta. Que diria o médico do sanatório de Clavadel? Os médicos não gostam muito de ver os seus prognósticos falharem.

Nessa altura, o poeta confessava que tinha vontade de morrer. Não é que a vida não lhe falasse aos sentidos, à inteligência, ao instinto, ao coração. Estava cansado, eis tudo. A vida é um milagre, e de sua vida, mais que de outra qualquer, se pode dizer isso. Mas a vida oprime, despedaça. E sobretudo cansa. Manuel estava cansado de milagres e já abençoava a morte, que lhe parecia o fim de todos os milagres.

Grande maçada é morrer – exclama, bonachão. Porém já quer amar a morte, morrerá, quando ela for servida,

Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que, todavia, amei.

A morte, agora, é que o seduz. As saudades o obsidiam, apertam o cerco. E a morte lhe permitirá ir beijar os pais, os irmãos, os parentes, ir abraçar longamente o Vasconcelos, o Ovalle, o Mário. Talvez, mesmo, avistar-se com o santo Francisco de Assis. Depois, ele há de se abismar na contemplação de Deus e de sua glória,

Esquecido para sempre de todas as delícias, dores, perplexidades
Desta outra vida de aquém-túmulo.

Espera partir sem medo – já o dissera. Conta aprender as lições do aeroporto que a janela do novo quarto lhe descobre. Inestimável janela que lhe restituíra a aurora, e que o deixava banhar os olhos “no mênstruo incruento das madrugadas”. A mesa está posta, desde muito, com cada coisa em seu lugar. A noite poderia descer.

Viera a conformidade. Mas o perdão, esse não veio. Numa crônica de 1956, Manuel se diz “velho bardo, já bastante humilhado pela vida”. Quase um decênio depois, nos versos de “Preparação para a morte”, pungem, ainda, as “persistentes mágoas das peremptas feridas”, de que falara em Estrela da tarde. E no poema “Antologia”, também dos derradeiros, e que, segundo confessou, exprime o sentido geral de sua obra, o poeta, reunindo versos de fases distintas, colheu exatamente aqueles que, em diferentes tons, transudam a mesma iterativa idéia de que “a vida não vale a pena e a dor de ser vivida”.

Bandeira submeteu-se, porém não perdoou – dissemos. O que recebeu, e recebeu muito, não o ressarciu daqueles outros bens que lhe foram arrebatados, e que, na verdade, nunca lhe foram restituídos, mas transmudados em bens menos perecíveis, os que nutrem uma vida interior, plena, rica, apta a substituir a outra, que não passa de “agitação feroz e sem finalidade”.

A esses bens, Manuel por certo preferiria Pasárgada. Mesmo sabendo que, possuindo Pasárgada, já não seria Manuel.

Se fosse levado por Satanás ao cimo da montanha, e este lhe perguntasse: “Queres Pasárgada, com a filha do Rei, ou preferes o cetro da Poesia, com o espectro da Morte?” – não duvido que respondesse: “Dá-me Pasárgada e a filha do Rei!” E, abrindo a dentuça, num sorriso irônico, mastigaria: “Volta para o Inferno, com Poesia e tudo!”

O seu lado Ovalle, o seu lado Sinhô, o seu lado Zeca do Patrocínio – boêmios que tanto o fascinavam –, não lhe deixaria trocar a vida sensorialmente vivida por glória alguma deste mundo. Mas o destino tem lá os seus planos, não costuma fazer consultas nem oferecer alternativas e opções. Veio sob a forma de “mau gênio” e surpreendeu o adolescente em sonhos, numa noite de Itaipava, após longo giro a cavalo. Traz-lhe a primeira hemoptise, dá-lhe, como companheira, não a filha do Rei, de quem só veria a cor dos cabelos, mas a Dama Branca, que nunca o houvera de deixar.

Concordareis comigo, estou certo, em que o destino andou bem, não lhe facultando uma opção, pois assim pôde fazer de Manuel esse Manuel que não é só depurada poesia e sutil pensamento, colhido em prosa tão límpida, mas é vida e obra, gesto e criação, figura harmoniosa de homem e de artista.

O preço foi duro. Não há discutir com o destino. Traz-nos o projeto. Talvez nos consinta detalhes de colaborador. Mas a armação, o arcabouço virá pronto. Por quê? Para quê? Nem ao Deus de Einstein, que era o de Manuel – segundo se lê em carta a Odylo Costa, filho –, nem ao meu Deus, que é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó (e também de Ovalle), se ouvirá essa tremenda resposta. Deus ficou mudo. Deus já não fala, desde o tempo dos grandes profetas. Devemos decifrá-lo é dentro de nós.

Sem a violência do “mau gênio da vida”, Manuel talvez se perdesse na multidão. “Quando não escrevo é sinal de que vou passando muito bem, nada me aflige”, disse, numa entrevista. A clausura involuntária, a solidão, o assédio da morte o ajudaram a ser o singular Manuel que viríamos a conhecer.

Considerei, pois, senhores, que, para servir a verdade sobre Manuel, devia eu tomar, aqui, e contra Manuel, a defesa do destino, esse destino a que Manuel jamais perdoou.

O Destino – que agora sou tentado a escrever com maiúscula – em nada se mostrou omisso para que Bandeira, que ele fez nascer poeta, viesse a tornar-se grande poeta. E, sobre grande poeta, fino letrado, o mais completo que talvez tenhamos tido, tanto pela exploração e pela apuração das virtualidades do seu espírito, como pelos conhecimentos tão diversificados que acumulou, no seu longo repouso de enfermo.

Façamos as contas com o Destino, balanceemos o que Bandeira perdeu e o que Bandeira ganhou. No inventário do ativo, começaremos, naturalmente, pelo dom da Poesia, que ele recebeu com abundância. Lembre-se, de passagem, que o dom corre o risco de frustrar-se, não é auto-suficiente. Pede estímulos, proteção adequada, e nalguns casos essa proteção pode assumir o aspecto de desfavor, desajuda. Lá chegaremos. Vejamos, por ora, que imediatos cuidados o Destino empregou para que o seu propósito fosse atingido.

Manuel não foi apenas “bem-nascido”, como se declara no poema “Epígrafe”. Direi que foi excepcionalmente bem-nascido, e em acepção de importância maior que a genealógica dada pelo poeta. Na geração destes, uma estirpe ilustre não terá grande préstimo, ao que parece. O Espírito sopra onde quer. Nem será por mera coincidência que alguns dos principais das Letras Brasileiras nos tenham vindo, não de casas-grandes ou palácios, mas de meios obscuros, onde quase nunca se chega a saber quem foi o avô: Machado de Assis, Gonçalves Dias, Lima Barreto, Cruz e Sousa.

Bandeira foi excepcionalmente bem-nascido – ia dizendo, e penso no ambiente que o cercou, desde cedo, no lar. O pai, homem culto, viajado, imaginoso, alegre, brincalhão, em quem a curiosidade intelectual se aliava à sensibilidade artística, criou condições singularmente propícias ao desenvolvimento das aptidões do filho. Profissional ilustre, embora sempre carregado de tarefas práticas, não abria mão, entre um estudo especializado e um trabalho urgente, de se afundar na leitura de Swedenborg, ou de tomar lições de aquarela, aprender o Hebraico, entreter-se com Poesia. Gostava de versos, fazia o filho lê-los, e até decorá-los. Mais tarde, quando este adoece, vemo-lo assíduo ao seu quarto, a distraí-lo com um teatro de brinquedo a que chamavam “óperas”. E ficavam os dois, esquecidas horas, a representar ou declamar para o seu público imaginário...

A esse pai encantador junta-se a figura amorável da mãe. Tinha o apelido de Santinha. Descreve-a o poeta:

Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor
                                                                                       [da boca.
Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer
                                                               [“Meu Deus, valei-me”.
Disposta, batalhadora, nada tímida, mas, ao mesmo tempo, temerosa, cheia de presságios, cercava o caçula de carinhos. E, quando este apanhou a grave enfermidade, tornou-se toda diminutivos: a camisinha de Neném; o leitinho de Neném. “E eu já era marmanjo”, comenta Manuel.

A irmã até morrer lhe servirá de enfermeira. É o “anjo moreno, violento e bom”, que desce do Céu e vem ficar ao lado de Manuel, depois que a gripe a levou, em 1918. Fina, inteligente, dotada para a música, mostrava-se interlocutora à altura, fazia-lhe reparos sagazes. Quando o mano se atracou, pelas páginas do Correio de Minas, com o crítico Machado Sobrinho, numa polêmica sobre metrificação, ela observou-lhe, irônica: parecia que estava querendo penetrar na Literatura Brasileira via Juiz de Fora.

Outras figuras familiares completavam esse grupo íntimo, tão estimulante: o tio Cláudio, que fazia versos e orientava o sobrinho em Poesia; Alberto Childe, artista e erudito, a quem Bandeira muito se prendeu, e o jovem Honório Bicalho, que, mais tarde, o faria ir amiúde a Juiz de Fora.

Em círculo maior, concêntrico ao doméstico, que ambiência o aguardava! No Ginásio Nacional, hoje Colégio Pedro II, os mestres eram João Ribeiro, Silva Ramos, Said Ali ou José Veríssimo, e companheiros havia como Sousa da Silveira e Antenor Nascentes. Da influência que uns e outros exerceram em sua formação temos documento em mais de uma página do Itinerário, das Crônicas da Província do Brasil ou da Flauta de Papel.

Entretanto, a boa fortuna não lhe daria apenas isso. Dar-lhe-ia, ainda, o privilégio de se ter frequentes vezes assentado, no bonde, ao lado de Machado de Assis, amigo de seu pai. De uma feita, ajuda o Mestre a recordar-se de certa passagem de Os Lusíadas. Vejam só: o rapazola tinha já de cor o seu Camões!

Foi na altura dos dezoito anos que o “mau gênio da vida” interveio, para fortalecer o Manuel poeta, e não permitir o Manuel arquiteto, que o pai vinha habilmente insinuando, através de conversas e leituras.

Até ali, a vida que levava teria favorecido a formação do letrado ou do erudito. Do arquiteto, não sei.

Não creio que tivéssemos ganho um grande imaginativo da arquitetura, um fecundador, efetivamente rico de sêmen. Por certo, conheceríamos um Bandeira atento às harmonias e melodias arquitetônicas; nunca, porém, uma vocação irreprimível, em que essa forma de se expressar não encontrasse sucedâneo. Quem sabe mal passaria de um desses beija-flores que adejam em torno de todas as artes, sem, contudo, se fixarem, virilmente, em qualquer delas?

Mostrando-se cruel para com Bandeira, homem comum, o “mau gênio” revelou-se verdadeiramente providencial, no que concerne ao Bandeira poeta.

O meio em que este se criara havia suscitado condições propícias a que desabrochassem os seus variados talentos. Desempenhara a missão, e, dali pela frente, podia constituir-se em perigo, ocasionar desvio de rota. É bem admissível que Manuel não subisse a escarpa, não galgasse os cimos, e se desse por satisfeito com os achados e amenidades do amadorismo. Havia mister que um profundo trauma fosse desencadear o poeta, não deixá-lo contente da fabricação de pastichos ou das pesquisas de erudito, nem saciado com os prazeres de mero diletante. As facilidades são boas, deixam-nos deslizar docemente. Mas, a certo momento, a privação pode mostrar-se estimulante, ninguém o ignora. Na gênese do poeta, certa espécie de privação parece essencial. Poesia, no mais comum de suas manifestações, será vida reprimida, constrangida, vida carente, vida desfalcada. A atividade vital plena dificilmente conduz a essa espécie de existência supletiva que extrai do existir os momentos mais altos, para que se perenizem e se comuniquem.

Atirado à sua cama de tuberculoso, esse eterno doente que, no entanto, alcançou a longevidade, foi, de fato, arrojado para dentro de si – para o mais íntimo de si.

A presença constante da morte, a vida mutilada, a nostalgia do mundo lá fora, tanto mais aliciante em seus feitiços quanto mais trabalhava a imaginação do enfermo –  enfim, a mágoa funda, o desespero se foi convertendo, pelas secretas alquimias da alma, em pura substância poética. Que a doença, a reclusão, o longo monólogo adubaram a poesia de Manuel, não haverá dúvida. E o artesão, que ele nascera, foi adestrado, ao mesmo tempo que se lhe aguçava a inteligência crítica indispensável à Arte, que, na expressão valéryana, é o “encadeamento de uma análise a um êxtase”.

Eu não diria que a Poesia nasce da dor, e muito menos do bem-estar. É sabido que a emoção poética difere essencialmente das emoções ordinárias, embora sempre venha mesclada a elas.

Acredito, contudo, que não teríamos o grande poeta, que Manuel foi, se o sofrimento físico, transposto para o plano moral, não lhe houvesse feito a longa e sinistra visita. Pode-se duvidar que a dor tenha levado Bandeira à Poesia. Mas ninguém duvidará que ela o apurou, afinou-lhe a sensibilidade. Melhor se diria: angelizou-o.

Quem negará que Manuel foi um anjo – velho anjo, que desceu à paisana, no Beco, sobraçando um alaúde? O que haja de sensual, de irônico ou até de sacrílego nalguns de seus poemas, é coisa inocente, não afeta a condição angélica. Sou tentado, mesmo, a chamar-lhe Emanuel, como fez Drummond, pois Emanuel significa “Deus conosco”, e a Poesia autêntica é uma das manifestações de Deus.

A dor fez de Bandeira um asceta. Com veleidades epicurísticas, já se vê, mas, ao fim de contas, asceta.

A dor nos dá extraordinária intimidade com nós mesmos – diz Louis Lavelle. Faz-nos dobrar sobre nós, e neste ato o ser desce, dentro de si, até à própria raiz da vida, naquele ponto extremo em que a vida, parece, vai ser arrancada. Não será por si mesma um bem. Pelo contrário, é a privação violenta de um bem. Porém a consciência disso, levando o nosso ser interior a descobrir a significação do que perdeu, lhe dá infinitamente mais.

O abalo da doença, acrescido, mais tarde, pela perda, a breve espaço, dos entes mais queridos, deu outra dimensão à vida de Bandeira. A morte do seu pai – diz-nos –viera amadurecer, nele, o poeta. E explica:

Quando meu pai era vivo, a morte ou o que quer que me pudesse acontecer não me preocupava, porque eu sabia que, pondo a minha mão na sua, nada haveria que eu não tivesse a coragem de enfrentar. Sem ele, eu me sentia definitivamente só. E era só que teria de enfrentar a pobreza e a morte.
 
Noutra página – um discurso proferido no Colégio Santo Inácio – revela que, embora fizesse versos desde os dez anos de idade, a Poesia lhe foi apenas distração de adolescência. Queria era ser arquiteto, construir casas, modelar cidades. Tudo fora por água abaixo com a doença. E remata: “Então, na maior desesperança, a Poesia voltou como um anjo e veio sentar-se ao pé de mim.”

De como o sofrimento fecundou a obra bandeiriana diz-nos Schmidt, por ocasião do cinquentenário do poeta: desde Carnaval até os versos ultimamente publicados, nada se encontrará nela que não tenha uma nota de resignada e altiva aceitação do destino. A vivacidade e o humour, uma das faces de Bandeira, permitiam-lhe “dosar o seu intenso fundo de solidão e de mágoa com flagrantes pitorescos, que procuram esconder o frio daquela alma tão clara na sua íntima tragédia”. A poesia desse homem triste, mas sobranceiro e viril – conclui Schmidt –, sempre evoluiu para a crescente libertação das melancolias que lhe envolvem os primeiros poemas.

Manuel pôde, afinal, libertar-se? Acredito. Em Opus 10, até admite que sorrirá para a morte, a Iniludível, que nunca cessou de espreitá-lo. Dura ou caroável, pode vir.

Na longa aprendizagem do sofrimento, descobrira que da tristeza se pode extrair alegria. Não brinca só nos versos: acolhe os amigos com invariável sorriso, gaio ânimo. Pilheria nas cartas, sempre mostra bom humor. Misteriosa operação da alma, essa alegria dos tristes. O santo consegue produzi-la. O artista, nem sempre. Manuel conheceu-a. Ribeiro Couto alude aos seus acessos de riso entremeados de acessos de tosse. Lúcia Miguel Pereira observa-lhe o repousante sorriso, a serenidade acolhedora. A Dante Milano intrigava aquele riso enigmático, em que se abria o poeta, quando, no Bar Nacional, a mesa de boêmios era virada por um deles, já meio alto. Drummond nos diz:

Eis que a boca amaríssima se abre, os dentes pontudos se mostram, e, no sorriso desse homem, há um mistério, um encanto grave, uma humildade e uma vitória sobre a doença, a tristeza e a morte.

E, para Vinicius de Moraes, o velho bardo nunca deixou de ser criança: “Olhem para ele – aparentemente secarrão, fisgado na sua elegância. Mostrem-lhe um pouco de amizade, para ver. Faz passes de mágica, toca violão, e encantado, sorrindo pelos dentes, pelos óculos, pela mocidade do corpo todo...”

Mas, ponhamos termo à divagação, e voltemos ao inventário dos paradoxais benefícios trazidos pela doença. Além daquele sofrimento que tira aqui, para ali devolver, em forma superior, mais alta e rica, veremos que do destino outras vantagens advieram a Manuel, sob aparência negativa, todas concorrendo na constituição do perfeito clerc.

Casar é bom, não casar é melhor, sentenciou São Paulo, pensando no serviço do Senhor. Os interesses da Poesia não exigiriam, por certo, a castidade, mas talvez lucrassem com o celibato. Os poetas nunca foram maridos exemplares. Para as mulheres, melhor será que eles as tomem na condição de musas, antes que de esposas. O vate há de ser solitário, tal como Teofrasto queria o filósofo. Para o autor de Caracteres, é impossível servir, ao mesmo tempo, a dois amos tão tirânicos: a mulher e os livros. O marido não passaria de um asno doméstico – opinava, com algum exagero.

O nosso Manuel viu-se privado do precioso equilíbrio de uma ligação estável, e daquelas emoções da paternidade, cujo desconhecimento o deixava melancólico e cismativo. Mas, em contrapartida, poupou-se aos cuidados, às inquietações, aos mil problemas do pai de família.

Foi a pobreza que o condenou à vida de solteiro – diz, numa entrevista. Também a doença, imagino. E é certo que esta, ao mesmo tempo, o preservou da vida boêmia, para que propendia com enorme curiosidade. Ele próprio nos refere que soube economizar a saúde, numa quadra em que os outros a esbanjam.

A doença afastou-o, por fim, da burocracia, e, em especial, dos gabinetes governamentais onde às vezes se consomem as melhores disponibilidades do escritor. A estes, comumente são confiados os discursos, as mensagens, as exposições de motivos. Quanta energia consumida na literatura burocrática! Quantos poemas, quantos romances não escritos, porque a fala ministerial ou presidencial exauriu as forças do escritor! Podem vir mercês que tornem a vida menos sujeita a privações. Subsiste, porém, a nostalgia da vocação desviada, e ao bovarismo do literato seduz mais o desamparo em que viveu Manuel, desde que coroado pela glória em que Manuel morreu.

Que fecunda pobreza, que doença fecunda! Com o modesto montepio que o pai lhe deixou, Bandeira, homem sóbrio, pôde aguentar-se, na sua “limpa solidão”, e entregar-se, totalmente, aos trabalhos e estudos que lhe apraziam. Preservando-o da penúria, o montepio não lhe dava senão o minimum minimorum. Talvez por isso, talvez por ter sido favorecido pela pobreza, aquele que se proclamou “tísico profissional” se haja tornado um dos maiores trabalhadores que já se viram em nossas Letras. Os versos de “Andorinha” não encerrarão uma verdade biográfica, a menos que o poeta considere vã toda a espantosa atividade que desenvolveu.

Sua vida não passou à toa, à toa, nem na acepção de “a esmo” ou “inutilmente”, nem na outra, mais popular, de “sem ocupação”. Em Campanha ou Teresópolis, em Maranguape ou Quixeramobim, depois em Clavadel, mais tarde na Rua do Curvelo, na Lapa, na Avenida Beira-Mar, o solitário lê, estuda, fabrica seu mel. E, na altura dos cinquenta anos, dispara a produzir, escreve como nunca, leciona, traduz, faz crítica literária, crítica de Artes Plásticas, crítica de Cinema, discreteia sobre Música, acompanha todos os acontecimentos.

Neste sentido, poder-se-ia entender o já lembrado refrão que nos diz ir a sua vida cada vez mais enchendo-se de tudo. Seria a recuperação da vida plena, através da intensa atividade do espírito.

Que mais deu o Destino a Bandeira, em troca do pulmão que lhe tomou? Os climas brasileiros de montanha não gozavam, ainda, de prestígio. Fora da Suíça não havia salvação, e o engenheiro Manuel de Sousa Bandeira se impôs o sacrifício de mandar o filho para o sanatório de Clavadel. A estada ali – diz o poeta – quase nenhuma influência literária exerceu sobre ele. Mas, páginas adiante, confessa que foi em Clavadel que, pela primeira vez, pensou, a sério, em publicar um livro de versos. Teria a camaradagem com Paul Éluard e Charles Picker estimulado esse propósito? Na verdade, o insulamento, a distância dos seus e da Pátria, a morte, que rondava, lhe bastariam, como estímulo.

Quando, sobrevinda a guerra de 1914, teve de regressar ao Brasil, estava preparado a assumir a posição que o aguardava nas Letras Nacionais. Só faltava que a gente mais nova desencadeasse o Modernismo, do qual foi ele precursor, “o São João Batista”, no dizer de Mário de Andrade.

Não acompanharei, aqui, a tão estudada biografia. Queria dizer somente isto: se fossemos considerar os acontecimentos em termos de Destino, veríamos que este feriu a Manuel apenas o suficiente para lhe arrancar uma obra que se podia ter dissipado na vida boêmia ou nos adejos diletantes. Trouxe-lhe a doença, mas deu-lhe firmeza, paciência e altivez para vencê-la. Escreveu Álvaro Lins, numa das séries do seu Jornal de Crítica:

Fecham-se todos os caminhos – o do bom êxito profissional, o do equilíbrio doméstico, o dos amores, o da fortuna, o dos prazeres efêmeros, o dos sucessos acidentais – e só fica o insubstituível caminho: o da porta estreita. E a vida tem que ser perdida num sentido, para ser ganha no outro. Em Manuel Bandeira há essa legenda de um ser humano que perdeu a vida no sentido pessoal, para ganhá-la no sentido artístico. O problema que o destino colocou diante dele – concluiu o ilustre crítico – não foi o da felicidade, mas o da glória.

Assim me parece. E deu-lhe glória em vida, favor que escassamente concede. Como acentuei no início deste discurso, poucos escritores brasileiros terão recebido, em seus dias, consagração semelhante. Basta lembrar que, desde a vitória do movimento modernista, Manuel, o sábio, Manuel, o moderador, passou a ser o pontífice inconteste. Outro notável poeta, a quem ele proclamava o maior, ganharia dimensões incomuns, vindo a tornar-se grande, não apenas na Literatura Brasileira, porém no âmbito largo deste mundo contemporâneo, demolidor de fronteiras. Mas do próprio Drummond vinha a palavra mais carinhosa na aclamação ao velho bardo.

E, no tocante à influência que Bandeira exerceu, todo o mundo sabe que ninguém, entre nós, se viu mais cercado de admiração e de amizade. Mesmo antes de o movimento modernista ganhar força, o quarto do enfermo já era meta de peregrinação. Depois, que esplêndido grupo de escritores e de artistas irá frequentá-lo, estes coexistindo, aqueles substituindo-se no tempo! Carinhosamente, passam a suprir a família que Manuel perdeu e a preservá-lo do isolamento ao mesmo tempo que o ajudam a resguardar aquela faixa de solidão indispensável a que o artista crie. Ternas figuras femininas juntam-se ao círculo. Umas lhe dão amizade. Outras, amor. Aos biógrafos do futuro reserve-se o sugestivo capítulo.

Voltando à obra, veremos que os estudos a seu respeito se multiplicaram desde que o velho João Ribeiro escreveu sobre A Cinza das Horas em 1917. Seria temerário tentar reproduzir a longa série de nomes. Tanto a crítica oficial quanto a amadora desenvolveram, a propósito do autor, uma investigação ampla, diria, mesmo, exaustiva, que se renovava, sempre que Manuel vencia um decênio a mais. O quinquagésimo, o sexagésimo, o setuagésimo, o octogésimo aniversário e, finalmente, a morte do poeta deram ensejo a trabalhos preciosos, que nos instruem sobre a sua poesia, a sua personalidade, a sua posição na Literatura Nacional.

Através desses trabalhos, vê-se que Manuel foi “a vida inteira que podia ter sido”, como conclui Otto Maria Carpeaux, no prefácio de Estrela da Vida Inteira. E não aquela nostalgia da vida possível, irrealizada, “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”, de que nos falam os versos de “Pneumotórax”.

Quereria ele receber mais do que a vida lhe deu? Não creio. Nosso poeta era desambicioso, só se mostrava glutão diante dos pratos da culinária nordestina. Deve-se entender é que o bem recebido não compensou o bem perdido, nem calou as “persistentes mágoas das peremptas feridas”. Entretanto, Manuel recebeu o melhor daquilo que a vida pode dar, o mais reconfortante, o mais duradouro, pois o resto será falácia ou apenas a vã satisfação de uma vã curiosidade.

Senhores acadêmicos,

Ao procurar, no espólio literário do meu antecessor, substância para este discurso, que se sabe manco e pobre, foi que adquiri, aguda e severa, a consciência da inconsideração de um gesto, àquela altura, já irretirável, já sem remédio.

O estudo de um escritor por um escritor conduz a inevitável confronto. Involuntariamente, a cada instante, retiramos os olhos de sobre o vulto estudado, para pousá-los sobre o nosso próprio vulto, e logo voltar ao objeto da nossa observação, num ir e vir de pêndulo, que avalia e mede. E isto, quer se trate ou não de grandezas comensuráveis e haja ou não esmagadoras desproporções. Afinal, só encontramos as medidas alheias por intermédio das nossas próprias medidas.

Eu conhecia a obra poética de Bandeira, acompanhara-a desde quando, numa república de estudantes, em Belo Horizonte, pus as mãos no volume Poesias, que reuniu, em 1924, A Cinza das HorasCarnaval e O Ritmo Dissoluto. Dessa quadra, gravado pelo entusiasmo, ficou-me na lembrança o “Madrigal Melancólico”. A crítica não o inclui entre as melhores realizações do Bandeira pré-modernista, talvez por achá-lo um tanto declamatório e conceituoso. Mas era precisamente o que pedia a minha jovem admiração, e esse poema pareceu-me o mais belo do livro, embora eu amasse, com igual fervor, a “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, os “Meninos Carvoeiros”, ou o imprevisto “Vulgívaga”. E que direi do balãozinho de papel, que o filho da lavadeira encheu com o seu soprinho de tísico e, subindo, subindo, foi cair nas águas do mar alto?

Se nunca perdi de vista a sua poesia, o mesmo não poderei dizer de suas páginas de prosa, que eu não adivinhava tão abundantes. Só as lera, até há pouco, em reduzida parte. Por que essa negligência, que deixou tão lacunoso o meu conhecimento naquilo que a prosa contemporânea oferecia como raro modelo de ductilidade, finura, graça descuidada ou puro abandono lírico? Por que terei deixado de ler o prosador, eu que admirava tanto o poeta?

Diria que na própria admiração se encontra a raiz desse pecado. A figura de Bandeira fixara-se, em meu espírito, como a do poeta, por excelência, e a glória deste ofuscava a do prosador. Culparei, um pouco, a crítica. Estudando preferentemente o poeta, não nos falava do Bandeira das crônicas e dos ensaios. Tampouco mencionava o Bandeira erudito em Música, em Artes Plásticas, Filologia, e até mesmo o artesão espantosamente hábil e sabedor, que, conhecendo os mais sutis problemas da métrica, fosse em nossa língua, fosse noutras, em certo momento alijou, sem nenhum apego, aquele enorme lastro de sabedoria, para buscar nos ritmos soltos a expressão desejada, que a ciência do metro não lhe dera.

O certo é que, fascinado pelo poeta, eu, burocrata de poucos vagares, agrilhoado a tarefas opressivas e estéreis, fui protelando sempre o contato com a prosa límpida, airosa, cheia de movimento e de novidade, que ele nos oferecia. Entregara-me a ambicioso plano de leituras sistemáticas, em áreas não essencialmente vinculadas à dos meus imediatos interesses. E a esse plano, apenas empreendido, nunca levado a termo, sacrifiquei não poucos instantes do melhor regalo.

Fechado viveu, por muito tempo, o volume das Crônicas da Província do Brasil. À espera de vez, na fila que a minha inadvertência criou, esteve, delongados anos, o Itinerário de Pasárgada, livro único em nossas Letras. O mesmo aconteceu aos estudos sobre Gonçalves Dias, Antero de Quental, Castro Alves, e a tantos outros escritos preciosos, como aquele sobre o patrono da Cadeira que aqui ocupava, a aliciante figura de Júlio Ribeiro. Acadêmico disciplinado, não descuidara de também examinar a obra do fundador Garcia Redondo e do sucessor deste, o poeta Luís Guimarães Filho. Fê-lo com tal mestria, que nada me deixou a dizer neste discurso.

Concluindo: quase todo o Bandeira prosador, mestre de prosadores, que se despediu nas leves, cristalinas páginas de Flauta de Papel e Andorinha, Andorinha, quase todo esse Bandeira permaneceu guardado, para encontro que se adiava e só agora se realizou. Jamais me ressarcirei de tal dano: a leitura, nesta estação da vida, já não produz os mesmos réditos que em quadras passadas, mais fecundas.

Tomemos, porém, àquele involuntário confronto de que vos falei. A frequentação do Bandeira poeta já me desencorajava de pensar na Cadeira que deixou neste recinto. Um argumento me poderia ainda aliviar os escrúpulos. Tratava-se de grande poeta, não havia dúvida, e eu sempre me tivera na conta de romancista menor. Mas Poesia é Poesia, Prosa é Prosa. A vaga não se vinculava, especificamente, àquele ramo literário.

Com esta idéia procurei confortar-me, quando aos generosos acenos de um dos vossos ilustres companheiros – meu velho amigo Aurélio Buarque de Holanda – cederam as razões em que se escudava o meu retraimento. Vinte anos tinham decorrido desde o dia em que, pela mão de outro amigo, o caro Peregrino Júnior, eu viera assistir a uma de vossas reuniões. Da cordial acolhida que então me dispensastes nascera-me o desejo de participar do vosso convívio, nesta Casa que nobres espíritos, veneráveis vultos nos legaram, e onde, no presente, se reúnem tantos escritores a quem prezo e admiro.

Mas a honra desse convívio não se alcança sem porfia, e, avesso a porfias, arquivei a minha veleidade. Convencido, afinal, apresentei-me agora, e vós me acolhestes com uma benevolência que nunca poderei agradecer-vos suficientemente. Poucas passagens de minha vida me dariam ideia tão nítida da exígua parte que nos toca em certas decisões nossas. Quando, meio perplexo comigo mesmo, me vi candidato – e logo à vaga de Bandeira! –, tentei, repito, convencer-me de que não ia, propriamente, ocupar a Poltrona deixada pelo poeta, mas apenas preencher um claro tornado anônimo. Pois bem: assim que obtive os vossos sufrágios, a minha consciência voltou a inquietar-se.

João Ribeiro, ao ocupar a Cadeira de Luís Guimarães Júnior, disse que sua grande alegria se deixava turbar pela tristeza de uma grande humilhação – a de suceder ao ilustre poeta. Parecia-lhe que a outro poeta, e da mesma estatura, devia caber o elogio do morto. O ilustre filólogo, já então divorciado das musas, sentia-se incapaz de compreender os poetas, pelo menos os grandes, a quem ele via como “astros de elipse longa, que parece não obedecerem ao sol comum e que não se podem contemplar sem um secreto terror e assombro”. Para compreendê-los – imaginava – “seria preciso ter a constituição original e própria desses seres, a mesma densidade e fluidez que lhes é própria”.

A esse João Ribeiro meio hiperbólico, nada parecido com aquele outro, que depois conheceríamos, tão sutil no manuseio dos pesos e das medidas, José Veríssimo replicou, amistosamente, que, afinal, os poetas não eram aquele bicho-de-sete-cabeças. Para entendê-los, basta sermos homens e sermos humanos. A grande Poesia, desde Homero até Tennyson, é clara, simples, natural.

Não lembrei as palavras de João Ribeiro com o intuito de adaptá-las à circunstância em que me vi. Ao sentimento de que fui tomado não lhe chamaria eu humilhação, palavra que, no caso, entremostra orgulho ferido. Assim, escreveria “vexame”, ou melhor, “constrangimento”, onde o mestre escreveu humilhação. Constrangimento seria a palavra justa, pois não consegui convencer-me de que iria preencher uma vaga sem dono, aberta no quadro acadêmico. Ao pensar na Poltrona vazia, em que se assentou o poeta, sentia-me como alguém que houvesse herdado roupas demasiado folgadas e fosse compelido a vesti-las.

A leitura do Bandeira prosador agravara esse desconfortável pensamento. Em vão descobri que, numa crônica publicada em 1957, ele me incluía entre alguns escritores que lhe aprouvera encontrar nesta Casa. Tal manifestação, tardiamente conhecida, muito me comoveu, porém os escrúpulos subsistiram. Ocupo, constrangido, o seu lugar. Procurarei, com devoção, dar ao eminente homem de letras aquilo que não lhe foi dado nesta fala canhestra. Não tive o privilégio de pertencer à sua roda íntima: frequentei-o pouco. Já o conheci numa altura em que as aproximações se tornam menos fáceis. Tolhia-me o receio de lhe perturbar o repouso, o estudo, a meditação. Aconteceu também que as ocupações da vida me levassem a outros meios, a outros cuidados. Estimava-o e admirava-o a distância.

Percorrida toda a sua obra, folheado o principal que sobre ela se escreveu, ouvidos alguns amigos do poeta e lidas as cartas por outros recebidas, posso, agora, senti-lo mais próximo, talvez, mesmo, chegue a vê-lo, como o viu o restrito círculo de amigos íntimos. Procuro aprofundar, em mim, o conhecimento desse Manuel cheio de antagonismos, fecundo em contrastes, nada captável às primeiras tentativas de compreensão. Manuel foi grande, principalmente porque enfeixava inumeráveis Manuéis. O Manuel triste e o Manuel jovial. O Manuel afável, discreto, mesurado, e o Manuel passional, energúmeno, capaz até de truculência, não quando o ferissem – pois recebia os doestos com tolerância, manha, e às vezes bom humor –, mas quando sequer arranhassem o menor dos seus amigos. Quantos Manuéis a desafiarem o analista afoito, que tente agarrar-lhe a alma! Aqui, finge de cínico, ali o temos irônico ou zombeteiro; há pouco, parecia seco, ríspido quase, e agora se desmancha em ternura, pensando em Ovalle, Rodrigo, ou na trinca de Curvelo... Que Manuel vos apresentarei, no final deste longo discurso? O Manuel faceiro, gostando de ser fotografado, filmado, gravado e entrevistado, ou o Manuel que se encaramuja, com astúcia, preservando a sua solidão, para se entregar à nobre lavoura da Poesia? Falar-vos-ei do Manuel obsequioso, o Manuel das amizades perseverantes, ou do Manuel dos rompimentos ásperos, que se desfaz dos livros de Éluard e apaga da parede o nome de Pablo Neruda? Mostrar-vos-ei Manuel brigando ou Manuel querendo fazer as pazes, só não as fazendo porque era de Pernambuco, embora sem a faca de Pernambuco?

Como aqueles que de perto o cercavam, hoje vejo e ouço, a cada instante, Manuel e o seu pigarro, Manuel e o seu sorriso, Manuel e a sua dentuça, Manuel e os seus mistérios, preparando o café matinal e depois de novo se deitando, para pensar na vida e nas mulheres que amou. A esse Manuel – dez, vinte Manuéis, encarnados num só Manuel verdadeiro –, não trago aqui apenas as palavras de reverência, que a sua obra impõe. Trago, também, carinhos de amigo, que não pude levar-lhe nos dias do seu viver, longo viver de alegrias escassas e penares muitos, mas tocado de beleza e de heroísmo.

21/10/1969