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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Rodrigo Octavio Filho

Sois um jovem cinqüentão, em perfeita forma, Sr. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Mas, como não gozastes horas de vadiagem, conquistastes lugar de relevo no cenário da cultura brasileira, realizando, com método e intenso trabalho, uma obra respeitável e uma vida digna de admiração. E ao atravessardes os umbrais desta Academia, não trazeis, apenas, a obra feita, mas a promessa de que tendes muito mais para oferecer.

Sois nordestino, homem de vontade indômita, nascido em lugarejo de nome bonito. Passo de Camaragibe, no interior das Alagoas. Tendes olhos cor de mel, com laivos de verde-claro, olhos que gostam de ver longe. Talvez por isso fostes levado, aos oito meses, para Porto de Pedras, pequenina vila marítima, de onde, olhando para a frente, vos encantastes com o mistério dos horizontes oceânicos... Depois, na deliciosa e natural malandragem da meninice, além de olhar o mar, fonte de Poesia, íeis ao outeiro apanhar passarinhos e colher murta... Começáveis a definir a incipiente personalidade. E bem gravadas ficaram na estupenda memória o pitoresco das viagens pelo rio Manguaba, que liga Porto Calvo a Porto de Pedras, e os longos passeios às salinas do extremo da cidadezinha.

Mas, homem que ama as confidências (que mais parecem confissões), revelastes a jovem biógrafo, o escritor Renard Perez, aquilo que mais se fixou em vossos sentidos: a viagem marítima a Maceió, que, se não despertou, decerto avivou em vosso coração menino o instinto poético, que ainda conservais intato. E, hoje, continua envolta em poesia a evocação que fazeis do avanço das jangadas no alto mar, desafio da fragilidade material à força misteriosa do oceano. Esta viagem inicial povoou de sonhos constantes vossa imaginação infantil. Não creio, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, que o passar dos anos tenha modificado ou apagado essa atitude mental da infância.

II

Foi vossa Mãe vossa primeira mestra. Bom augúrio; e felicidade que, para sempre, acompanha na vida os que dela usufruíram. Mas a figura de mestra que ficou gravada em vossa lembrança, e que lá está, bem viva, no conto com que abris o livro Dois Mundos, foi aquela mulher de olhar e gestos disciplinadores, a quem perguntastes à entrada da igreja, junto à caixa de esmolas para as almas:

– Fessora, para que é que alma quer dinheiro, hem?

Esta pergunta deliciosa provocou, entre colegas, risadas e risadas.

O Cheira-Céu é que se expandiu mais, mostrando os dentes podres –sempre a justificar o apelido, cabeça bem caída para trás, o nariz quase em posição horizontal.

D. Paulina franziu o cenho e cerrou os lábios: censurava a pergunta e impunha silêncio.

Mas vossa curiosidade infantil continuava acesa. Jeitosamente, e entre curioso e tímido, renovastes a pergunta:

– Fessora, diga: para que é?

E lá está no conto:

A fisionomia de D. Paulina ensaiou um sorriso; mas a rigidez disciplinar fechou-lhe outra vez os lábios e reavivou as rugas que lhe vincavam a testa, entre as sobrancelhas.

– Mas, fessora...
Segurou-me pelo braço:
– Isso é pergunta que se faça! Vem-se confessar, e ainda está pecando!

E um beliscão vos convenceu de que era possível adiar a satisfação da curiosidade.

Foi esta, por certo, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, a vossa primeira curiosidade, curiosidade indomável e permanente, que continua sendo a mais constante das características de vossa personalidade de homem maduro. Ainda hoje, como no tempo de menino, tudo quereis saber. E desta vontade, desta procura, desta ânsia de tudo conhecer, de bem conhecer, de bem saber, resultou a respeitável obra que já realizastes como escritor, homem de letras – ficcionista, crítico, filólogo, dicionarista, antologista, tradutor e poeta!

A curiosidade, fonte criadora de irradiação intelectual, foi também uma das marcantes qualidades do vosso antecessor, o Mestre Antônio Austregésilo, cuja reabilitação literária acabais de fazer com tanta bravura, inteligência e entusiasmo, apagando e anulando, definitivamente, uma insólita injustiça.

III

A leve evocação de alguns episódios da infância e da adolescência levanos a imaginar estarmos com os cotovelos fincados no peitoril de uma janela, olhos perdidos em paisagem distante. Na realidade, porém, estamos debruçados para dentro de nós mesmos, na contemplação encantada de nossa paisagem interior. Por isso não me assalta o remorso de estar aqui contando estes pequenos episódios, aos que hoje vieram ver-vos e aplaudir-vos, no momento alto de vossa glória literária, na hora da consagração do homem de pensamento e de Cultura que incontestavelmente sois.

Vou colocar-vos, agora, na pequena escola primária de José Paulino, em Porto Calvo, onde, aos doze anos, fizestes tais progressos que o professor resolveu ensinar-vos análise sintática e francês; e mais do que isso – pediu a vosso Pai que mandasse buscar em Maceió gramática e dicionário franceses, dando-vos o orgulho de ser talvez o único menino que, em algumas léguas de redondeza, possuísse livros de tanta importância!

Bem sei que em vosso espírito e em vosso sensível coração de vez em quando surgem a lembrança daquela imagem enorme do Senhor dos Passos, no altar da velha igreja trissecular de Porto Calvo, as impressionantes lendas que pairavam sobre o passado da multissecular cidade; e as heróicas histórias do tempo das guerras holandesas, contadas, ao cair da tarde, pelas pessoas mais velhas.

Continuando no país dos sonhos e das recordações sentimentais, passemos, como relâmpago, por vossa estada em Maceió. Aluno pobre e atento do Colégio Quinze de Março e do Ginásio Adriano Jorge, fostes forçado a abandonar os estudos sistematizados para ir ganhar sessenta mil-réis como empregado modestíssimo de uma casa comercial, o que permitiu (a informação parece útil) que, em pleno verão, mandásseis fazer a primeira roupa de casimira grossa – àquele tempo, nota de refinada elegância... Já vos era, então, grande o interesse pela leitura. Começastes a fazer os primeiros versos, todos bem certinhos e medidos, sem que entre vossos poucos livros existisse um trabalho de metrificação ou dicionário de rimas.

Mudando de emprego, passastes a receber ordenado confessável: cem mil-réis por mês. Porém o novo patrão, que não dava importância ao fato de o jovem empregado melhorar o português da correspondência, exigia fôsseis varrer o chão e limpar a placa de metal fixada à porta do estabelecimento.

Aconteceu, minhas senhoras e meus senhores, que no dia 24 de fevereiro de 1926, aniversário da Constituição de 1891, o jovem empregado, ofendido por lhe darem tarefas humilhantes, não foi ao trabalho, mas, sim, tomar banho de mar com amigos da mesma idade. No dia seguinte, é lógico, foi despedido. Acusava-o o patrão de viver lendo poesias, o que não era bem verdade, pois o nosso recipiendário afirma que só as lia depois de terminadas as obrigações diárias... Estas ocorrências, que seriam sem importância para muita gente, levaram o jovem alagoano a julgar-se vítima da Poesia e da Constituição de 91...

Com o pouco dinheiro que lhe sobrara do ordenado recebido, o jovem Aurélio, ávido por ler e aprender, foi direto a uma livraria e comprou, por nove e oito mil-réis, respectivamente, os seus primeiros livros: a gramática de Maximiano Maciel e as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Foi esse o ato inicial de amor à nossa língua e à nossa Literatura, setor em que, hoje, é mestre consagrado.

Desempregado, deu asas à veia poética, escrevendo e publicando em O Semeador (onde também colaborava Valdemar Cavalcanti) um soneto cívico, e outros, naturalmente, sentimentais e amorosos.

Mas, na vossa vida, meu ilustre confrade, na evolução ascendente que ela teve, é marcante o ano de 1926: nele destes o primeiro passo no professorado, ensinando Português – a 400 réis por aula – a antigo colega de Porto de Pedras. E aí começou vossa verdadeira vocação – ensinar – que por tal modo glorificou o vosso nome que hoje sois conhecido e popularizado como Professor Aurélio.

Daquele primeiro aluno passastes a dar aulas no curso primário do Ginásio de Maceió, trabalho que vos deixava tempo para a leitura de autores prediletos: Euclides da Cunha e Machado de Assis que, como todos nós, continuais ardentemente admirando, e Abel Botelho (romancista hoje assaz esquecido). E vieram Fialho de Almeida, com sua prosa nervosa, bela e agressiva, e Eça de Queirós, com a sinuosidade estética do seu estilo.

Mas o preço dos livros e o pouco dinheiro disponível impunham leituras restritas. Foi quando, levado por mãos amigas, começastes a ensinar no Orfanato São Domingos, ganhando ordenado que vos permitia, além de comprar os volumes desejados, auxiliar o velho Pai na luta pela vida. Era o professor do Orfanato muito ligado às rodas literárias de Maceió. E, intensificada a amizade com Valdemar Cavalcanti, colaborastes em O Semeador e na revista Maracanã, que, como quase sempre sucede com revistas literárias, não passou do primeiro número.

Mas a vossa notória vocação de mestre firmou-se no então Liceu Alagoano e, posteriormente, nas salas de aulas do nosso Instituto de Educação, do Colégio Pedro II, do Instituto Rio Branco (do Itamaraty), da Universidade Antônoma do México, e em outras, dos Estados Unidos, Cuba, Guatemala e Venezuela. E hoje sois um dos mestres que se reúnem em comissão para o preparo do texto crítico da obra de Machado de Assis.

IV

Em 1930, algo de muito importante aconteceu em vossa vida. Vindo de Palmeira dos Índios, onde fora prefeito, chegava a Maceió, para assumir a direção da Imprensa Oficial, alguém que viria a ser uma das grandes figuras centrais da Literatura brasileira: Graciliano Ramos, grande (embora sóbrio) conversador, argumentador incisivo, espírito liberal, autor de um livro inédito, Caetés, e que se impôs ao pequeno grupo de que fazíeis parte, juntamente com alguns outros nomes hoje também nacionais: Jorge de Lima, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Santa Rosa.

Mas a capital das Alagoas era cenário estreito para as vossas atividades intelectuais. Mal sucedido na primeira viagem ao Rio, tivestes de voltar para Maceió, onde iniciastes carreira burocrática, como secretário da Prefeitura – cargo de que fostes demitido e ao qual voltastes, reintegrado por mandado de segurança requerido pelo vosso amigo Raul Lima. Em 1937, já bacharel em Direito, assumistes as diretorias da Biblioteca Municipal de Maceió, do Teatro Deodoro e do Departamento de Estatística e Publicidade do Município.

Instalado, definitivamente, no Rio de Janeiro (“Rio, minha linda mulher de toda a vida”..., do verso de Álvaro Moreyra), antes que a minha bela cidade natal deixasse de ser a sala de visitas do país, para adquirir a dúbia, esdrúxula e simultânea característica de estado, município e cidade, começastes a colaborar em jornais e revistas, publicando contos, ensaios, crônicas, páginas de crítica, que deram relevo ao vosso nome.

Em 1940 encontrastes o rumo certo, o vosso destino de homem de muito saber: fostes contratado professor do Colégio Pedro II e iniciastes preciosa colaboração no Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, cuja recente 10.ª edição é, praticamente, de vossa integral responsabilidade. E é de louvar a vossa capacidade de trabalho: o Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que publicastes este ano, em colaboração com Manuel da Cunha Pereira, contém cerca de 50.000 palavras a mais do que o publicado por esta Academia e perto de 1.000 locuções e expressões.

E começam a surgir os livros... Em 1942, Dois Mundos – contos, retratos e quadros premiados por esta Academia, páginas pontilhadas de notas autobiográficas da infância e evocações da adolescência – que ofereceu ao meio literário brasileiro um moço escritor dono da língua e dominador dos seus segredos e encantos: o filólogo a projetar-se na difícil Ciência do conhecimento das palavras, e o ficcionista original e emotivo, isento de ênfase.

Dois Mundos, ao aparecer, mereceu de Graciliano Ramos, seco em elogios, palavras adequadamente afirmativas sobre vossas histórias, “admiravelmente simples e claras”, reveladoras de “figuras inesquecíveis – Molambo, João das Neves, o otimista Gonçalo. Maria Araquã, D. Cândida Rosa, sobretudo D. Cândida Rosa, grande velha” (vossa velha avó), “personagem que ficaria bem numa Literatura sólida”.

Na dificuldade de apontar, entre este e aquele, qual o melhor, qual o mais afinado ao meu gosto, escolho, pelo seu jeito pirandelliano, por ser, talvez, a que melhor espelha vossa qualidades de observador emotivo, a obraprima que é o conto “O Chapéu de Meu Pai”. Diante de vosso Pai morto, olhais o chapéu, “pendente do gancho, ali abandonadamente inútil”, “despojo de guerreiro vencido”; e que, avivando vossa saudade, servia de ponto de referência para a reconstituição, sem ordem cronológica, de um passado inteiro. E depois da evocação de toda a vida de vosso Pai, através daquele chapéu mole e abandonado, acrescentais: “O pranto me devolve à realidade do momento, e agora o chapéu me oferece uma imagem muito próxima de meu Pai – a do velho tirando-o quando entrava na Casa de Saúde, para nunca mais o usar.”

“Linguagem e Estilo de Eça de Queirós” é das mais altas páginas do Livro do Centenário do grande escritor. “Linguagem e Estilo de Machado de Assis” e, muito especialmente, a edição crítica dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, são trabalhos de alto merecimento.

Apresentastes a obra do maior escritor regional do Rio Grande do Sul, e talvez do Brasil, com admirável estudo estilístico introdutório, além de notas e glossário, que deram à Literatura de Simões Lopes Neto a interpretação, a compreensão e o relevo que somente podiam ser dados por vossa acuidade crítica, vosso conhecimento dos problemas do estilo e vossa assiduidade no estudo da língua falada em todos os rincões da terra brasileira. Com razão lembrais que a principal característica do escritor gaúcho “é a feliz combinação  da maneira literária com a linguagem oral – a fala espontânea e viva dos seus heróis”.

O estudo da linguagem e do estilo dos nossos maiores escritores regionalistas e o exaustivo exame do vocabulário e suas variações e aplicações técnicas tornam o grande estudo uma das páginas de maior valor da vossa obra. Reconheceis a existência de um sabor clássico na obra de Simões Lopes Neto, e o permanente estilo telúrico, que “vem das entranhas da terra, carregado de todo o húmus que fecunda as árvores lá no mundo calado e laborioso das raízes. Faz-nos sentir – de verdade – a campanha gaúcha. E esse húmus, abundante, se acha tão harmoniosamente difundido por todas as páginas, por todas as linhas que não é fácil apontar-lhes os trechos de maior plenitude de vida”.

V

Irmanado por laços de estudo e de amizade ao escritor Paulo Rónai, começastes a publicar Mar de Histórias, antologia do conto mundial, programada em dez volumes; acabam de nos chegar às mãos as belas traduções das Sete Lendas, Gottfried Keller, escritor, suíço-alemão, cognominado “o Shakespeare da novela do século XIX” – cuja leitura é enlevo, pelo conteúdo e pelo estilo.

Com outros trabalhos enriquecestes a bibliografia da cultura brasileira: Apresentação de Vitorino Nemésio, Roteiro Literário do Brasil e de Portugal, este último em colaboração com o nosso eminente confrade Embaixador Álvaro Lins, antologia que não copia nem imita qualquer outra. Creio ser obra única em nossa língua. Por seus vários aspectos de feitura, proporções e processo de estruturação, é obra notável, de valor e utilidade. Não há exagero no título. Roteiro Literário do Brasil e de Portugal é amplo e verdadeiro panorama das duas literaturas.

Enriqueça o Seu Vocabulário é obra de sabedoria lingüística; e quanto ao livro de ensaios Território Lírico, escrevi em sua primeira página, depois de o ler, em 1958, longe de imaginar que teria a honra de vos saudar na noite de hoje, esta pequena anotação: “Livro erudito, claro e bem escrito. Foi-me muito útil a sua leitura.”

Não é, porém, possível deixar de conceder-se grande importância às vossas traduções. Traduções requintadas, na linguagem e na fidelidade.

Arte difícil é a de traduzir. É velha advertência: traduttore, traditore...Tradução não é coisa que se possa fazer arbitrariamente: exige honestidade e o mesmo amor dispensado à obra de criação. Uma boa tradução demanda muita paciência, ritmo lento no trabalho e algo de humildade – por isso que ao tradutor não cabe impor à cultura alheia a sua própria obra, filha da sua imaginação, da sua inteligência, ou a criação espontânea do seu espírito, mas, sim, riquezas por outros produzidas, que julga devam ser lidas por quem não conhece a língua em que foram escritas. Leio na Escola de Tradutores, trabalho de vosso colaborador e amigo Paulo Rónai, que Ortega y Gasset chega a negar a possibilidade, em princípio, da tradução, excetuando, apenas, as obras científicas, escritas numa espécie de gíria artificial. Não vejo nesta afirmação indiscutível fundo de verdade, pois não me foi difícil escolher entre as vossas numerosas traduções um bom exemplo. Traduzistes para o português um livro a mim familiar, daqueles que eram lidos e relidos no alvorecer do meu gosto pela leitura: – os Pequenos Poemas em Prosa de Baudelaire, dos quais citarei o primeiro, igualzinho, na sugestão e na emoção, ao original. Ei-lo:

– A quem mais amas, responde, homem enigmático: a teu pai, tua mãe,
tua irmã ou teu irmão?
– Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
– Teus amigos?
– Eis uma palavra cujo sentido, para mim, permanece obscuro até hoje.
– Tua Pátria?
– Ignoro em que latitude está situada.
– A beleza?
– Gostaria de amá-la, deusa e imortal.
– O ouro?
– Detesto-o como detestais a Deus.
– Então! a que é que tu amas, excêntrico estrangeiro?
– Amo as nuvens... as nuvens que passam... longe, lá muito longe... as maravilhosas nuvens!

VI

Pondo ponto final no relato, apenas expositivo, da vossa vida e da vossa obra, tentarei enfrentar a difícil tarefa de interpretar os motivos que vos colocaram tão no centro de nossa cultura contemporânea, a ponto de vossa eleição para completar os quarenta desta Academia ter sido a solução esperada, pousada natural que ela é de quem, beneditinamente, vem sempre purificando a nossa língua e engrandecendo as nossas Letras. Nesta Casa, não nos esquecemos das primeiras palavras de Machado de Assis ao inaugurá-la, definindo-lhe a finalidade: conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Esta unidade muito dependa da defesa da língua. E a força mestra de vossa personalidade é o fiel amor à língua portuguesa. E desvelado amor ela merece.

As línguas são o melhor espelho do espírito humano; análise exata da significação das palavras fará conhecer melhor que qualquer outra coisa as realizações da inteligência. Estas afirmações, colhidas em Leibniz, vieram à baila nas conversas com que me honra o Prof. Pedro A. Pinto – nas quais minha pouca ciência vai ao encontro e à procura da sabedoria. É que a forma, a roupagem da idéia, tem grande valor, quase tão grande como o da própria substância; e, mal vestida, deselegante, ou desalinhavadamente exposta, a idéia não sobressairá. Na feliz expressão do Prof. J. Matoso Câmara Jr. – cada um de nós tem de saber usar uma boa linguagem para desempenhar o seu papel de indivíduo humano e de membro de uma sociedade humana. O que é bem concebido se enuncia claramente – é frase de Boileau.

Lembro-me de haver lido em Almeida Garrett que, se alguém escrevesse, com dobrada erudição, o Espírito das Leis, sem os encantos do estilo de Montesquieu, quantos leitores teria? E poderemos acrescentar: traduzam-se em “língua de farelos” as obras de Plutarco, de Cícero, de Laplace, e veremos quantos leitores terão...

Ainda no que respeita à educação moral e cívica no disciplinamento do indivíduo, é de indisfarçável utilidade a cultura da língua, de modo que se patenteie solidariedade entre o presente e o passado, de maneira que a juventude aprende a repetir, melhorando, insensivelmente, a forma que, no decorrer dos séculos, nossos maiores domaram, poliram e repoliram. E isto porque – bem sabemos – não há assunto em que não sejam necessárias e indispensáveis as graças do estilo e correção da frase.

Se assim não acontecer, e cada um, por seu alvedrio, alterar a significação dos vocábulos ou a metamorfosear sem maior aferição de seu valor, teremos de enfrentar uma nova Babel, um pandemônio, um cipoal sem saída. A semântica ensina que as variações de sentido se dão acertadamente com o passar do tempo, sem que alguém, de caso pensado, deva promover a transformação ou acelerá-la. A confusão seria desesperadora, se cada um de nós se elegesse fator espontâneo da evolução do idioma.

Todos já ouvimos dizer que a gramática pode ser tida como início da arte de pensar. E não é possível negar que o exame de uma frase, a análise de uma estutura lingüística, é bom e útil treino de raciocínio. Dá trabalho à inteligência. E o falar e escrever bem é nossa melhor arma de defesa. Somente o bom estilo é convincente. Não pensem os incautos que a filologia é terra de ninguém, ou terreno fácil de conquistar. A por vós dominada floresce e frutifica. E as vossas armas, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, são perfeitas e bem cuidadas.

VII

Há muito tempo esperávamos um confrade da vossa especialidade intelectual. A Academia, pela sua natureza, pelos seus ideais e pela pregação de seus maiores, tem pensamento e ação voltados para o idioma, conscientemente louvando e enaltecendo a importância do seu estudo, o papel que representa na cultura, nas relações sociais, nos misteres, no exercício das profissões, máxime nas liberais.

Honrado com a missão de saudar-vos, julgo de meu dever realçar nossa tradição, assinalando o trabalho de alguns compatrícios que se consagraram ao magistério da linguagem e das boas letras, principalmente o daqueles “que por obras valerosas” como que alcançam libertar-se “da lei da morte”.

Vidas esfumaçadas no tempo, mas que deixaram obras meritórias, que ainda seriam lidas, com proveito, se fossem encontradiças, como, entre outras, a Filologia, de Manuel Rodrigues de Massena, aqui publicada em 1883.

Não virão, pois, fora de propósito, nomes de acadêmicos que, não lidando, propriamente, no ensino da língua, foram mestres no escrever. E é grande o número deles. Dois, porém, estão a aflorar-me aos lábios: Alberto de Oliveira e João Ribeiro.

Rui Barbosa, orquestrador da língua portuguesa, considerava Alberto de Oliveira dos mais opulentos e quiçá dos mais castiços escritores do seu tempo. Contou-me o Prof. Pedro A. Pinto ter ouvido Rui referir-se a Alberto de Oliveira dando-o como aprimorado artista da palavra escrita, no metro e na prosa. E em cavacos de livraria ouvira o mesmo Rui dizer a Mário Barreto esta frase, que arquivou: “Até na prosa é de perfeição inexcedível a forma do nosso poeta.”

João Ribeiro, quando queria, era corretíssimo, eloqüente, rico e de elegância invejável. As vezes, porém, redigia às pressas, sobre a perna ou na escrivaninha do livreiro Jacinto, discutindo, muitas vezes, calorosamente, com amigos, com circunstantes, o que dava origem a simples distrações... É no entanto João Ribeiro autor de livros adoráveis e de erudição literária, que lhe teriam custado leitura e meditação de milhares de volumes.

Continuando a mexer, ao de leve, com matéria-prima da Casa: não há letrado que ignore ter sido Medeiros e Albuquerque escritor de clareza meridiana, apto a pôr em termos compreensivos temas intrincados... Mas alguns sabem que Medeiros, escrevendo de modo mais que muito simples, conhecia a língua, sua História, seus mistérios, suas minúcias. Não tinha, porém, o gosto de pôr em evidência a sabedoria idiomática. Comprazia-se em escrever simples, claro e correto.

Certa ocasião, quando Alberto de Oliveira imprimia um livro em Paris, incumbindo-se Medeiros e Albuquerque da revisão das provas, escreveu, a propósito, muitas cartas ao poeta, cartas minuciosas, de excelente crítica, mostrando-se conhecedor seguro de muitos fatos e segredos da língua.

Em panegírico de nossa fala, costuma ser figura quase obrigatória do seu louvor o soneto de Bilac, que começa pelo verso “Última flor do Lácio, inculta e bela”, cuja excelência não o imunizou das censuras de alguns, que nele apontam deslizes.

Bilac encontrou, porém, erudito advogado, que, defendendo-o, ensina: “chamou Olavo Bilac à língua “última flor do Lácio”, considerando a distância que existe entre Portugal e o território pequenino, em as margens do Tibre, onde viviam os latinos, na Península Itálica.

É quase certo, ao poeta passou despercebida a situação geográfica dos países em que se falam idiomas novilatinos, ou românicos, uns em redor do Lácio e próximos dele, outros afastados, como a Romênia, França, com a Provença, Espanha, com Portugal, com a Catalunha, Galiza, Gasconha, Brasil...

Se estivessem as regiões em fila, e no mesmo sentido, até quem soubesse pouco, olhando a carta geográfica, teria aproximada noção da distância. Como estão dispostos, somente técnico perceberá se a Romênia, por exemplo, está mais longe, ou mais perto do Tibre, do que está Portugal...

Sem necessidade de cultivar a História da língua, do assunto não curou o poeta e admitiu fosse a que falava mais recente que as outras, daí o nomeá-la “última”, porque ainda “nova”, “inculta”, “rude”...

Há idiomas novilatinos que surgiram depois de formado o português
– o romeno, o italiano, o brasiliense...

Datam no século IX os monumentos escritos do francês; os do provençal remontam ao décimo; são o castelhano e o português da centúria XII. Quando já estava o português constituído, inexistia o italiano, que surgiu, para assim dizer, com Dante (1265-1321). O romeno, ou valáquio, é da segunda metade do século XVI (V. Pedro A. Pinto, Revista Filológica, Rio de Janeiro, 2.ª fase, n.º 2, abril-maio de 1955).

De qualquer maneira, conclui, com razão, o eminente professor, o erro é perdoável a um poeta, sobretudo da categoria de Bilac, e muitos estudiosos da língua dariam todos os seus conhecimentos em troca da aptidão para escrever “Ouvir Estrelas” ou “A Missão de Purna”.

VIII

A esta altura, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, não será oportuno evocar, ainda, em vossa presença, a figura, o vulto de mais alguns que, no passado, fizeram o que fazeis hoje pelejando em favor da boa linguagem? Penso que sim.

Rui Barbosa e Carlos de Laet, em regra, são havidos como os maiores, se bem que não tivessem cultivado a Filologia, no conceito moderno e amplo. Cuidaram ambos da exação de significados de vocábulos, clareza, harmonia, sonoridade e beleza.

Rui, além da língua materna, dominava a latina, e Laet, como Rui, estudou a materna e conhecia, a preceito, nossas duas línguas clássicas, a latina e a grega.

Na presença de Mário Barreto, Alberto de Oliveira confidenciou a um amigo que de grego tinha Rui, apenas, rudimentos. Isso para mim pouco importa, uma vez que, com muito ou pouco grego, mas com grande dose de bom senso e sabedoria, Rui escreveu esta verdade: – uma raça, cujo espírito não defende o seu solo e seu idioma, entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser por ele absorvida.

Se me estou ocupando destes dois fundadores da Academia, é porque vossa presença nos leva à evocação de ambos, que tinham a atenção disciplinadíssima no estudo do idioma. Mas um dos principais guias dos estudiosos da língua, em nossos dias, parece-me, foi Mário Barreto, que a cultivou carinhosamente, dela não desviando o pensamento, numa fidelidade emocionante.Todos os seus estudos levam a mira no melhor modo de dominá-la.

Eu tive como primeiro mestre de Português o Prof. Fausto Barreto, pai de Mário. A este conheci de perto: conversador, inteligência multiforme. Mas quem não fosse de suas relações, ao ler um de seus livros – Novos Estudos, Novíssimos Estudos, Fatos aa Língua Portuguesa – pensaria fosse ele um frade ensimesmado, daqueles que se entregam a fundo aos misteres de sua devoção.

Mostram as pesquisas de Mário Barreto nas obras dos grandes mestres da língua paciência requintada, rigor no exame dos textos, probidade de santo, e modéstia que se confunde com a humildade. Seus livros, com exceção do primeiro, este quase de adolescente, constituem um rocal, um colar de pérolas cultivadas por homem habituado ao rico fundo dos mares. Foi Mário,sem sombra de dúvida, grão paladino da língua, jardineiro diligente, dedicado e encantado de suas belezas

E diante de vós, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, quero evocar outro que não fica atrás de Mário Barreto, o ilustre Professor Sousa da Silveira, mestre de uma geração de mestres, a quem passei a mais venerar e admirar pela atuação que teve no Congresso Brasileiro de Língua Vernácula promovido por esta Academia, em comemoração do centenário de Rui Barbosa, em 1949, e do qual fui secretário-geral.

Sousa da Silveira continua, hoje como ontem, amando, ensinando e purificando a língua portuguesa, tal qual Mário – como um frade beneditino eternamente devotado à santa do seu altar. Ambos – o que a morte levou tão cedo e o que, para alegria nossa, aí está bem vivo –estudaram com profundidade as línguas latina e castelhana, tão necessárias ao mais que perfeito conhecimento da nossa. E ambos bateram, sem êxito, às portas desta Academia... Foi pena, foi realmente pena, que elas não se tivessem aberto, de par em par,para que fossem aqui saudados com palmas iguais às que estais recbendo hoje, Sr. Aurélio Buarque de Holanda.

E não devo (pois cometeria grave pecado) deslembrar-me do sabor clássico dos poemas e escritos de Aloísio de Castro, nem esquecer dois nomes que completaram nosso quadro social, mestres na difícil especialidade em que também sois mestre: Heráclito Graça e Silva Ramos, que também ajudou a fundar esta Academia, professor que foi de muitos que dela fizeram parte e dealguns que hoje lhe compõem o quadro social.

IX

O que pouca gente sabe, Sr. Aurélio Buarque de Holanda, é que sois um magnífico poeta. Não exagero: somente quem tenha a Poesia no sangue, no coração e na alma consegue trazer para o Português, com a máxima das perfeições, respeitando forma, técnica, ritmo, métrica, estilo e inspiração, os poemas que pretendeis reunir no volume Grandes Vozes Líricas Hispano-Americanas.

É absoluta vossa integração com os poetas. Com os que sentiram os encantos da vida. Com os que se irmanaram às coisas tristíssinas do mundo... Com os que vivem, no milagre da Poesia, os sortilégios da beleza e da filosofia.

Não preciso de maiores divagações para tão belo tema. Vou provar o que disse, lendo, aos que me ouvem, duas de vossas traduções. A primeira, um soneto de Alfonso Reyes. Quem não se lembra do grande poeta mexicano, que foi dos maiores escritores e pensadores da América Latina e que, durante anos, viveu entre nós, como embaixador de seu País? Intitula-se o soneto:

VISITA

– “Sou a morte” – me disse. Não sabia
que tão estreitamente me cercara
a ponto de lançar-me pela cara
sua turbadora baforada fria.

Já não tento evitar-lhe a companhia;
segue-me os passos, transparente e clara,
e desde então nunca me desampara,
nem me deixa de noite nem de dia.

– “E pensar” – confessei – “que de mil modos
eu quis dissimular-te com apodos,
entre temores e erros confundida!
Mais de carícia tens do que de pena.
Eras alívio, e te chamei geena.
Eras a morte, e eu te chamei a vida.”

Outro poema, bem diferente, mas não menos belo que o soneto de Alfonso Reyes, é o que traduzistes do poeta, também mexicano, José Gorostiza:

QUEM ME COMPRA UMA LARANJA

Quem me compra uma laranja
pra minha consolação?
Uma laranja madura
em forma de coração.

O sal dos mares nos lábios
– ai de mim! –
o sol dos mares nas veias
e nos lábios recolhi.

Ninguém nunca os seus me dera
para beijar.
A branda espiga de um beijo
nunca eu a pude ceifar.

Ninguém pedira o meu sangue
para beber.
Eu mesmo não sei se corre
ou se deixa de correr.

Como se perdem as barcas
– ai de mim! –
como se perdem as nuvens
e as barcas, eu me perdi.

E, pois que ninguém mo pede,
já não tenho coração.
Quem me compra uma laranja
pra minha consolação?

X

Do poeta vamos diretamente ao encontro do dicionarista Aurélio. Evou contar-vos, senhoras e senhores, uma bela e significativa história.

Em 1940, Aurélio Buarque de Holanda recebeu um telefonema: era de Manuel Bandeira, que o convidava para colaborar na terceira edição do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa; devia completar a obra na parte de brasileirismos, e com isto ganharia três contos redondos. Não nego que Aurélio gostou dos três contos, mas, pior que isso, apaixonou-se pelo dicionário.

Daí nasceu uma relação de 21 anos – uma obra de paciência e esmero, pesquisa e inteligência. Para avaliar a tarefa a que se propunha Aurélio Buarque de Holanda, basta lembrar que alguns milhares de brasileirismos, espalhados pelas obras de centenas de escritores, ou vigentes apenas na língua popular, aguardavam colheita e definição; que inúmeras palavras, ao emigrarem do Reino para a Colônia, haviam ganho matizes semânticos desconhecidos aos dicionaristas de além-mar; e que outras, como congeladas, conservavam um renitente sabor quinhentisa já desaparecido na antiga metrópole.

Com rara percepção, o dícionarista Aurélio tocou o âmago do problema de nossa língua emigrada: herdamos uma estrutura gramatical já cristalizada – pouco a modificamos, e a medo. Mas sobre a contribuição estrangeira recebida pelo léxico português, sobre a já apreciável evolução semântica da língua em Portugal, o Brasil estendeu uma selva de conceitos novos, de usos inéditos.

Tal o problema: colher, classificar, compreender, definir, e selecionar a língua brasileira.

Foi assim que, das cinqüenta mil palavras da terceira edição do Pequeno Dicionário, chegamos às noventa mil da décima. Dessas, umas vinte mil são contribuição pessoal de Aurélio Buarque de Holanda, além das inúmeras a que acrescentou acepções ou aperfeiçoou a redação.

No entanto, um dicionário não se mede apenas pelo número de palavras que inclui. Mede-se sobretudo pelo rigor do método, pelo aperfeiçoado nas definições, pela sensibilidade às sutilezas de sentido.

Dicionário é obra de gerações; o dicionarista torna-se humilde ante a própria realização, e apenas a empurra um tanto à frente, para que outro a retome. Sabemos que o fundo léxico da língua é em grande parte estável – compulsar outros dicionários, sem repetir, é a tarefa cotidiana do lexicógrafo. Se Bluteau foi o primeiro dicionarista do português – ele mesmo auxiliado por autores de outras línguas – Aurélio Buarque de Holanda é seu descendente brasileiro, neto de Morais, primo de Aulete, Figueiredo, Silva Bastos – essa terrível família dos catadores de palavras.

Existem gerações que, de pai a filho, se dedicam a capturar palavras; estas, por sua vez, se comportam como pequenas raposas cheias de manha, ou como a lebre de Tartarin.

De fato, é preciso primeiro levantar a caça – colher o vocábulo na boca do povo, no escritor ou em outro léxico. Sobretudo, é preciso saber se ela existe. Há por aí, espalhadas em romances e poemas, em dicionários e tratados, centenas dessas filhas espúrias de um ouvido mais duro, de uma fraca memória, de uma pena apressada.

Descoberta a palavra, tenta-se compreendê-la. Ao contrário do que parece, as palavras dependem tão intimamente do contexto que, uma vez isoladas, se tornam imprecisas, pejadas de sentidos ancilares, ou vazias de sentido. É o caso de vocábulos tomados a textos poéticos, em que, muita vez, figuram apenas como constante musical, desejadamente misteriosa. A palavra refugia-se dentro de si mesma, é necessário tocaiá-la.

Depois, a palavra compreendida – se compreendida – deve ser domesticada. Urge grafá-la, recorrendo à etimologia ou à simples lógica. Como um fidalgo de velha cepa, o dicionarista, mal trava relações com a palavra, sai a investigar-lhe os avós e bisavós, a palmilhar os caminhos do étimo, inçados de cruzamentos e hiperbibasmos, dissimilações e sinalefas, aféreses e paragoges, em que se espetam os mais cautelosos.

Mas, se o nosso herói espreitou, surpreendeu e se apoderou do vocábulo, não pensemos que chegou ao fim de suas penas. Falta definir. Presa e manietada, a palavra ainda tem forças para fazer-lhe mil caretas de fuinha, uns arreganhos em que põe olhos de peixe em corpo de coelho, deita asas, lança caudas e lhe mostra a língua. Falta definir.

A definição, afastada a idéia de cópia de autor mais antigo, representa a cristalização de todo o trabalho anterior. A procura dos atributos essenciais de um objeto, estado ou ação requer poder de análise essencialmente filosófica. É também um problema de precisão vocabular e de síntese estilística. Como definir janela, como definir , como definir astúciamundoespelhovontadenadavento? Só Deus sabe. É comum o dicionarista perder dias, ou anos, para topar com uma definição aceitavelmente exata, quando outro a descobre mal se propõe a isso. Quantas vezes a idéia perseguida na noite anterior, a quinta-essência do pequeno monstro indefinido e irônico sobre o qual se perdeu o sono, aparece de súbito no ônibus, no cinema, dentro do prato de sopa do jantar? É por isso mesmo que o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda tem a fama de trazer sempre consigo uma bateria de lápis, uma coleção de papéis em branco, que, neste mesmo instante em que falamos e o recebemos como um dos nossos, devem estar prontos para a anotação ligeira, para a súbita iluminação. Inspiração, ou estado de graça, ou pesquisa de anos a fio. Um dia, porém, sempre nasce a perfeita definição, a definição inevitável, seja ela obra do intuir ou do laborioso polir de gerações e gerações.

Talvez esteja aí a maior qualidade a ressaltar no lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda: o estado de graça diante das palavras que pastoreia, a intuição que o guia infalivelmente ao atributo essencial de qualquer vocábulo, a economia do estilo.

E isso não é tudo; mas, dos métodos adotados por Aurélio Buarque de Holanda quanto ao registro de flexões, quanto a variantes, sinônimos e antônimos, e tantos outros problemas lexicográficos, de todo esse trabalho não poderei falar neste rápido escorço de uma obra de vinte anos. Basta dizer que sobre cada um dos detalhes citados se exerceram a inteligência, o cuidado e o rigor de um verdadeiro estudioso da língua, e que a obra daí resultante, se humilde em objetivos e maneira em tamanho, é monumental em precisão e utilidade.

XI

Acontece que vossas tendências e inclinações literárias são espelho de muitas faces. E não deixarei esta tribuna sem outra referência a um dos vossos livros, importante pelo estilo e pelo que ensina. Território Lírico permite-nos um passeio por alamedas quase desconhecidas da crítica estilística.

O nosso eminente Confrade Augusto Meyer, prefaciador do livro, com aquela simplicidade, aquela arte e aquela sabedoria que lhe são peculiares, depois de contar, em traços pitorescos, certa discussão que tivestes com o poeta Murilo Araújo, no fundo da Livraria São José, a propósito de um decassílabo de Artur Azevedo, refere que o episódio serviu para retratar, num flagrante, “pelo menos um dos Aurélios mais simpáticos que se integram na generosa pessoa do Professor Buarque de Holanda Ferreira: o amador, o degustador, o maníaco de Poesia”.

“São os Aurélios desta têmpera”, acrescenta Augusto Meyer, “que garantem a perenidade da magia poética, o seu cultivo consciente, os seus direitos de conquista na posse do território lírico”.

Para tão nobre mister é preciso ter – e é o vosso caso – “O amor desinteressado pelo sortilégio poético, a intuição da Poesia acima de tudo, mas, ao mesmo tempo, o estudo dos textos, a pesquisa minudente, a incansável paciência de reler, sentindo e amando, analisando e perquirindo, reler mil vezes para compreender bem a intenção do poeta à luz do estudo estilístico”. Só um poeta-leitor, “há longos anos capinando no duro chão da Filologia, a serviço da Estilística”, poderia escrever o Território Lírico.

Augusto Meyer reconhece em vosso livro – e eu com ele em primeiro lugar o bom leitor, ao mesmo tempo agudo e ingênuo, “ingênuo bastante”, acrescenta, “para entregar-se à comoção lírica, sem a qual não há capacidade de recriar, vibrando, mas, de outro lado agudo também, isto é, capaz de interpretar com pleno conhecimento de causa as intenções do poeta, considerado como artífice”.

Não me é possível – pois já falei mais do que devia – ler capítulos do Território Lírico para mostrar o pioneirismo de vossa ação na crítica estilística da Poesia. Para tanto fostes aquele leitor ideal, por querer, na opinião do vosso prefaciador, que a Poesia latente num poema, “espécie de Bela Adormecida no bosque”, espere cem anos às vezes pelo seu príncipe eleito. E, para começar a viver enfim o seu destino, a Poesia encontrou em vós o “leitor ideal, sob a forma de um homem corpulento, de cabeça leonina, loura juba atormentada, com nervos de folha sensível à mais leve aragem...”.

Sr. Aurélio Buarque de Holanda: foi pouco o que eu disse, desajeitadamente, da vossa obra. Ela foi quem vos trouxe para nossa companhia.

Esperamos nós, vossos confrades, que esta Academia seja um prolongamento do vosso gabinete de trabalho, a continuação da vossa própria casa.

19/12/1961