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Clementino Fraga

                                   VISÃO DO DESENGANO

Vária e dúbia foi sempre a compreensão da vida. Encurtá-la na intensidade ou alongá-la na moderação, cada qual a entende a seu jeito, mesmo entre os espíritos mais iluminados. O conceito da velhice conformada e longa, edificada na paciência e na virtude, jamais prevaleceu na simpatia dos homens: tem acentuado perfume de santidade para ser humano. A vida ensina, é certo, mas depois de experimentar no erro; taras recrescidas e desvios reiterados, insensivelmente, constituem a massa peccati - imposto fatal da inadvertência na preservação da saúde. Porque nós desejamos sempre coisas proibidas e ambicionamos o que nos é recusado, dizia Rabelais. O moto é aproveitar o instante, congestionando na volúpia a alegria fácil ou gozo efêmero. Calcinar o momento que passa, para que passe, deixando impressão. Desabotoar o riso na incontinência da gargalhada. Dissipar energias para provar mocidade. Irritar a sensação para esquecer o sentimento. Incendiar a ilusão para consumir nas chamas os melindres da vontade e as restrições da consciência. É assim o caminho da velhice precoce, a pouco trecho da existência, retratada e ostensiva nos estragos da senilidade.

Era este, sem dúvida, o sentir de Montaigne quando afirmava, entre displicente e amargo: “prefiro ser velho menos tempo que sê-lo antes do tempo”. Entretanto, não é possível diminuir o prazo da velhice, sem antecipá-la. Só a senilidade com o seu cortejo de males, alcança, às vezes, a morte, passando de voo sobre o declínio dos derradeiros tempos da vida. Por que fugir à velhice? Não é ela compulsória e lógica fora da morte acidental? Por que esse terror do crepúsculo? O essencial é “saber ser velho, e poucos o sabem”, dizia Voltaire. Melhor seria, certamente, como queria o grande ironista, seu compatriota, que a mocidade tivesse seu lugar no fim da vida... Então dela teríamos, nas delícias do pecado, os melhores afagos da existência; em plena idade da beleza a aspiração paradoxal do fim na suprema ventura do amor.

Mas em tudo sábia e previdente, a natureza concertou as idades em dois grandes períodos; o de ascensão e o declínio. Para acabar bem é mister bem começar. Conter o ímpeto na escalada para, do outro lado, suportar a vertigem da descida. Lélio pedira a Catão que lhe ensinasse a vencer o peso da idade. E o vulto antigo, em quem Cícero figurava a anciania exemplar, responde no célebre Diálogo sobre a velhice, De senectute dialogus, manancial de sábios conselhos e de almo conforto, indispensável como livro de cabeceira quando vamos a caminho da idade provecta. “Senescere se, multa in dies addiscentem”, “envelheço aprendendo todos os dias”, disse Solon. E comenta Cícero: “viventem enim in bis studiis, laboribusque non intelligitur quod senectus obrepat” (aquele que vive, continuamente, no meio de seus estudos e trabalhos não sente que a velhice o atinge). E ainda: “ita sensim sine sensu aetas senescit, nec subito frangitur sed diuturnitate estinguitur”. (Envelhece pouco a pouco, sem sobressaltos, sua vida não se interrompe de repente, mas se consome e extingue lentamente).

A arte de envelhecer atribui a cada idade prazeres e ocupações, reservas e advertências, dos mínimos cuidados aos mais precípuos deveres. A euforia na velhice só pode provir de uma mocidade bem conduzida; consolavam-se os antigos com a carga dos anos, porque cedo preparavam a resistência. E tanto se consegue na conformidade com o tempo, no penhor da vida austera, nos gratos ressaibos da tranquilidade espiritual. - E assim a “pior das calamidades” descarrega o fardo de suas culpas, culpando o responsável, isto é, o próprio indivíduo que não soube dosar o esforço e empregar o tempo. Figurando certa vez a condição do surdo, isolado e só, quase desambientado entre os que o cercam, Robert de Flers exclamou desconsolado: “a velhice é uma surdez’. Dir-se-á que tudo depende do indivíduo: o surdo que formou o espírito no apreço das sãs leituras, viverá tempos adiante na companhia dos livros. Assim o velho a quem Deus preservou a visão e em quem a fortuna, nos melhores dias, acariciou na intimidade dos bons autores, suaves companheiros dos momentos ásperos e das horas de desalento.

O sentido da vida é bem diverso no indivíduo ou na espécie; enquanto aquele muda e passa, esta subsiste, estável e perene. E a natureza revive cada dia noutros seres, abrolha em novos sorrisos, flutua e galanteia, descontando na maturidade que surge a mocidade que se perdeu!... Há um momento de estar de pé e outro de estar sentado, disse Salomão.

Que vale a tentativa de simular mocidade? O velho que força o movimento, tão logo se denuncia na pressa da respiração e na ansiedade traidora; a velha que disfarça os sinais do tempo só de longe dá a ilusão de mocidade: face a face de alguém, como a distância de um espelho, só a si mesma consegue iludir.

                                                    [...]

Em nossos dias os costumes sociais refletem o desamor pelo próximo mais idoso, e, valha a verdade, até o clima de família não tem para o velho a amenidade de outros tempos. Considerado um retardatário, os próprios conselhos, levados a crédito de sua experiência, chocam-se com a impertinência represada dos avançados, quando, por exceção, não beliscam o ceticismo risonho e misericordioso dos mais educados modernamente. Hoje que os jovens de ambos os sexos excedem-se nos exercícios físicos, despem-se e pigmentam-se horas a fio nas praias de banho, arrasam a mocidade e a frescura nas delícias pagãs do carnaval; hoje em dia que as moças guiam automóveis, fumam e bebem coquetel, são perfeitamente inteiradas da literatura dos cinemas e da adjetivação dos rádios, mal chega o tempo para a leitura de um romance leve, amoroso ou policial...

Recordando a nossa juventude respeitosa e tímida, em contraste com a de hoje, destravada e livre, achamos certo sentido naquele paradoxo atrevido de Gavarni, à vista de um adolescente escandalosamente moderno: “ainda não recebeu educação e já tão estúpido”!...

Para estar em boas contas com o momento, deve o moço revelar-se emancipado de quaisquer ascendências ou tutela, seja doméstica, social ou mesmo religiosa. Novos tempos, costumes novos. A civilização atual caminha noutros rumos. O velho pensa que a vida já não ensina, sorriem os moços de uma experiência que se não ajusta às imposições da época.

O desprezo da sociedade atual pela velhice faz o regalo da indústria “prolongar a mocidade”; multiplica institutos de beleza, proclama os milagres da cirurgia estética e da fisioterapia da pele, oferece novas possibilidades ao charlatanismo diplomado, vencendo a ingenuidade feminina no pecado da simulação ou na ilusão de poder pecar. “Comme une faience craquelée ou un plat en morceaux un visage féminin peut à peu prés se racommoder”. São assim as heroínas à força que pensam espancar a velhice “à coups de batons... de rouge”.

Para aqueles que se despediram da mocidade é dolorosamente ridícula a preocupação de parecer jovem, forçando o cotejo e repetindo gestos e hábitos, que a compostura pessoal desaconselha. Cada idade tem o seu momento, e pois diversos são os prazeres, gostos e emoções.

Não penso que a velhice deva ser a meditação da morte; seria talvez uma forma de alcançar o futuro, transitando pela densidade da sombra. Mais confortável é ainda a meia luz do crepúsculo, e, nele mergulhado, o organismo que desaba, sente da vida os derradeiros lampejos. E depois a velhice é sofrimento, e sem sofrer, que seria da humanidade? Onde a virtude sem a realidade ou o temor do sofrimento?

O passado é a recordação. Prêmio ou tributo? Quem sabe? Mais vezes será tormento que doçura. Recordar o bem que já foi é ainda sentir; talvez sofrer agora com a lembrança querida; certo, sofrer duas vezes, se a recordação é amarga. Por que recordar? Dizia com razão aquela dama, que não queria envelhecer, ao companheiro de outros tempos. E acudia enfezada: "poupe-me de recordações, detesto a quem recorda".

Visão do desengano essa fatalidade biológica mais o será sem a quietude do coração; e agora, padecendo em dobro, a velhice é sombra e resto de vida, poeira e miragem, fumo e nada...

                                                                                           (1940)

                                

                                                                                  PROFISSÃO E PERSONALIDADE

O médico moderno há de ser um representante da nata intelectual, formado no consenso das qualidades efetivas de apresentação e de personalidade. Não basta ser; é mister também parecer. Aliás, em nenhuma profissão a projeção individual é mais flagrante que na medicina, a considerar, como queria Nicolle, que “a tendência do ser humano é defender a sua personalidade”. A própria educação médica, inspirada nas ciências biológicas, desenvolve no profissional uma segunda natureza, um tanto hipertrófica no sentido da individualização. E não há como a doença para revelar o aspecto pessoal em cada caso patológico; por outro lado a autoridade do clínico, sempre decisiva ou conselheira, socialmente, o destaca numa auréola de respeito e ascendência. Em alguns o individualismo transviado conduz ao espírito de suficiência, sobretudo sistemático em relação às normas terapêuticas. Será, talvez, o seu maior pecado. As coordenações biológicas que defendem o homem integral, na unidade do corpo e espírito, materializam o conceito da personalidade. Seria absurda a negação destas vantagens na formação intelectual e moral do médico, e neste caso, como conciliar a afirmação de individualidade com a medida rasa, niveladora, que caracteriza a medicina do Estado? Onde a prevalência das qualidades sem os estímulos da liberdade de ação? Não se compreende a noção de responsabilidade imposta a doentes, que não elegeram o profissional nos anelos de sua confiança. E depois, pode-se admitir a despersonalização do médico no momento científico em que a medicina se orienta no sentido da personalidade do doente? Talvez tanto tivesse sido possível no domínio ditatorial das ciências analíticas; não será o Estado totalitário ou marxista, nas contingentes restrições à liberdade humana, que poderá sobrelevar às tendências científicas que noutros tempos germinaram na mentalidade antiga, qual se encontra no Diálogo sobre a Sabedoria, em que Sócrates doutrinava: “os bons médicos, quando um doente os procura para que lhe curem uma doença dos olhos, por exemplo, começam por declarar que não poderão curar somente os olhos, senão também a cabeça, e pretender curar a cabeça sem atender ao corpo inteiro é impossível. Tendo isto em conta prescrevem um regime para todo o organismo, cuidam e curam, assim, a parte em que a doença se manifesta. Porém do mesmo modo que os olhos não podem ser tratados sem a cabeça, e esta sem o corpo, também este não pode ser curado sem curar a alma, e, se os médicos gregos não são capazes de curar tais enfermidades, é que ignoram o conjunto do que devem tratar. Porém a alma, de onde brotam para o corpo todos os bens e males, pode ser tratada por meio de certos diálogos”.

(Cit. por Pizarro Crespo – “La Nueva Medicina Psicobiológica”, Sem. Mem. Fev. 1937. Buenos Aires.)

A medicina atual, armada de outros poderes, visa a unidade psicossomática; deve começar, pois, preparando o médico nas vantagens da valorização individual.

Os benefícios do individualismo médico que se exercem no desenvolvimento do espírito, da coragem moral, do sentimento de solidariedade humana, não discordam da altivez, que é do orgulho bem fundado a só parte apreciável. Para tanto conseguir é indispensável a posse e gozo da independência intelectual, respeito de si mesmo, segurança de opinião. São tais os predicados que cumpre ao médico cultivar para crescer no apreço social: sobretudo, o aspecto humano de seus votos e aspirações deve avultar na atuação profissional, longe da preocupação subalterna dos interesses materiais. “Ciência sem consciência é a ruína da alma” proclamara Rabelais. Assim sendo, o individualismo médico desconta no consenso de virtudes preclaras, alguns pecados veniais de intolerância e de orgulho, avivados nas arestas do espírito de suficiência. Sem dúvida, foram as ciências biológicas que conferiram à medicina seu maior prestígio; deram-lhe o que ela não tinha até o começo do século XIX - o perfume de ciência. É justo reconhecer que, com o Renascimento, a anatomia já interessava aos que exerciam a arte de curar. A paixão de Leonardo da Vinci pela ciência morfológica trouxe à arte decantados fulgores. Era a ciência nascente, consumindo de emoções novas a materialização sublime da arte. De começo, até mesmo as matemáticas, a geometria e a astronomia eram cultivadas como artes, mas a arte já se comprazia no deleite das especulações filosóficas. A arte foi sempre a parte prática, técnica, de cada conjunto de conhecimentos. Depois é que a técnica passou a ser da ciência, chegando a seu maior desenvolvimento com o método experimental em medicina: a epopeia pastoreana representou a grandeza culminante das ciências analíticas.

A ciência refez-se nos fatos, recebendo da base empírica a contribuição de seu espírito tradicional, seus sonhos e ilusões; criou o ambiente novo, devolvendo à arte da medicina formas concretas de estudar a doença e tratar os doentes: em tudo a intuição científica a par da inspiração artística, na altitude de outras aspirações. Chegou para o homem de ciência o momento de duvidar: se a armadura experimental da ciência descobria fatos novos, alguns jamais pressentidos, onde levar o entendimento no caminho de outras aquisições? e a dúvida no homem de ciência tem sido um dos motores de grandes empreendimentos humanos. Rist, no seu belo livro Qu’est-ce que la Medicine?, comenta, a propósito de ciência e arte: “o conhecimento científico é, singularmente, a exaltação do espírito. Tem a dignidade que todos reconhecem quando se aplica aos espetáculos e acontecimentos do cosmos, às trocas e metamorfose da matéria e da energia ou à evolução dos seres organizados. Não é menos ativo quando objetiva o homem, seu corpo, sua inteligência, seus movimentos, as funções de seus órgãos, suas reações contra os agentes mórbidos. A contemplação intelectual dos fenômenos naturais é, à primeira vista, muito diferente da contemplação estética, que é própria da arte. Está, entretanto, dela mais próxima que parece. Entre a emoção que domina o pintor e a que absorve o naturalista, à vista das belas formas do mundo vivo, há profunda concordância. Leonardo lhe soube o segredo. Quem poderia dizer se tal não acontecerá ainda?” Timon, médico e poeta do tempo dos céticos, já aconselhava esquecer as especulações filosóficas e seguir o caminho da Natureza. Nada permanece. Na constância de seus desígnios, Heráclito afirmava: “le devenir est l’essence même des choses”. Depois da era científica, as ciências, divididas e subdivididas, criaram outras ciências, e delas lucraram a vida social e a transformação econômica do Universo. A biologia materializou o conhecimento humano, moldando outros aspectos da existência da espécie, que a arte e a psicologia acadêmica tradicional não lograram, sequer, suspeitar.

A obra médica de nossos dias, toda impregnada de espírito científico no estudo ou na aplicação, considerou menos os aspectos espirituais da cena viva; mas, sendo a medicina a ciência do homem, deve encará-la na plenitude de seus valores biopsicológicos, integrando-se, como quer Jaspers, “na compreensão estática e genética da moléstia”. E, se a ciência nos permite conhecer o ser humano, a arte bendita, incomparável na visão de seus horizontes, ensinará os mágicos poderes de atingir as baldas sombrias da personalidade.

                                                                                 Rio, 1954

                                                                          (Paisagem do outono, 1960)