RESPOSTA DO SR. ALFREDO PUJOL
SR. CLÁUDIO de Sousa,
Vosso formoso discurso contesta a pobreza com que vos aprouve qualificá-lo, nessa expressão de humildade que em casos tais é de velha praxe revestir a oração dos neófitos. Sempre que um cristão novo penetra os umbrais das academias, a curiosidade dos que vão ouvi-lo anseia por ver como se despojará ele dos seus méritos para exaltar a generosidade dos que o elegeram. Contra a usança tradicional só conheço uma exceção: a do autor de Le Crime de Sylvestre Bonnard, que acaba de fechar os olhos numa auréola de imensa glória. Anatole France, ao tomar posse de sua cadeira, na Academia Francesa, começou o seu discurso com estas palavras mescladas de sinceridade e ironia:
Je vous ferai d’abord mon remerciment. Vous approuvez que j’emploie sans parure le mot en usage parmi vous depuis deux siècles et demi. Je vous rends grâce de m’avoir admis dans votre compagnie, la plus illustre du monde. Et, par respect pour vous, je me garderai de déprécier votre choix et de me répandre sur moi-même en réflexions que je devais mieux faire dans le moment de soliciter vos suffrages qu’après les avoir obtenus.
Felizmente, Sr. Cláudio de Sousa, tivestes o bom gosto de não desestimar nossa escolha no pleito, que vos deu a vitória, e a que concorreram candidatos de alto renome. Quisestes atribuí-la a um estímulo em favor do teatro nacional. Creio que tereis acertado. Acabais de dizer que vossa ambição foi a de reconquistar para o teatro brasileiro a Cadeira que lhe fora designada nesta companhia. Não se devem confundir todos os ambiciosos, dizia o Marquês de Vauvenargues; se tal ambição é vício, outra pode ser virtude. A vossa foi virtude. Sabemos todos o que vos deve este pobre teatro nacional, tantas vezes morto e outras tantas ressuscitado, e o que ainda alcançará do vosso esforço, da vossa tenacidade, do vosso talento. Estou certo que sabereis honrar a memória do vosso patrono, o insigne criador da comédia brasileira, e a do titular originário da Cadeira que ora ocupais, e que foi o melhor dos discípulos de Martins Pena, como soubestes enaltecer o grande poeta que vos precedeu nesta Casa.
A Academia ouviu, enlevada e cativa, o elogio de Vicente de Carvalho, que traçastes com mão segura, guiada por uma viva admiração e por um sentimento exato e profundo da sua poesia e da sua arte. Com razão notastes que a concepção estética de Vicente de Carvalho é a Natureza, sem outra filosofia além de seu próprio panteísmo. Suas estrofes virgilianas são imagens visuais da alma misteriosa das coisas. A maravilha das manhãs de sol, a carícia da aragem, a paz harmoniosa das selvas, a agonia das tardes melancólicas, a doçura das noites de luar, uma flor aberta ao anseio das abelhas, “um pedaço de muro engrinaldado de hera”, tudo palpita de um frêmito comovido no ritmo do seu verso. Mas é o mar, “o belo mar selvagem das nossas praias solitárias”, que principalmente o atrai, que o domina, que o deslumbra:
Ah! vem daí por certo
A voz que escuto em mim, trêmula e triste,
Este marulho que me canta na alma,
E que a alma jorra desmaiado em versos:
De ti, de ti unicamente, aquela
Canção de amor sentida e murmurante
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
Pela manhã de sol dos meus vinte anos...
Não tem segredos para Vicente de Carvalho, poeta do mar e do amor, como lhe chamou alguém, o sinistro ulular das águas revoltas, o murmúrio suave das ondas quietas sob o sudário do crepúsculo, a infinita solidão do deserto azul, a luminosa alegria das nossas praias, inundadas da espuma que brinca nas areias doiradas...
É assim que ele ouve, quando morre a luz do dia, o sussurro, das águas tranqüilas:
Escutai bem... Quando entardece,
Na meia luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar.
Ou quando, implacável, em fúria, irrompe do seio das trevas o rugido do oceano:
Mais formidável se revela
E mais ameaça, e mais assombra,
A uivar, a uivar dentro da sombra
Nas fundas noites de procela...
O mar é o velho confidente dos seus sonhos, das suas esperanças, dos seus desencantos. “O mar é para mim como o céu para um crente.” Ele o confunde com as suas alegrias ou as suas mágoas e o associa aos seus amores com enternecida volúpia:
Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão...
Duvidas que haja clamor no mundo
Mais vão, mais triste que esse clamor?
Ouve que vozes de moribundo
Sobem do fundo
Do meu amor...
Ninguém sabe o que suporta
O mar que chora na areia
Por essa tristeza morta
Das noites de lua cheia:
Embaixo, o pranto das águas,
Em cima, a lua serena...
E eu, pensando em minhas mágoas,
Ouço o mar, e tenho pena...
Nenhum poema de Vicente de Carvalho traduz, com mais relevo e intensidade, essa fusão maravilhosa do mundo exterior e do pensamento, da natureza e da sensibilidade, do que o Sonho Póstumo, cujos derradeiros versos serviram de fecho ao vosso magnífico discurso. Foi pena que não tivésseis recitado o poema inteiro, que é das melhores páginas da poesia em língua portuguesa. É um hino panteísta de bela inspiração, onde vibra, em êxtase, ardente e sensual, a alma do poeta, identificada com a natureza, dispersada no esplendor da luz, no perfume das flores, no ramalhar das árvores, no gorjeio dos pássaros. Ele aspirava, como outro poeta paulista, tão esquecido em nossos dias, à dissolução de todo o seu ser no seio amorável da natureza eterna. Conheceis o soneto célebre de José Bonifácio, que assim termina:
Lá, fico aragem, folha, passarinho;
Lá me transforma em eco a solidão
E a natureza inteira abre-me um ninho.
Ó deus de amor, ó deus da criação,
Prende minh’alma aos musgos do caminho,
Derrete-me no espaço o coração!
Este anelar pela morte em comunhão com a Natureza, este impetuoso desejo de se dissolver amorosamente na essência flutuante das coisas, inspirou à insigne poetisa condessa Mathieu de Noailles, irmã espiritual de Vicente de Carvalho na glorificação das maravilhas da terra, o admirável poema La nature et l’homme, onde cantam estes versos imortais:
Nature, je reviens à vous sur toutes choses.
....................................................................................
Je vivrai désormais près de vous, contre vous,
Laissant l’herbe couvrir mes mains et mes genoux
Et me vêtir ainsi qu’une fontaine en marbre.
Mon âme s’emplira de guêpes comme un arbre,
D’échos comme une grotte, et d’azur comme l’eau;
Je sentirai sur moi l’ombre de vos bouleaux;
Et quand le jour viendra d’aller dans votre terre
Se mêler au fécond et végétal mystère,
Faites que mon cœur soit une baie d’alisier,
Un grain de genièvre, une rose au rosier,
Une grappe à la vigne, une épine à la ronce,
Une corolle ouverte où l’abeille s’enfonce...
Vicente de Carvalho, discorrendo certa vez sobre os versos de Amadeu Amaral, que considerava de uma alta perfeição, dos mais perfeitos e dos mais suaves da nossa língua, não compreendia a indiferença desse belíssimo poeta, profundamente subjetivo, pela natureza que o cerca: “A natureza não o encanta pela grandeza ou pela doçura dos seus aspectos, não o atrai pelo mistério das suas maravilhas, não o subleva contra a fatalidade inconsciente e brutal da sua força; não lhe inspira amor, ou simpatia, ou admiração, ou curiosidade, ou ódio, ou terror. Inspira-lhe simplesmente a mais serena indiferença. Não há paisagem que lhe detenha o olhar, não há fenômeno físico que lhe seduza a atenção.
Ele passa sobre a terra como sem a ver, todo embebido na névoa do seu sonho.” Aí está, nessas breves palavras, toda a essência da poesia de Vicente de Carvalho. A sua vida interior, as forças invisíveis da sua consciência, os mistérios silenciosos do imenso mundo moral que dentro dele palpitava, raramente desabrocharam, em alvas flores de primavera, ou em pérolas de dor e sofrimento, nas suas estrofes cristalinas. A natureza o absorveu no seu seio deslumbrador, envolvendo-o numa auréola resplendente de luz. A sua musa, coroada de rosas, expande-se numa exaltação pagã diante de todos os símbolos da vida exterior. Ele amou assim a criação em todos os seus primores, em tudo quanto ela ostenta de triunfo e de beleza, de majestade e de graça, de magnificência e de harmonia. E quando cerra os olhos ao espetáculo do universo, para mergulhar no estuário das suas penas íntimas, o seu lirismo é repassado de amarga ironia, como neste soneto, de puro sabor camoniano:
Enganei-me supondo que, de altiva,
Desdenhosa, tu vias sem receio
Desabrochar de um simples galanteio
A agreste flor desta paixão tão viva.
Era segredo teu? Adivinhei-o.
Hoje sei tudo: alerta, em defensiva,
O coração que eu tento e se me esquiva
Treme, treme de susto no teu seio.
Errou quem disse que as paixões são cegas;
Vêem... Deixam-se ver... Debalde insistes;
Que mais defendes, se tu’alma entregas?
Bem vejo (vejo-o nos teus olhos tristes)
Que tu, negando o amor que em vão me negas,
Mais a ti mesma do que a mim resistes...
Houve quem dissesse, Sr. Cláudio de Sousa, que a este peregrino poeta, dos maiores da nossa raça e da nossa língua, deveria suceder neste grêmio outro cultor das musas, que o compreendesse e que o amasse. Quem quer que isto alvitrou ficará contente de ver que a herança de Vicente de Carvalho passou a boas mãos, carinhosas e amigas, e que nem sempre é justo o rifão – Poetas por poetas sejam lidos. Se não sois poeta, o que me parece duvidoso, desde verdes anos tivestes a paixão das letras. O vosso romance Pater, obra da adolescência, denunciou desde logo um discípulo aproveitado do realismo de Eça de Queirós; iguais tendências com mais apuro se mostraram, anos depois, na vossa novela. A Conversão, página de vivo colorido e de ação intensa e vigorosa. O teatro, porém, foi a vocação irresistível do vosso espírito. Entrastes nele como um triunfador, numa quadra de profundo desalento para a cena dramática, e nunca mais desertastes a sua causa, trabalhando com pertinácia e coragem, aperfeiçoando os vossos processos de composição e análise, e derramando, no nosso pequeno meio artístico, uma onda crescente de animação, de estímulo e de esperança.
Muito se tem escrito sobre o declínio do teatro brasileiro, mas os seus tempos de glória são depressa esquecidos. Como o império romano, ou Napoleão, ele teve os seus dias de grandeza e decadência. Na época colonial o judeu fluminense Antônio José, que tão tragicamente desapareceu na fogueira da Inquisição, deliciou as nossas platéias com as suas óperas, que não eram outra coisa senão comédias burlescas, de grande veia cômica, orçando às vezes pela galhofa de mau gosto, como as Guerras do Alecrim e Mangerona. Mas o verdadeiro iniciador do teatro entre nós foi sem dúvida o Martins Pena d’Os Irmãos das Almas e d’O Noviço, nascido nesta cidade em 1815. José Veríssimo foi por demais severo com Martins Pena, quando escreveu que teriam certamente um desengano todos quantos, iludidos pela fama, procurassem nas obras do autor dramático fluminense o regalo espiritual das comédias literárias contemporâneas ou anteriores à época em que ele floresceu. O nosso Pena não tinha pretensões literárias. No seu tempo a linguagem era descurada e banal. Ele não teve escola, não teve modelos, não teve mestres. O seu gênio brotou de uma nascente selvagem, no seio da floresta virgem. Não foi um moralista, nem um doutrinador. Observou a vida, estudou os homens e os costumes, os vícios e os erros do seu tempo, e trouxe tudo à luz da rampa com singeleza e graça, com sinceridade e indulgência, com vivacidade e bom humor. São as suas farsas o espelho fiel da sociedade fluminense na primeira metade do século passado. João Caetano, na sua aula de declamação, em 1861, dava-lhe, com encantadora ingenuidade, o apelido de – Molière brasileiro...
Entre José Veríssimo e João Caetano devemos procurar o meio-termo, que a sabedoria aconselha, para designar o lugar, que compete na história de nosso teatro ao seu genuíno fundador. O período, em que floriu a comédia do Pena, foi de grandeza para o teatro nacional. João Caetano, que a tradição nos pinta como um belo exemplar de homem, dominava a cena com a sua formidável intuição dramática. A sua arte era instintiva e espontânea. Era ainda um adolescente quando pela vez primeira pisou o palco em pobre teatrinho da vila de Itaboraí. Foi uma revelação, que a todos encheu de espanto. De progresso em progresso, de triunfo em triunfo, chegou a Shakespeare diante de platéias em delírio. Em 1850 representou A Gargalhada, de Jacques Arago, na presença do autor, recebendo dos seus admiradores uma coroa de louros, e, no camarote imperial, das mãos de D. Pedro II, uma jóia de alto preço. Alguns anos mais tarde, levou à cena o drama Camões, de Antônio Feliciano de Castilho. O irmão do poeta do Amor e Melancolia, Castilho José, assim lhe anunciava esse memorável espetáculo: “O concurso era sem exemplo. Não havia no amplo recinto da sala um único lugar vazio; chegaram-se a pagar camarotes por trinta mil réis! Achavam-se presentes suas majestades o imperador e a imperatriz, que permaneceram quase até ao baixar do lustre. Tudo era luxo; na assembléia reinava certa excitação como de um grande acontecimento. Eu fui abraçar o João Caetano num entreato. É galante como ele cegou de um olho tão bem que eu mesmo, estando ao seu lado, não compreendi como era aquela engenhoca...”
Morreu João Caetano em 1863, mas com ele não se extinguiu o facho da arte dramática no Brasil. O impulso, que lhe dera o seu gênio, não podia parar. Ficaram os seus companheiros e discípulos, como Ludovina Soares, Estela Sezefreda, Areias, Amoedo, Martins e tantos outros. E era já acentuada a nova fase da produção literária, destinada à cena, sob a influência dos novos moldes do teatro francês. Quando, em 1852, apareceu em Paris A Dama das Camélias, de Dumas Filho, era o teatro, no dizer de Sarcey, um conjunto de convenções. Dumas Filho tinha conhecido Margueritte Gautier, tinha-a amado, tinha sofrido, tinha chorado. Viu-a morrer na flor dos anos. E transportou para o palco esse drama de amor, com todas as minúcias da realidade, sem suspeitar que renovava por tal maneira a força do teatro e operava uma revolução. O seu drama foi escrito com lágrimas de funda e sincera emoção.
Era a verdade transplantada para o palco, como expressão da vida, com as suas linhas flagrantes, com a sua transparência, a sua frescura e o seu perfume de poesia. Para ele, Margueritte Gautier, “très mince, noire de cheveux, rose et blanche de visage”, com os seus longos olhos de esmalte, como uma japonesa, e os seus lábios do vermelho das cerejas, foi das últimas e das únicas cortesãs que tiveram coração. Datou do celebrado drama, que fez a volta do mundo e vem arrancando rios de lágrimas por toda à parte, a nova estética do teatro. Sem dúvida que os processos de técnica evoluíram, mas o fundo de realidade e de comoção é ainda o que nos veio do autor do Demi-monde. O teatro de verdade e naturalidade é o que há de vencer e triunfar, – a verdade, como a queria Eça de Queirós, levemente esbatida na névoa doirada e trêmula da fantasia, satisfazendo a necessidade de idealismo que todos temos nativamente, e ao mesmo tempo a seca curiosidade do real que nos deu a nossa educação positiva.
Essa renovação de arte veio rasgar novos rumos e abrir novos horizontes à nossa mesquinha literatura dramática. O autor do Guarani compôs, em 1857, o seu Demônio Familiar, que é uma das jóias do nosso teatro, e onde pintou com traços finos e graciosos alguns aspectos da vida fluminense. Continuou a escrever para a cena, defendendo com calor as teses das suas peças. Deu-nos Joaquim Manuel de Macedo, entre outros dramas e comédias, Luxo e Vaidade, A Torre em Concurso e o Fantasma Branco. De Pinheiro Guimarães tivemos Punição e História de uma Moça Rica. De Quintino Bocaiúva, Os Mineiros da Desgraça e Onfália. Todas essas peças, e outras mais, foram representadas no Teatro Ginásio com enorme êxito, diante de uma platéia entusiasta.
De súbito, porém, desmoronou-se o império romano, ou, se o quiserem, escureceu a estrela de Napoleão... O teatro nacional estava ferido de morte. Escutai estas linhas de Machado de Assis, traçadas em 1873:
Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional, quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau de decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?
E ainda, numa de suas deliciosas crônicas, a propósito do antigo Alcazar, da Rua da Vala, que foi o desespero das nossas avós e das nossas mães, dizia o autor de Quincas Borba:
A princípio as cantoras levantavam uma pontinha de nada do vestido, isso mesmo com gesto encolhido e delicado. Anos depois, nos grandes cancãs, mandavam a ponta do pé aos narizes dos cantores...
Outras gerações vieram, que tentaram em vão reagir contra o paladar depravado das platéias. Não faltavam os autores, como França Júnior, um Martins Pena modernizado, e Artur Azevedo, batalhador do teatro, que, se me não engano, fez a sua estréia com Uma Véspera de Reis, verdadeira obra-prima, que há de viver na história do teatro nacional como vive ainda, na do teatro francês, aquele mimo de Madame de Girardin – La joie fait peur. Nem, por igual, escasseavam os bons artistas. O que faltava era o público, condição necessária e fatal do teatro. Lá dizia o mestre Sarcey, parecendo repetir uma banalidade de La Palisse: “Sans public, point de théâtre.”
E os pobres artistas, ou haviam de transigir com a revista de ano e o cancã, ou tinham de renunciar ao palco, buscando o ganha-pão, em outra parte. Lembra-me ter visto um dia, numa longínqua cidade do interior de São Paulo, o ator Furtado Coelho, velho e enfermo, dizendo monólogos a uma platéia de dez tostões a cadeira, num palco improvisado de sarrafos e aniagem. Doeu-me ver assim humilhado o eminente intérprete de Dumas Filho e Augier, o estupendo Olivier de Jalin, do Demi-monde, que os nossos salões de outrora tanto aplaudiram nos seus recitativos. Quando ele, com a palidez da circunstância, elegante e belo, descalçando vagarosamente as luvas, começava: “Era no outono, quando a imagem tua...” ou então: “Perdoa, ó virgem, se te amar é crime...” arfavam os seios das damas e uma aragem de ternura perpassava no ambiente... Guilherme de Aguiar, que foi caixeiro num armazém de secos e molhados, não teve quem o levasse de vencida na cena brasileira, depois de João Caetano. Ao lado do grande ator português Antônio Pedro, no Drama do Povo, de Pinheiro Chagas, alcançou inesperado triunfo. Nessa noite, referia Artur Azevedo, Guilherme de Aguiar devia representar um pequenino papel de velho fidalgo.
“Figurava apenas num ato, só numa cena, e esta cena bastou para que ele se tornasse a figura culminante da representação. Antônio Pedro, Pinheiro Chagas, o Drama do Povo, tudo desapareceu diante do personagem corneliano, sereno e olímpico, do velho fidalgo, e todos os aplausos, todas as aclamações, todos os entusiasmos voltaram-se para o artista brasileiro.” Urgido pelas condições precárias do teatro, Guilherme de Aguiar lançou-se à opereta. Mas que prodigioso artista, mesmo na opereta! Quem o viu no Tio Gaspar, dos Sinos de Corneville, teve a sensação de estar a ver um dos consagrados artistas da “Comédie Française”, Got, ou Coquelin, tal o extremo cuidado, de sinceridade e verdade, que pôs no estudo da personagem. Morreu Guilherme de Aguiar numa casa de caridade, de que era irmão. O ator Vasquez, com a face devorada por um cancro, acompanhou-lhe o enterro. No cemitério, abeirando-se do féretro, pronunciou estas palavras singelas: “Adeus, Guilherme. Está terminado o teu espetáculo. Eu ainda estou representando o meu último ato.”
Dali a dois meses estava morto. Xisto Baía, outro artista notável, veio também do comércio e foi corista de uma companhia lírica italiana. Fez-se depois ator inexcedível nas comédias de Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo e França Júnior, e foi o criador inimitável do Bermudes, de Uma Véspera de Reis. Quando perdeu a última esperança na regeneração do teatro nacional, arranjou um modesto emprego e abandonou o palco. Seria longo recordar nesta hora o martírio de tantos outros dos nossos artistas de teatro, que viveram na ilusão e na esperança, contando sempre com o dia da promissão, cada vez mais distante, e morreram na pobreza e no esquecimento, quando não na miséria e no desprezo. Órfãos da glória que lhes acenava do alto, foram as vítimas do meio indiferente em que pretenderam amar e servir uma arte das mais sedutoras e das mais belas.
Foi neste triste passo, Sr. Cláudio de Sousa, que vos decidistes a tentar a literatura dramática. A empresa era difícil e arriscada, não que vos falhassem os dotes essenciais para tanto, mas porque o melhor estímulo, que pode animar um autor de teatro, é a certeza de que terá um público educado e culto, capaz de compreender e julgar a sua obra. E esse, ninguém sabia por onde andava... Pois apesar disso, com uma coragem que tocava as raias do heroísmo, vos lançastes com ímpeto ao estudo e ao trabalho. E o vosso triunfo foi completo e decisivo. Observação aguda e penetrante, situações novas e imprevistas, linguagem sã, simplicidade e graça, movimento e vida, tudo se encontra na vossa primeira comédia, – Eu Arranjo Tudo!, que mereceu os duplos louvores da crítica e da platéia. É uma fina sátira, que põe em cena essa figura de fanfarrão, que tem por vezo concertar os males alheios.
Quando terminou a peça, cada espectador dava ao Bernardo, o herói da noite, um nome diferente: o do seu conhecido, ou amigo, que com ele tanto se parecia... É este o grande segredo do teatro: reproduzir na cena o indivíduo real, com os seus defeitos, as suas virtudes, os seus hábitos, as suas maneiras, o seu feitio. A imaginação, por si só, não pode fazer obra que satisfaça o espectador. Mostrastes assim que vos sobra essa qualidade rara, que é um dom da intuição e do instinto, de apreender instantaneamente os contornos de uma figura que passa, no turbilhão da vida, e de fixá-los na memória, antes que a imagem se desvaneça. Por isso, as vossas comédias nos dão a impressão de que as escreveis sem nenhum esforço, como se tivésseis diante de vós, na mesa de trabalho, uma coleção de bonecos articulados, que se movem, que conversam, que riem, que choram, e simplesmente vos limitásseis a copiar os seus ditos e os seus gestos, corrigindo-lhes algum deslize e compondo-lhes alguma travessura...
Com esta primeira tentativa, que tão bem surtiu, tomastes para logo um lugar de destaque entre os poucos homens de letras que ainda não tinham de todo desesperado da ressurreição do teatro nacional. No ano seguinte representava-se nova peça de vossa lavra – Flores de Sombra. Raramente se viu no nosso teatro vitória tamanha. Certo, não foi porque tivésseis escrito uma grande obra de larga inspiração, vazada nos moldes do teatro clássico, capaz de erguer as platéias na convulsão e no delírio; mas unicamente porque copiastes uma fresca paisagem do nosso campo, um pedaço de céu azul, cobrindo, com um pálio luminoso, o sossegado viver de umas criaturas simples e boas, feitas para o amor e para a saudade; porque traçastes o esboço comovido de uma triste mãe, que afoga as suas mágoas na lembrança consoladora do passado, e de uma doce roceirinha, tímida e medrosa, que vê esfolhado o seu sonho de ventura, quando a realidade pungente a ameaça com os seus primeiros açoites...
Flores de Sombra, como vós mesmo o dissestes, é a evocação da família antiga, do velho lar paulista de nossos avós, unido, solidário, e varrido de cizânias, porque batia por um só ritmo, por um só pêndulo, por um só símbolo. Os dois tipos de mulher, que criastes nessa comédia primorosa, D. Cristina e Rosinha, têm o relevo, a suavidade e a candura de uma faiança antiga. Os que viram a peça devem recordar-se da interpretação magistral que deu ao papel de D. Cristina a velha atriz Apolônia Pinto. Que tesouros de emoção ela sabia imprimir a cada frase que lhe saía dos lábios, como que envolta num soluço! “Para os velhos, que são velhos, a imagem distante é a única da vida... Nunca está só na velhice quem está na casa em que viveram os seus... No quarto de uma velha há sempre espaço para uma recordação e uma saudade...” Dizia Henri Bataille que o teatro deve ser a natureza integral: a emoção do fato, do sentimento e da idéia. É o que encontramos em Flores de Sombra. Sua beleza essencial provém do sentimento. A peça não tem complicações de enredo, nem convenções.
Repousa somente na verdade dos caracteres e nessa piedade amorosa e enternecida que envolve as suas figuras, tocadas de divina graça. Não foi menos feliz a vossa comédia – A Renúncia. Tenho prazer em repetir aqui o que disse em São Paulo, à luz das gambiarras, quando alguns jornalistas e homens de letras quiseram reparar a indiferença do público diante de uma obra dramática de real merecimento:
Cláudio de Sousa pode orgulhar-se de haver feito em sua comédia duas criações de primeira ordem. Lúcia é a perfeita idealização de um tipo de mulher que todos nós conhecemos, resignada ao seu destino obscuro, contente de fazer o bem no silêncio e no segredo do seu sacrifício. Cristiano é a própria nobreza de homem, afogando em seu peito um anseio de amor e elegendo para si a missão solitária de guarda da felicidade e da virtude de Lúcia, como se um anjo protetor desdobrasse sobre ela a brancura imaculada de suas asas pendentes... Ouvireis dentro em pouco o derradeiro ato da comédia, e com certeza lastimareis comigo que o fútil Juliano não se tenha mostrado mais cínico e cruel, para que Cláudio de Sousa não tivesse pena de o matar, premiando a desinteressada e bela dedicação de Cristiano com a suprema ventura do amor de Lúcia, ardente, apaixonado e infinito.
Seja como for, a comédia é encantadora. Quando cai o pano sobre o último ato, a gente fica a pensar que aquele demônio de Juliano, apesar do perigo que correu, vai deixar ainda isolada e triste, nas longas noites silenciosas do seu labor intelectual, aquela doce criatura, feita para o amor, para a alegria, para a glória e para a vida. E uma vaga tristeza nos acompanha e nos perturba o sono pela calada da noite... É este o secreto milagre da arte imortal: dar-nos a ilusão da vida e instilar em nossas almas as pérolas do sentimento e da comoção.
A qualidade principal do vosso teatro, Sr. Cláudio de Sousa, a que mais me encanta e seduz, está na seleção dos assuntos e dos caracteres. Nas vossas comédias se reflete a vida em sua realidade flagrante, mas sem a dureza implacável e fria dos seus aspectos de maldade e egoísmo, de vícios e impurezas, de perversões e covardia. A verdade aparece nelas diluída numa trama leve e irisada, tecida de sonho e amor, de ilusão e alegria. A existência moderna é dura, penosa, inexorável e triste. À medida que a civilização caminha, que novas ambições crescem, que novas necessidades avultam, que novos ideais despertam, crescem também, e avultam e despertam novas humilhações, novos sofrimentos, novas provações, novas torturas para a humanidade. E se triunfar, no teatro, essa exibição das verdades cruéis da vida e das tristes enfermidades da tristíssima alma contemporânea, mais se agravará um mal que ainda não encontrou, nas terapêuticas de todos os sistemas, nem nas filosofias de todos os credos, o seu remédio ou o seu consolo.
E veremos daqui a pouco, enquanto no palco se representa Ibsen, despencarem suicidas das torrinhas, trocando-se tiros de revólver nos camarotes... Geyer, numa tese célebre, formulou o diagnóstico dos enfermos do hospital de Ibsen: degeneração mental com obsessões, histeria, melancolia, alcoolismo, neurastenia, demência senil, delírio crônico... Bjornson, que lê pela mesma cartilha de Ibsen, lançou esta nota curiosa no prefácio de um de seus dramas: “Esta peça foi feita de acordo com as lições de Charcot sobre o sistema nervoso e com os estudos clínicos de Richer sobre a histero-epilepsia.” Sois também médico, Sr. Cláudio de Sousa, por sinal que recebestes a láurea acadêmica com a vossa tese de formatura – Os Nevropatas e os Degenerados, mas as enfermidades e as degenerações foram banidas do vosso teatro. A única enfermidade, que nele aparece, é o amor, com a sua febre ardente, o seu delírio, as suas alucinações, os seus desmaios... Não é pequena, nas vossas comédias, pois muitas outras escrevestes, como O Turbilhão, A Jangada e A Matilha, a galeria das amorosas. Inquietas, caprichosas, resignadas, altivas, humildes, ambiciosas, ou sacrificadas, elas passam pela vida cantando e gemendo, sorrindo e sofrendo, levadas nas asas rutilantes do sonho, ou envoltas na mortalha funérea da dor...
Não vos desvieis da trilha que até agora tendes seguido. A realidade não exclui o idealismo nem impõe a reprodução dos aspectos torpes e repugnantes da vida. As coisas nobres também são verdadeiras. Não resta dúvida que a obra dramática deve exprimir as idéias do espírito contemporâneo e realçar certos problemas que agitam as sociedades, copiando a imagem límpida e clara dos costumes de uma época. Cumpre, porém, encarar a vida com indulgência e piedade, extraindo dela o que possa elevar o pensamento e despertar a comoção. Essa, a vossa escola. A filosofia do vosso teatro resume-se num otimismo sorridente e sadio. Não vos atraem as teses morais e sociais de Eugène Brieux, nem as dolorosas crises da alma que nos desvenda François de Curel, nem ainda o implacável e duro realismo de Henry Becque... O que vos encanta e cativa é a sensibilidade criadora de Porto-Riche, é o surto profundamente humano de Bataille, é a ternura, a ironia e a graça de Alfred Capus. São estes os modelos que melhor quadram à feição do vosso espírito.
Ao dar-vos as boas-vindas, em nome da Academia Brasileira de Letras, posso dizer-vos, Sr. Cláudio de Sousa, aquela palavra que René Doumic dirigiu a Robert de Flers, o famoso comediógrafo parisiense, quando foi da sua recepção na Academia Francesa: “Le démon du théâtre est en vous.” Sois também um possesso do teatro. A vossa entrada para esta companhia foi em verdade uma restituição. Aqui ficais de guarda, como atalaia vigilante, junto das sombras de Martins Pena e Artur Azevedo. Não deixeis que se apague a flama que alumiou as vossas estréias e que há de conduzir-vos a novos e mais fulgurantes triunfos!