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Discurso de posse

Esta Cadeira, Senhor Presidente, e senhores acadêmicos, pela ausência anímica dos seus vários detentores, traduz o que pode haver de menos adequado ao ritmo das Academias, como guardas da tradição, senhoras do metro e rainhas da medida. Ela é um paiol de pólvora, perpétuo, como o raio no firmamento. Tomás Antonio Gonzaga anda saturado, no lirismo da sua Poesia arcaica, do enxofre da rebelião, dentro dos porões de Vila Rica. O vate, se não exprime uma revolução em marcha, tem, contudo, o odor do que hoje se poderá chamar uma “conspiração fria”. Frustro, a Costa d’África é o seu desenlace ainda mais álgido, que o exílio da Pátria e a distância da mulher amada.

Silva Ramos, gramático, de maço e mona, fino escritor da língua, tradutor feliz de Heine, era um explosivo. Brigava com quem o desafiasse. Era indócil com os provocadores. Andava às turras com os adolescentes insubordinados no Externato Pedro II. Não só gostava de lidar, como também aceitava as rixas que lhe eram trazidas por estúrdias de estudantes, e, galo valente, levantava a crista e vinha para o terreiro. Ciscava aí o bravo e ilustre professor, a quem o convívio com Portugal e os lusíadas, propiciou, ao lado de um elegante sentido da pureza da língua, a capacidade de pleitear pelo que ele julgava o seu dever, a sua honra, o seu direito.

Com Alcântara Machado mantive uma convivência que durou, do ano em que aqui cheguei até a sua morte. Afrânio Peixoto, seu amigo, mo apresentaria certa tarde, na Avenida Rio Branco. Nada menos de 23 anos mais tarde, com Roberto Simonsen e outros, fundávamos a Escola de Sociologia e Política, de cujo Conselho Administrativo ufano-me de ser diretor, em substituição a Afrânio Peixoto. Seu filho, Antônio, morreu diretor do nosso Diário da Noite carioca. Alcântara Machado apreciava comigo, há muitos anos, o papel do Tietê, que vejo cada dia maior, no quadro da natureza econômica do Brasil. Do caminho pascaliano que anda, da grande estrada viva, aberta ao transporte das bandeiras, isto é, o Tietê, dizia Alcântara Machado que era o maior dos paulistas, até porque não pretere ninguém. Seu rival, suponho, será Nossa Senhora da Aparecida, mas essa chegou boiando, faceira, entre lírios, na bacia de outro rio, grande como o Tietê, porém, híbrido. O Paraíba corre entre seis braços. Não é só paulista. É um bandoleiro pérfido. Não ama ninguém. Vêde o ciúme que da terra paulista tem o Tietê. Não a larga nunca. Corre sempre dentro da área do território de São Paulo. O Paraíba ama três terras. 

Suave, não falando, mas sussurrando, distante das multidões, fechado, sempre hermeticamente fechado, o clima espiritual e político de Alcântara Machado era um contraste com o daquela Natureza tépida, aparentemente macia, da garoa paulistana. O veludo que tinha na alma para os os amigos transformava-se em urtiga para os adversários. Quando se vinha de Armando Sales, fascinante na elegância dos ademanes de um supercivilizado, de um Jacinto sufocado pela exuberância tropical dos seus contemporâneos, e se desembarcava em Alcântara Machado, é que se notava a oposição dos dois temperamentos, que renhiam no seio do Partido Constitucionalista. Nosso presidente de Sociologia de São Paulo, dentro de um clã partidário, ele e os seus inconfidentes, que nas mesmas fileiras militavam, constituíam um pelotão em rebelião constante. Os fermentos que traziam para emulsionar a vida daquela maloca guaianás davam precipitados que os colocavam em constantes fricção com os companheiros da mesma agremiação cívica. Alcântara Machado era um galho viçoso do jequitibá perrepista. Ali dentro, sob a Primeira República, vivia insatisfeito. Resmungava. Seus competidores domésticos, na nova ordem partidária, a que surgiria após o colapso militar de 9 de julho, emanavam do Partido Democrático. Reivindicando uma larga dose de liberdade intelectual, no seio desse grêmio, Alcântara Machado agia dentro dos seus muros, soprando um mistral quente, no gênero daquele a que Augusto levantou altares. A ventania que ele mandava do peito sacudia as vergasda nau-menina, recém-saída dos estaleiros da revolução. De noite, a tempestade acendia o santelmo nos mastaréus do barco, cujo bojo a todos acolhia. Eram os “fantasmas” da conspiração branca de Alcântara Machado. Tendes aí a terceira figura de conspirador da Cadeira.

Rondam, ainda, aqui, pelo Rio e São Paulo, dois dos seus “espectros” da meia-noite : os Srs. Motta Filho e Horácio Láfer.

A rotina desse clima celerado da Cadeira de Gonzaga, como não poderia deixar de corresponder a Getúlio Vargas, alma de conspirador e têmpera de subversivo, unha e carne com Gonzaga, e à fila dos endemoninhados, que o sucederam, na Cadeira, da qual o vate mineiro é o patrono? As caldeiras de Pedro Botelho de Vargas, do satânico Vargas, são, portanto, inseparáveis da cálula de insubmissão civil e literária, armada nesta Cadeira. Não são senão outlaws, fora da lei, os ocupantes do posto do enamorado de Marília. Sentome aqui, Senhor Presidente, tremendo, eu que me considero uma coluna da ordem, um esteio da legalidade. Care, never extreme care, dizia Brummel. Mas eu, pelo contrário, estou tomando cautelas adequadas, ao fixar os precedentes que se legaram os antecessores. Estou em más companhias. 

Um benigno destino quis que me fizessem comendador, portanto, condecorável, e, a seguir, que me visse induzido, por um secreto e ambicioso instinto, a bater às portas da Academia, a declarar à Companhia, que, sendo condecorável, era, outrossim, “academizável”, na expressão banvilesca. Tende a segurança de que nunca fui inimigo da Academia nem dos senhores acadêmicos. Mário de Alencar, Miguel Couto, Alfredo Pujol cunharam esta invencionice. Mas não puderam prová-la. Fugi de maiores experiências com a Academia por entender que, com uma sensibilidade de paraibano, não iam a vossa ordem e a vossa disciplina. Eis tudo. Pensavam aqueles amigos que Capistrano e Pedro Lessa não me queriam ver acadêmico. Combatiam minha entrada em vosso Cenáculo. Também não é verdade. É certo que ambos falavam mal da Academia para mim e para o público em geral. Diante, porém, de quem poderia deter-se a veia de polemista daqueles dois temperamentos de provocadores, daquelas línguas venenosas que Santanás para aqui despachou, como embaixadores do Inferno na face da Terra? 

Confere-me a Academia a maior de todas as honras e a mais cara de todas as glórias. Quando se recebe na Companhia um paraninfo como o Professor Aníbal Freire, ganha-se uma graça. Fostes comigo infalíveis, infalíveis e divinos. Pois a graça não é um dom celeste? Há 44 anos, o Professor Aníbal Freire tinha duas cátedras em Recife: a cadeira de professor, na Faculdade de Direito e o posto de diretor do Diário de Pernambuco. Uma eoutra ele as exercia com um talento incomparável, e uma atração e uma têmperade caráter raros. Fora difícil dizer qual era maior, se o jornalista ou o mestre do Direito Administrativo e da Economia Política, pois de tal forma consumada era a sua vocação para ambas as cátedras. Em 1911, na Câmara Federal, surgiu uma revelação que Carlos Peixoto me declarou, foi a maior do seu tempo. Nascia, nesta cidade, um parlamentar com a allure, a cultura e a graça do espírito, a técnica da oratória, e segurança na tribuna, o gosto pela liberdade, que o fizeram emular com os mais completos que tem tido o País, ao serviço das instituições livres. Depois, Ministro da Fazenda, que trouxe a libra esterlina a 24 cruzeiros, Juiz da Suprema Corte, com votos luminosos, diretor do Jornal do Brasil, a carreira do nosso mestre Professor Aníbal Freire é uma tão vigorosa marcha para a imortalidade que, quando a Companhia chancela a aspiração coletiva que unânime indicava, já repousava ele no seio amável dos deuses deste Olimpo.

Escolhestes, para suceder o fundador do Estado Novo, um antigo professor de Direito Romano e um propagandista das instituições representativas. Fostes, nessa linha de conduta, fiéis à memória de Getúlio Vargas. Como ele, seguistes a regra dos contrastes.

Acredito que a Academia me elegeu como quem busca uma natureza de equílibrio para tirar o demônio, que há mais de cinqüenta anos ronda esta Cadeira. De quantos pecados, cometidos em minha longa carreira de jornalista, não me penitencio agora! Espero que a ordem, uma ordem objetiva, venha imperar daqui por diante, no posto que ocupo, em vossa Companhia. A barulhenta memória dos que aqui se sentaram será compensada por uma tranqüilidade de lago suíço, à qual me vejo recolhido, na fraternidade das aspirações, que comungo com a Academia e seus leais servidores. Tende a certeza de que trouxestes para o vosso grêmio uma índole da Regra e do Método, disposta a proscrever dos seus trabalhos, aqui dentro, como lá fora, o quanto não contribuir para acrescer o vosso cabedal de fidelidade e de observância às leis da Ciência, das instituições, da vida, da sociedade e do céu. Está morto o último companheiro revolucionário, Getúlio Vargas. O pecado original do conspirador Gonzaga foi resgatado. Pela primeira vez, na história do mundo planetário, se elimina esse gênero de pecado. O mal cria o bem, digamos em termos goethianos. Desse bem, recuperado, sou o primeiro beneficiário. Aquele que cai morto pelas próprias mãos, em virtude de um ideal, propicia, com seu sofrimento, uma integração nossa, num plano superior de espiritualização.

Aqui vim apenas para bosquejar o perfil de Vargas, esperando que outros tomem o tosco retrato de hoje, como ponto de partida, para escrever os livros definitivos que, à luz de melhores observações e de outros ensinamentos, lhe deverão ser consagrados.

Se eu tivesse tempo, se houvesse lazeres na minha faina de gerente de jornais, rádios, revistas, televisões, fazendas agrícolas, com as suas técnicas tão diversas e as suas formas de atividades intelectuais e sociais tão variadas, tentaria dois livros:um sobre a Escola do Recife, com o seu germanismo presunçoso e as suas gaforinhas desabridas, e outro sobre os dois consulados de Vargas – o que vem de 1930 a 1945, e aquele que parte de 1951 e submerge em 1954.

Estas páginas, Senhor Presidente, foram escritas quase todas na Riviera francesa, em Cap Ferrat. O resto compus em Dakar e no Rio. Andei por três continentes para interpretar o último dono desta Cadeira. Fui a Nice respirar o claro ozona da ambiência mediterrânea. Não seria possível tratar de um bárbaro, filho também daquele mar de tão fina espiritualidade, sem ver Ulisses. E eu fui ver Ulisses, o companheiro inseparável daqueles que exercem o seu métier de roi, com a virtuosidade do equilibrista helênico.

Não era Vargas somente a América Latina e a Rússia, Minas e o Rio Grande. Seu tato, a sua finura, as suas manhas, a sua solércia de gato, a sua sedução de demiurgo o identificam muito com o Rei de Itaca.

Seu charme, o charme que emanava da sua pessoa, era irresistível. Quando queria, era-lhe fácil envolver-nos nos eflúvios da sedução, que o imantava, e subjugar-nos. Em outros, o poder de fascinar exigiria um jogo mais artificial. Nele não havia um esforço de amabilidade, senão aquela elegante volubilidade, que punha nas conversas, ora ferindo um ponto, ora outro, conforme as tendências dos que faziam a sua roda.

Vargas deverá ter sido o ser mais estranho e sobre-humano que teve até hoje a galeria dos homens de governo latino-americana. Com ele nos poderemos permitir a muitas combinações. Armando Sales já preso, no Rio, em casa, em 1937, sustentava na noite do 18 de Brumário Getuliano, perante mim, uma opinião que ele nunca mais negaria: “Vargas é um homem inteligente.” O vencido reconhecia no verdugo da sua causa a pujança intelectual, que dele dimanava. Vargas tinha de Pedro II e de Floriano; de Sarmiento e de Facundo; de Mauá e das forças telúricas do índio ciumento, que olha de través o branco civilizado, como o usurpador da sua roça. É tolerante e intolerante; gosta dos ricos e dos pobres, e, fazendo política socialista, não tem constrangimento de freqüentaros riscos e de sentar-se à mesa deles, a fim de melhor experimentar a técnica de demoli-los. Enxundioso e plácido, enganava o que lhe tomava a gordura como indicativo do bonacheirão. Remy de Gourmont enxergava, no gordo, o bondoso, o fácil, o coulant. Só na aparência, Vargas podia ser isto. Espicaçado, o ginete cavalheiresco do pampa arremetia com fúria de javali.  

Fixe-se bem este traço da índole de Vargas: ele era um emotivo, um sentimental, sujeito a cóleras súbitas, como nós outros. Somente sabia dominar-se. Não explodia, porque se refreava, calando. Uma noite, disse-me no Guanabara, em 1934: “Esses gaúchos aqui chegam e desabafam, dizendo impertinências. Depois, vão-se embora, e eu fico de noite sozinho, com um ‘corno’ na boca.” Esta é uma expressão gaúcha.

Para estudá-lo um décimo é preciso tê-lo praticado, como o pratiquei, exaustivamente, todos os dias quase, entre 1924 e 1927; e menos, muito menos, daí por diante, mas o bastante para continuar a encontrá-lo a personalidade mais rica de contrastes, o maior diferenciado, dentro do seu próprio quadro pessoal, que se pode imaginar. Há um texto alemão que diz : nada será menos alemão do que ser-se unicamente alemão. Es ist undeutsch, bloss deutsch zu zein. Nada será menos Getúlio Vargas do que ser exclusivamente um só Getúlio. Falando de Getúlio Vargas é indispensável tanto sair do Brasil como mergulhor no Brasil; ter os pés em nossa terra, como perlustrar a dos outros, encadeando-o, tanto na própria vida quanto na daquelas criaturas, com as quais conviveu, desde a mocidade e que guardarão sinais indeléveis em sua individualidade, do seu contato pelo resto da existência afora. 

Vargas aparece no cenário do Brasil em um momento de rebelião geral do mundo. Vinham os laboristas de terminar a sua primeira experiência, na Inglaterra, fazia pouco mais de um qüinqüênio. Roosevelt virá, em 1933, revolucionar a estrutura econômica dos Estados Unidos, martelando o capitalismo industrial, mercantil e bancário, com uma truculência só comparável à dos russos soviéticos. Na Espanha, os republicanos terão deposto o rei. Hitler e Mussolini faziam, um e outro, governos de massas, com ideologias populares. O Khan tártaro, Stalin, insistia em debilitar a sociedade capitalista, no quadro selvagem da escravidão russa. Todos os ditadores eram freneticamente totalitários, com exceção de Salazar e Mustapha Kemal.

Um provinciano da fronteira gaúcho-argentina surge disposto a quebrar o tipo clássico dos presidentes mineiros e paulistas. Recusava-se ser liberal e tampouco democrático. Vinha decidido a estrangular os reacionários da liberdade. Tinha o espírito malicioso de um Voltaire e agia em política com o sadismo aristocrático de César Borgia. O golpe político de 1937 é um fragmento do “Belíssimo Engano”, de Sinagaglia. Afetava maneira de viver, de sentir, de reagir, inéditas, no panorama político do País. Misto das duas paisagens, a quixotesca e a do escudeiro, soberbo e humilde, anjo e demônio, Vargas mostra desde logo que tínhamos de emigrar do ameno clima paulista e mineiro que até então se respirava no Catete. Solitário, introvertido, impenetrável, vivendo dentro de si mesmo, suas duas instâncias, a primeira e a última, era Deus. Criou, para isolar-se, defesas naturais, que lhe dariam a configuração exterior de um contemplativo oriental. Viu-se, ao cabo de certo tempo, que o pampa intérmino, com a sua monotonia de estepe siberiana, principiava no Flamengo.

A Rússia aparece igualmente com ele, na forma de uma legislação obreira avançada, como também fragmentos de Bizâncio, na sua finura, na sua casuística, na sua furberia, para despedaçar certos postulados de ordem e de lei individualísticos, que ele se dispunha a levar a cabo, no ímpeto de um Sturm und Drang, para nós desconhecido.

Tinha os dois pólos, o dinâmico e o estático. Sossegado, tranqüilo, dirse-ia, à primeira vista, viver no pólo estático, na vida vegetativa do animal. Disposto a socializar o Brasil, há de ser, dentro do pólo dinâmico, que irá viver. Infligia a pena capital, na “guilhotina seca” a milhares de brasileiros, em função do programa que trouxe, de agir como um fator de perturbação no seio da sociedade brasileira.

Ao lado disto, um europeu, dotado do rígido senso das coisas. Com o vago, o impreciso de certas inovações, o líder novo derramava tesouros de sachlickeit. Era claro, objetivo, místico e elementar.

Quando redigi “O Monstro”, a única criatura deste País que não se impressionou com o artigo foi ele. Disse a amigos que o havíamos escrito, pacatamente, juntos, em Ponta Grossa, e era a verdade. Toda a matéria-prima da sua contra-conspiração em Porto Alegre, ao lado daqueles dois querubins, o General Gil de Almeida e o General João Simplício, seria ele, ele e mais ninguém, que ma fornecera dentro do seu trem de campanha, no Paraná. Getúlio Vargas logo enxergaria, desde o primeiro instante, que “O Monstro” era dirigido contra o seu Ministro Osvaldo Aranha, para abater o poder político momentâneo desse caudilho, e, ipso fato, diminuir a pressão das pequenas patentes subordinadas ao outubrismo, no seu governo, contra nós que fôramos a parte civil da jornada. Era preciso dar um banho turco em Osvaldo Aranha para tirar-lhe substância, que ele estava politicamente gordo, cevado. Levamo-lo a um banho de 39 graus. Vargas achou esplêndida a idéia. Até porque, no dia seguinte ao da publicação de “O Monstro” muita gente ficou satisfeita em constatar que ele não viera a reboque de ninguém, para derrubar a República Velha. Era Vargas um gênio de iniciativa, como Aranha. Revelava- se, pela primeira vez, a força de iniciativa que fora ele, na revolução, com as suas marchas e contramarchas, com as ordens de avançar e recuar, que eram do trem da sua vontade hesitante e impetuosa.

Mas “O Monstro” encerra uma novidade para Vargas, era-lhe um mistério e ele busca, por todo o preço, desvendá-lo. E, para isso, me convidaria, quatro ou cinco dias depois, a uma visita ao Catete. Quem contou ao autor que ele fora o espírito mais imbuído de Nietzsche no Rio Grande do Sul? Ao esquivar-me de lhe revelar a fonte, insistiu, brando, mas firme. Eu lhe disse: oGeneral Flores da Cunha.

– Pensei que fosse o João Neves, o Collor ou o Maurício, replicou. Efetivamente, será visível por todos os aspectos a
influência do filósofo germânico em sua diabólicia formação política.

Desastre fora tentar definir naturezas da opulência espiritual de Vargas, num conceito qualquer, por mais largo que fosse. A nossa geração e, quiçá a futura, se haverão apenas ao mister de assistir à decantação dos atos e dos gestos do herói trágico, com as suas ações santas, de apóstolo social, e as faculdades malditas de demônio político do seu tempo.

A Academia irá permitir que eu não tente a insensatez de desumanizar Vargas. O seu inumano é que é a delícia das deícias. Aquele que sucumbisse a uma tal tentação só lograria amputá-lo e diminuí-lo. O que há de sedutor em Vargas é precisamente o bárbaro, traduzindo numa linha de civilizado conservador. Aí é que está um dos segredos da durabilidade de Vargas. Que aparência de ordem interior e exterior não dava ele, mesmo quando cometia as maiores enormidades! Impõem-nos tratá-lo como um bárbaro, o culto da inteligência, o respeito da razão e a fuga ao paradoxo. Ele não é anjo nem fera, racional ou irracional, mau nem bom, tolerante nem intolerante. Considerada a ordem de valores em que o deveremos situar, Vargas é o caso de intelectualismo mais atrevido que ainda viu o cenário político e espiritual do Brasil, no hedonismo brutal das suas preocupações, e na vulgaridade da table d’hôte dos seus manjares habituais.

A peculiaridade de Vargas é que não havia um só Vargas. Há variados, específicos e numerosos Vargas e cada qual com a sua psicologia, a sua consciência, a sua face, as suas idiosincrasias, o seu estilo, vivendo numa vida à parte e com a intuição perfeita das suas relações próprias com os homens e as coisas. Ele foi prestar contas ao Eterno, levando a maior soma de indivíduos, que ainda se justapuseram numa só pessoa, e cada qual tocado de razões as mais respeitáveis, neste universo de ficções e de sonhos, dentro do qual construímos pontes, pilares, nuvens e talagarças.

Porque Vargas trabalhou com toda sorte de matérias-primas: desde as pedras preciosas até o granito bruto.

Quando se trata de Vargas o que será preciso identificar nele, antes de tudo, será o político.

O político cujo conteúdo é o caudilho – caudilho no sentido espanhol da palavra, na acepção em que a empregam os espanhóis com o General Franco.

Sei que falo para uma Suprema Corte da Inteligência. Todos aqui entenderam o que quero dizer, quando ofereço de um homem como Vargas, um depoimento destes. Conhece a História Civil do Brasil outras figuras desse tomo. Que são os Andradas, por exemplo, senão uma geração de caudilhos, em constantes tropelias? Se o que faz um caudilho é a sua alma, o estilo da alma dos Andradas é o que de mais caudilhesco haverá no Brasil. Maistento penetrar no inconsciente da sociedade brasileira do primeiro decênio da independência, mais se me depara o Rio Grande embutido na endócrina dos Andradas. Os Andradas foram os indivíduos mais facciosos do seu tempo. José Bonifácio pedia que se aplicasse contra Ledo a “lei marcial”. O caudilhismo tem uma bela contribuição paulista. A torrente vem desde o Século, comGurgel do Amaral e outros cabecilhas, desemboca no rio-mar dos Andradas, que foram os gaúchos da sua época, no Brasil da Minoridade e da Regência.

Os Andradas, a partir da geração de José Bonifácio e Martins Francisco, são uma mestiçagem irlandesa. Os sinfeiners O’Leary acabam em Antônio Carlos, que incorpora em 1929 os “imponderáveis subversivos” do Rio Grande ao Thibet mineiro. O Rio Grande do Sul em núpcias com Minas Gerais para desencadear uma revolução! Só um caudilho irlandês seria capaz disto, e a mistura do sangue dos Andradas com o dos gaúchos da Ilha Verde é que produziu a aliança híbrida.

A política, em Vargas, era uma plenitude, a sublimação da sua natureza. Poucos sabiam que aquele temperamento tímido, reservado, sensitivo, não gostava de agir ostensivamente. Era um infernizado da ação, um dinâmico inesgotável, mas tudo isso por debaixo do lençol submarino. Quando vinha à tona da água o grande anfíbio, era só para ver o céu, as estrelas e mergulhar de novo. Procurava guardar a todo momento, diante de amigos e inimigos, a nobreza da linha e o segredo da sua presença nos acontecimentos. Era com a mão do gato que gostava de trabalhar. Agia pessoalmente o mínimo. Gostava de se exprimir e de se interessar, através dos outros. Adorava o próprio silêncio, que era suntuoso como um fundo da água de coral marinho. Sacudido pelas pessoas tempestuosas aventuras da sua carreira, na face não se lhe estampava uma crispação, vinda de dentro, da alma atormentada. Conforto, apoio, encorajamento, o que nina o coração do homem na luta, o que o embarca para a vitória, ele buscava em si mesmo, nas suas próprias reações íntimas, na sua álgida impenetrabilidade.

Getúlio Vargas mexia tanto com a política, trabalhava-a de tal forma, que dela se podia dizer que, em suas mãos e na sua técnica, era quase bruxaria, ou caos, ou schaden freud, sadismo, no trato dispensado às suas vítimas, às vítimas do seu trabalho a todo vapor ou em câmara de ar condicionado.

Desde que enceta a luta contra os políticos (mas com eles convivendo sempre e adorando essa convivência, porque o toque profundo da sua alma era a política), Vargas entra a falar como se subisse ao “último rochedo druídico”. E o que acontecia era que o druída era um misto de sacerdote e de feiticeiro. O sacerdote exorcizava os demônios, responsáveis pelas assombrações populares, pelas tempestades coletivas, pelas calamidades sociais, dando o sinal de combate aos gênios do mal, devorado ele mesmo pelo voto da castidade cívica, que fizera no serviço ao povo. Mas o bruxo não andava longe do personagem celeste, e em sua conjunção diabólica os dois perpetravam coisas infernais, de um interesse dramático e passional, que nos desorientava. Até porque Vargas (era visível nas suas ações) amava o pecado, adorava o maravilhoso do pecado, e punha no Olimpo, que criara, com os seus deuses da salvação do povo, os numes tutelares das massas, igualmente o pecador, isto é, o reacionário. Até porque a sua convivência era com toda a Arca de Noé. Eis o que é o Olimpo deste Júpiter: uma corte de anjos, vestidos de branco, alados, uns, outros, mercuriais, como ele mesmo, ainda esperando a conversão, sem embargo de Santanás chamá-lo a todos e a cada um, ternamente, meu filho.
  
Embora servindo-se muito e a todo tempo dos políticos, Vargas não acredita neles, não faz fé nessa gente. Sua massa de manobra para as construções políticas que arquiteta são povo e Classes Armadas. Nelas se refugiará, desde 1930, para preparar e desencadear a revolução. Governa até antes da revolução de 9 de Julho, com as forças militares, sobretudo as da linha. Depois de 1935, se lança novamente nos braços, ou melhor, nos sabres e nas espadas delas, para tirar o seu período de governo; e, quando o quadriênio está por terminar, aparece com o figurino do Estado Novo, que será o Estado Forte. Desse, permanecerá prisioneiro até morrer, cativo da sua glória até o dia em que se abateu com as próprias mãos. Um chefe e o oceano popular para dentro dele mergulhar, tal o sonho violentamente sonhado, que o acalentou, e ao qual guardará fidelidade, a sua indefectível fidelidade, ainda no instante supremo. Morre vestido de uma “fantasia” de democrata liberal. A
intelligentsia de Vargas não compreendia aquela dégrisée, a qual não passava de uma ponta de lança psicológica, orientada no sentido da “sua” verdade histórica.

A história haverá de fazer a Vargas, que era um homem excepcional, esta escusa; que onde quer que ele surgiu, foi onde os democratas fizeram fracassar a estrutura da ordem democrática, foi onde os republicanos frustraram o regime, por atos de imprudência e de irreflexão. Sua aparição prodigiosa em 1930 fixa o desastre e a ruína da democracia liberal, instalada pela revolução positivista-militar de 1889. E o que se segue daí por diante, é uma série de eliminatórias dos partidos democráticos, pela inaptidão dos seus líderes para realizarem as instituições representativas. Em 1937, como em 1951, os democratas liberais se dividiram: dividiram-se para deixar passar o andor e o estandarte do político esperto, ágil, que vive da sucessão deles.

Uma tese que sustento acerca de Vargas é que ele, na ação política, para subir e sustentar-se, fez muito menos por si quanto os adversários obraram por ele. Viveu menos do que fez do que daquilo que fizeram os que supunham combatê-lo, enfrentando-o. Como o empurravam para a frente os desastres e os fracassos dos adversários! Que inimigos políticos úteis, perfeitos, não lhe arranjava o destino amigo! Como eram generosos e camaradas com ele os que, pensando que lhe faziam mal, o que logravam era ajudá-lo, era alargar-lhe a área da sua superfície de poder! Muitas vezes, pouco ou nada se mexia. Os adversários é que se movimentavam, a fim de lhe darem cartas e trunfos de espadas, paus e ouros!

Um inexorável homem de ação em todos os sentidos (mesmo quando fingia que estava quieto, ou que estava morto). Vargas gostava muito de se omitir para o lado teatral da vida, a fim de não dar a sensação de que ia servir-se dos meios diretos, ou para não chamar a atenção do adversário, no recurso àqueles indiretos, com os quais trabalhava igualmente.

Em 1937, depois do golpe do pequeno Brutus mineiro, recua para o fundo do cenário. Foi o episódio, como escrevi numa manchete do Diário da Noite, “uma cornada de boi manso”. Desiste, sem qualquer combatividade inteligível, de pensar em reacender o trabalho para o esforço de ficar. Certo dia um companheiro gaúcho vem lhe pedir ordens.

– “Fazermo-nos de mortos, é a ordem de serviço”, responde. Até 10 de novembro toda a sua atividade se passa no subterrâneo dos conspiradores e no porão das casernas, com os oficiais com quem colaborava os planos do golpe de Estado.

Vargas acertava sempre? Só teria errado à última hora, em 1945 e 1954?

Os erros de Vargas, os grandes erros que perpetrou no julgamento do Brasil resultavam disto: que ele era um homem de fé e, igualmente, de boa-fé; que ele tinha a fé infusa do místico, sem ser absolutamente um místico, e isto sendo um espírito de claridade meridiana. Ora, nada de substância mais metafísica do que a fé, sobretudo quando ela adere ao pensamento de um homem de combate, o qual recusa os dados da experiência das índoles positivas, para se lançar ao que a sua intuição o faz adivinhar. No fundo, porém, a sua tendência é para seguir, algumas vezes, os homens de fantasia, os que jogam com palavras abstratas sem maior conteúdo. E foi a fantasia, que o perderia em 1945 e 1954. Isolado, cercado por conselheiros de visão limitada, quase sem contato com o mundo exterior, faltaram-lhe os artistas com que sempre jogou, para dar as sortes inimitáveis dos seus velhos dias de triunfo.

Só o real é contraditório. Vargas era o real, e daí a sua resistência às sínteses, que não passam de construções lógicas. Nunca teve, nem o quis, programas, postulados ou doutrinas. Foi toda a vida um intérprete fluido da vida e dos acontecimentos, sem constantes nem dogmas. Evitava afirmar. Furtavase a apoiar. Lamentava até ter que falar. A sua linguagem era a do silêncio, criador dos enigmas, das esfinges, dos equívocos, das situações contraditórias, que tanto apreciava. Uma vez me afirmou: “Gosto de ti, quando as nossas teses coincidem, porque me adivinhas. Prefiro não dizer o que penso. Gosto que me interpretem.” Isto explica a independência de Vargas diante dos sistemas, dos grupos políticos, dos quadros coletivos; a sua incapacidade para neles se integrar, sobretudo se se tratava daqueles de política interna.

Vargas nunca quis se engajar em qualquer sistema internacional, a não ser, mesmo com restrições, o pan-americano. Ele entendia um casus belli consigo, com o Brasil nunca com outro País, que o obrigasse a bater-se, tomando conhecimento das linhas de força da estratégia do Atlântico. Quando os americanos nos ofereceram, no seu governo, 67 milhões de dólares de armamentos, a posse desse material o deixaria frio. Ele não queria passar por um governo militarmente marshallizado, e por isso conseguiu que o seu ministro da Guerra jogasse as cristas com o outro do Exterior. O lobo da estepe o inquietava menos que o urso vermelho do Norte.

O americano atormentava Vargas por ser ele o homem do dólar, e Vargas desprezava o dólar, que era a consciência materializada do americano, agindo no plano brasileiro, e ele tinha ciúmes desse plano, que era seu, exclusivamente seu, e que ele não o transferia, no todo ou em parte, a quem quer que fosse.

A alma contraditória e atormentada de Vargas se comprazia na quantidade das tendências que o dilaceravam intimamente, dando-lhe modos de pensar e de sentir complexos. Ele é, por exemplo, um gaúcho, um gaúcho tradicional, enquadrado perfeitamente nas suas fronteiras políticas e morais, e distante, como em muita gente do nosso interior, da maioria dos países atlânticos.

Agora, a outra face da medalha: este rude capitão da indústria das revoluções, este fabricante ou condensador de crises políticas, este perito em situações subversivas era um dos engenhos mais sutis e ágeis que conhecemos. Dentro dele havia o limite das duas naturezas que se chocavam: a do criador de etapas revolucionárias, em grande estilo, do chefe das duas jornadas de 1930 e 1937; e a finura e o espírito fugidios do florentino, que jogava com a lâmina abotoada, escondendo o jogo ao adversário, até a hora de desfechar o golpe definitivo. Nenhum outro homem exerceu no Brasil a arte da política com a destreza, os filtros, o estilo sulfuroso, os sortilégios e o êxito de Getúlio Vargas. Com que simplicidade ática não sabia ele agir e redigir!

Era o escritor em Vargas mais outro contraste com a agressividade da sua razão de Estado, da sua estrutura política, dos seus dogmas radicais, que agitava, para não vivê-los, muitas vezes, mas que não deixavam de ser dogmas, nas suas arengas de meneur de massas. Como eram medidos, claros, harmoniosos os seus dons de expressão! Via-se, desde logo, quando redigia (e eu o vi escrever algumas poucas vezes, faz trinta e tantos anos) que era uma índole de cultura, que o seu espírito literário se abeberava em mananciais ricos, em cabeceiras de um lirismo generoso. Tinha uma prosa castigada. Corrigia o que ditava ou o que redigia, mais de uma vez. De sangue ibérico, fugia entretanto a toda forma de gongorismo, de linguagem derramada. Era preciso, elegante, e, sobretudo, proporcionado. Seu estilo de escritor se apresentava o oposto daquele dos homens públicos gaúchos da sua geração. Era usurário de adjetivos. Sabia podar a crespa vegetação da nossa oratória. A despeito de ser caudilho de revoluções, seus manifestos eram vazados no metal de uma linha de compostura, que fazia como que o contrapeso do radicalismo, das idéias subversivas e do sanhudo revolucionário.

Diziam-no egoísta. Qual o chefe que não é condenado a ser egoísta, a dar-se pouco, muito pouco, aos companheiros, para jogar tudo na causa? Não há criatura menos livre diante dos que o seguem quanto o que comanda. Que custava a Getúlio Vargas estrangular o liberal Osvaldo Aranha em 1943, se este tagarela fulgurante lhe advogava a morte do Estado Novo todo dia, violando a censura do governo e o princípio de fidelidade ao chefe, o Fuhrerprinzip?

Como é belo o infanticídio que perpetra, em 1953, de cinco recém-nascidos do seu Ministério de 1951? Ele não tem outra saída senão marchar para o sacrifício desses filhos superados, que se aburguesaram demais para participar do novo Ministério, de medida social, que estava disposto a organizar. Como enquadrar os Srs. Horácio Láfer e Simões Filho dentro de um quadro ministerial de esquerda! As linhas burguesas eram em ambos a sua perdição inelutável.

Em 1930, quando quase dissolveu o Supremo Tribunal Federal, todo o mundo se pôs a indagar. Quem seria o autor secreto daquele golpe? Juarez Távora? Góis Monteiro? Ninguém. Ele, só ele, e mais ninguém. No Paraná, já anunciava as providências duras, que se dispunha a tomar, com relação à ordem de coisas existente, sem maior atenção por compromissos assumidos pelo Rio Grande, que se recusava a acatar.

Muita gente foi julgada responsável por atos de extremo rigor praticados por ele, no primeiro governo provisório. Entretanto, o autor dessas medidas era apenas Vargas.

Foi o último senhor de escravos deste País. Tinha uma Casa-Grande e um pátio, onde juntava os seus “pretos”, os pretos de estimação, da sua Irmandade do Rosário e os quais também não o dispensavam. Poderiam os pretos zangar-se com ele, mas ele nunca despediu, para sempre, um só deles. Góis Monteiro, Osvaldo Aranha, João Neves, Juraci Magalhães, Alexandre Marcondes, Benedito Valadares,Luzardo, Gustavo Capanema, e, por que me excluir? Eu também, todos fazíamos parte da sua família. Quando um se ia embora, amuado, batendo a porta, ele não desesperava da volta.

Não era possível a um “negro” dele viver longe do seu aconchego, por muito tempo. Ralava-se de saudades dos seus pretos e os pretos dele. O General Góis, o Sr. Osvaldo Aranha choravam, com os olhos enxutos, à Valadares, a saudade da sua companhia. Depois da revolução comunista, em 1936, uma tarde chamou-me. Falou do nosso confrade João Neves e de Batista Luzardo com uma tal ternura que eu senti que o que ele queria comigo era fazer a ponte que os deveria trazer à casa, onde os dois faziam falta. E ambos os filhos pródigos volveram.

Um dia, o Coronel McCormick, o famoso isolacionista dos lagos, interrogou- me em Nova Iorque: “Como é Vargas?” E eu lhe respondi: “Seu irmão; sua alma mais fraternal, neste hemisfério. Ignora ou finge que ignora como o senhor o Atlântico e o Pacífico. Anuncia, como o senhor do Chicago Tribune, o junker prussiano e o mujik eslavo. Seu fuso político será o do Paraguai, o do Equador, o da Argentina, o do México. O hemisfério para ele é o continente, o foyer do índio. Só entende, só quer entender da nossa política internacional, dois lados: a lacustre e a fluvial”. Não era o isolacionismo do coronel?

Mas, como esta criatura, em cuja alma passavam todas as forças elementares do gaúcho, do terrien gaúcho, sonha e age em termos de industrialização para o Brasil! Seu eixo paulista será o mais firme, o mais rijo, da sua natureza. Através desse eixo é que falava com os paulistas a linguagem da civilização da máquina a vapor bandeirante.

Não encontro aspecto da educação política de Vargas mais curioso do que este. Observe-se que ele jamais entra em crise com o homem da indústria de São Paulo. Pense-se que nunca tocou nem consentiu que se tocasse na substância das tarifas aduaneiras, que protegem o parque manufatureiro de São Paulo e do Rio. Mandou negar papel ao Diário de São Paulo, em 1941, somente porque ali se escreveu que o Conde Francisco Matarazzo comprara uma fábrica de rayon na Colômbia.

Que levava Vargas a tomar por São Paulo o interesse que ele não tinha igual por nenhuma outra unidade brasileira? Apenas a civilização da máquina. Na carta do progresso da Nação, São Paulo, a seu ver, tinha o primeiro lugar. É que ali se implantara a civilização da máquina a vapor, e ele reputava a máquina industrial o instrumento da nossa emancipação econômica, a trincheira dentro da qual iríamos pelejar contra os imperialismos do outro lado do mar.

Pelo ultranacionalismo político e econômico, que o devorava, Getúlio Vargas revestia esta singular capacidade de contato para tratar com os industriais de São Paulo. O fermento jacobino lhe dava pontes para entender a industrialização, muitas vezes à rebours do Brasil. Olhava no equipamento dos homens da manufatura paulista e carioca o instrumental desta terra, posto nas mãos de superbrasileiros, que era preciso proteger, para que eles exercessem a sua missão redentora.

O veneno do hipernacionalismo brasileiro traz dentro de si o fator da sua própria morte. Ainda não se capacitaram os nossos compatriotas de que a derrota do Japão, da Alemanha e da Itália nacionalistas, com o advento do plano Marshall, significa o fim do Nacionalismo hermético na era internacional em que vivemos, quando os ursos vermelhos da União Soviética saem das furnas orientais, onde viveram 38 anos, para ir visitar os Estados Unidos e ali aprender as lições de coisas edificantes da cultura ocidental.

Hoje, no quadro da atualidade, os maiores professores públicos da internacionalização das duas civilizações, Leste e Oeste, são os russos soviéticos. Brasileiros: sigamos os russos, e os bem vermelhinhos!

Vargas sentia pouco a Europa e menos os Estados Unidos. Pode-se considerar seu longo consulado um período de guerra fria, de especulações ora acadêmicas, ora doutrinárias, ora ideológicas, contra as potências que foram as nossas esplêndidas colonizadoras de braços, dinheiro e cultura. Ele jamais teria feito a guerra contra a Alemanha se não surgisse o acidente do Rio Real. Ele não será nunca um beligerante fora do Brasil, um contendor ao lado das grandes potências democráticas da Europa, da Ásia e do hemisfério, para tomar parte ao lado destas contra aquelas. A amplificação espacial da luta pelos submarinos alemães, no Atlântico, o levaria à força, à contenda, num conflito que não é seu, nem que julga seja do Brasil. Ao contrário, deseja ver minadas pela ação da guerra, reciprocamente, as forças dos países “imperialistas”, no conflito planetário, porque está seguro que desse choque só os neutros emergirão fortes. A querela entre os grandes, podendo sair dessa querela a sovietização do mundo, não o inquieta.

– A Rússia está longe – disse-me certa vez –, e os conquistadores brancos do Ocidente andam aqui dentro de casa, ou rondam lá fora, querendo entrar.

Permanece nas Nações Unidas, com mil e uma cautelas. Falei-lhe uma, duas, três vezes a respeito das bases aéreas e navais interamericanas. A sua reação era uma só. Não que repelisse os cubanos, os argentinos nem os colombianos aqui dentro. A suspeita, que o mordia, abrangia o irmão mais forte.

Em um mundo de solidariedade crescente e de interdependência cada vez maior – o que se revelou mais positivo no segundo conflito mundial – o Brasil delibera insistir em manter-se isolado, e isto à medida que o seu nível de vida se deteriora pela escassez de moedas fortes, o que quer dizer pela escassez de produção exportável. O Plano Marshall e seus satélites anteriores e posteriores permitiram à Europa reembolsar parte das dívidas de guerra, emprestar dinheiro aos seus domínios extra-europeus e neles investir outros recursos.

Campos Sales, Rodrigues Alves, Rio Branco, Afonso Pena, Rui Barbosa, Venceslau Braz colocaram o centro de gravidade política e moral do Brasil no nosso capital de relações com as duas metrópoles, das quais depende a sua segurança no Atlântico: Washington e Londres, ou seja o britsh sea power e o poder político e militar da América do Norte, a partir de 1917. Insular, servido de um ideal nacional egoístico, penetrado de um melindre de bugre da sua maloca, Vargas se dispunha a marchar para a civilização por conta própria, desprendido de qualquer bloco. Forçado, por circunstâncias alheias à sua vontade, solda a sorte do Brasil com a dos Estados Unidos e as Democracias do Ocidente. Mas vai para a guerra sombrio, desesperado, sabotando abertamente a participação do Brasil nela.

A amigos gaúchos com quem conversa, entre 1939 e 1942, repetira a frase de Nilo Peçanha: “Não tirarei um só filho aos braços da sua mãe, para lançá-lo aos azares de uma guerra que não é nossa”. E, em Petropólis, dandome a ler a pasta da correspondência com ele, do General Leitão de Carvalho, então Delegado do Brasil, no Comitê de Defesa do Continente, em Washington, declarou-me uma tarde:

“Separei para tu leres esta correspondência. É acerca da ‘tua’ guerra.” Frisou o possessivo. Mais de uma vez, aludiu em conversa comigo à “impertinência” da campanha dos “Associados” em favor da “beligerância ativa” do Brasil. Reagia contra os nossos rumos internacionais, por entender que eles contradiziam os interesses gerais específicos da Nação...

– “Tu queres generalizar a guerra; e eu estou decidido a limitá-la”. Recusava-se a admitir que a guerra, como choque armado, passasse no hemisfério, além dos Estados Unidos. Não tendo nela um papel essencial a desempenhar, melhor fora que nos disassociássemos do cenário da luta, no terreno da beligerância. Contemporizara com a ruptura diplomática, e nela desejou sempre ficar.

Aspirava ver a América Latina evoluindo na guerra dentro de uma atmosfera própria. Queria subtrair o Brasil ao ato da presença nos campos da luta, onde o seu espírito só alcançasse o desgaste dos velhos imperialismos europeus. Não o tentavam as atrações extracontinentais. E, quando lhe falávamos da unidade da bacia atlântica, não enxergava aí mais do que uma aventura, que era indispensável evitar. É que desfraldava, alto e petulante, a bandeira da independência nacional, como ele a entendia. Germes e seiva da nossa vida eram de outra substância. A tensão européia era outra coisa, na miragem de um universo, que se abstinha de identificar, como sendo nosso também.

Operando a anátomo-psicologia de Vargas, tenho a certeza de que ele gostaria de se ver tratado com o realismo com que me dispus a ferir os aspectos apenas de quatro ou cinco Vargas. O que não é nada no vergel opulento do milionário de personalidades que ele era.

Todo o problema para a pesquisa da selva de Vargas resulta do embaraço da escolha. Qual deles? Os Vargas não são um, dois, nem dez. São numerosos, ou, se quiserdes, numerossísimos. Eu poderia enumerar hoje aqui duzentos, quinhentos Getúlio Vargas, e a lista não estaria esgotada. Era-lhe grato fazer a figura do Malazarte, no meio dessa maioria morgânica de descontentes e de incontentáveis, que são as as tabas políticas brasileiras, onde o que predomina é o erotismo das paixões pessoais, na cupidez dos interesses particulares.

Um dia sustentei para o meu colega, Sr. Alexandre Marcondes Filho, que Vargas havia escrito a maior parte da história do Brasil pelo avesso. Ele detestava as linhas retas, os caminhos conhecidos, as estradas já palmilhadas. A sua atração andava pelo desconhecido, pelo imprevisto, pelo nebuloso. Era impiedoso consigo mesmo, antes de o ser com os outros. Esfalfava-se. Fazia o pioneirismo. O que quer dizer que era um desbravador, pagando o alto preço pelo qual o mateiro retribui a audácia da sua invasão sozinho na jungle. Uma sua especialidade era atingir os mesmos resultados que os outros, por caminhos oblíquos, diferentes, que eles haviam alcançado por estradas conheidas, que não lhe interessavam.

Tinha duas peças de fazer política, das quais não se separava: uma câmara de banhos turcos, e uma cadeira de barbeiro, na qual cortava cabeleiras de Sansões. Não admitia político importante apoquentando-lhe a vida, com o seu prestígio. Levava-o à cabina de banho turco para tirar-lhe peso. Tirou dezenas de quilos aos nossos confrades João Neves, Osvaldo Aranha e Macedo Soares. Não aparecia um Sansão que não lhe cortasse a cabeleira, risonho, inefável em sua cadeira de Fígaro.

Era o General Flores da Cunha a maior cabeleira de Sansão que ainda teve, com o Sr. Borges de Medeiros, o Rio Grande, neste meio século. Ele cortou a do primeiro em 1937, e a do segundo em 1932, com duas navalhadas. Em 1931 abateria urna instituição mais que secular do Rio Grande: os provisórios. Na batalha de Passo do Rosário lá estão eles. Passa-os a fio de espada, sem dar um tiro, em novembro de 1937. Ocupa o Rio Grande do Sul, naquele ano, para exterminar a maior força do nativismo político dos gaúchos, depois da Brigada Militar.

Outra das suas armas políticas prediletas era a apatia pela sorte dos amigos. O amigo é, em política, uma calamidade, ao lado de uma complicação dos mil demônios. Para manobrar seguro em política, é indispensável organizar entreveros de amigos e inimigos, o chefe extraindo os sucos de um desgaste, que de certos amigos é até bom, porque os torna mais habitáveis. Nada tão perigoso para um político do que os aliados fortes, os amigos bem nutridos, independentes. O seu método consistia, pois, em não ter quem quer que fosse poderoso nos seus arraiais. E tampouco dedicar-se a ninguém. Era a dedicação para ele uma arma de piegas, de sentimentais. A amizade na política dá para liquidar um chefe.

O amigo era para Vargas o aspargo chupado. Seu apetite, ao que se dispunha sempre, era mascar novos aspargos, aspargos verdes, o que quer dizer entrar pela seara dos inimigos para seduzi-los e trazê-los ao seu bivaque, como botins de guerra. Na vida o interessava a caça e a caça se faz é ao bicho selvagem, que corre do homem, logo ao inimigo. O inimigo, que passa a ser amigo, cessa de ser útil. Capitulou. Não haverá mais interesse em cultivá-lo. Acabou a caçada. Está finda a partida esportiva, O que é preciso é ir buscar novos inimigos para massacrá-los com o nosso amor, a nossa piedade e o nosso interesse provisório por eles.

Uma tarde, em São Paulo, Vargas, passando com o Sr. Cândido Motta Filho pela Rua 25 de Março, vê este letreiro na porta de um alfaiate:

– Viram-se roupas pelo avesso.

Para um minuto, e depois explica ao companheiro.

– Motta, é o que venho fazendo há 24 anos com a História do Brasil.

Com efeito, era uma das suas satisfações virar pelo avesso a História do País e o destino dos amigos.

Quereis um exemplo típico de como Vargas escrevia, de fato, a sua e a nossa história pelo avesso? Em 1950, encetamos nos “Associados” jornais, rádios, televisão e revistas, a campanha pela ressurreição do seu prestígio. De acordo com ele. Através de entendimentos com Salgado Filho, o nosso objetivo consistia em transformá-lo no grande eleitor da jornada da sucessão. Ele mesmome fazia saber, por Salgado Filho e outras fontes, que resistia a toda idéia de candidatar-se. Mas o público ignorava esse aspecto da nossa campanha de fortalecimento da legenda getuliana.

Era natural que viesse pedir para ajudá-lo o Senador Kerginaldo Cavalcanti, nacionalista como ele e campeão das suas idéias de crescimento vegetativo do Brasil. Mas não foi isso o que aconteceu. Recebi vários pedidos para lhe dar publicidade gratuita, e esses pedidos eram de um espanhol, incessantemente perturbado por Vargas, nos seus negócios, e mais de um americano e dois israelitas. Pensemos nos sortilégios que Vargas não teria feito para obter que essas quatro vítimas suassem por ele, a fim de revê-lo na presidência. O que em seu Estado Novo não se prepetrou para impedir que os israelitas tivessem acesso em nosso território!

Tive com Vargas uma vida, a qual durou pouco mais de três décadas. Juntos fundamos, em 1927, a revista O Cruzeiro. Ele levantou metade do capital, no Rio Grande do Sul, por intermédio de um amigo comum, o Coronel Mostardeiro Filho. Eu lhe havia pedido uma subscrição até duzentos e cinqüenta contos de ações, e ele formulou o pedido ao Coronel Mostardeiro para quinhentos.

Alarmou-se o presidente do “Banco da Província do Rio Grande do Sul” com o tamanho da cifra. Efetivamente, era ela despropositada para um Estado agropecuário, como o Rio Grande. Perguntou-me Mostardeiro se eu podia fazer, à turca, o negócio pela metade. Nesse ínterim, no escritório de Mostardeiro, chamavam-me do Ministrio da Fazenda. Era Vargas que me convocava à noite em sua residência. Antes que ele falasse, eu lhe disse: “Ministro, eu só lhe havia solicitado a colocação, em Porto Alegre, de duzentos e cinqüenta contos de ações. O senhor excedeu-se. Presidente, Mostardeiro está inquieto com o astronômico, da cifra, e propõe justo o que eu havia iniaginado como primeira tranche da subscrição gaúcha.

– “Seu bobo” – atalhou Vargas, “ao banqueiro a gente pede sempre o duplo do que precisa, para ele ficar na medida do que necessitamos.”

Como vêem, há 27 anos Vargas já se exercitava triunfalmente no golpe. E por causa de um empreendimento dos “Diários Associados!”

Nossa vida sentimental, se não foi, à Machado de Assis, “um dramalhão cosido a facadas”, resultou sempre numa comédia trabalhada a canivetadas.

Vargas tinha a volúpia de enganar, e daí as pequenas misérias conjugais da nossa longa existência em comum. Teve sempre restrições à nossa expansão. O que pôde fez, para deter o crescimento da nossa organização. Não queria dividir o poder que detinha, com aliados, e sobretudo nós. Sua medida era com um para o uso contra todos.

Não pensem que escapei incólume aos copiosos banhos turcos em que cozinhava os companheiros do Rio Grande.

Eu ia para a cabine, onde ferviam os vapores da água em ebulição, tal qual Lindolfo Color, Osvaldo Aranha, João Neves, Flores da Cunha, debatendo- me desesperado, para que a vizinhança soubesse que Vargas violentava o coração do amigo e lhe queimava o corpo e lhe derretia os untos.

Engana-se quem pensar que Getúlio Vargas, com a natureza inquieta que o consumia por dentro, fosse um indolente, um abúlico ou um caçador de posições tranqüilas na vida. O que não representava virar a história de um País pelo avesso! O trabalho a que não se entregava o político e homem de governo que a uma tal interpretação da vida pública se dedicava!

Getúlio Vargas não era a natureza da calma, da paz, da tranqüilidade, como aparentava sua doce fisionomia. Por dentro, esta é que é a verdade, o caldeiro lhe fervia. Nasceu espadachim, viveu polemista e morreu com o sentido gratuito, desinteressado e trágico da vida, que deverá ter um bom cristão. O seu gosto épico do combate se repete nos duelos que, desde 1926, trava com o seu chefe, com o seu partido, procurando, cada dia, cada vez mais ganhar a independência no seio dele. Faz figura de um profeta do Velho Testamento, de um Elias, anunciando, em horas decisivas, as desgraças e as calamidades que estão sucedendo à sua gente.

Uma tarde, saindo do Senado, eu lhe disse em Petrópolis, onde fui vê-lo:

– O senhor, Presidente, é um autêntico cristão brasileiro. A religião não tem crente mais perfeito. Entre o senhor e Cristo existe uma tocante fraternidade.

– Tu estás nietzschiano hoje –, retrucou com vivacidade. – Porque sou pelos humildes, pelos sofredores, pelos fracos, tu me identificas à Nietzsche, com o Cristianismo.

Retruquei-lhe:

– Com efeito, estou à von Ihering, com o senhor de escravos romano, que, dando cem vergastadas no cativo, será maior para o romanista alemão que o mais sábio doutor da lei. O Cristianismo tanto é a religião dos deserdados e dos vencidos, que o senhor não sai da órbita dele nem deles. Convoco-o a vir trabalhar conosco, e se convencerá como um Titã da sua força, com as suas virtudes viris, adotando a disciplina dos fortes; fará mais pelos fracos do que perfilhando, vis-à-vis deles, uma moral de tímido, com as razões de viver do escravo.

O historiador do futuro terá de reconhecer que os dois esportes favoritos de Getúlio Vargas eram as conspirações e as revoluções. Nasceu e viveu para elaborá-las, e, quando elas não vinham espontâneas, faziam-se de rogadas, provocava-as, por ação ou omissão.

Ouça-me a ilustre Companhia.

Em 1927 toma conta do governo do Rio Grande. Quem o elegeu? O Sr. Borges de Medeiros com o Partido Republicano. Era dos usos do partido elaborar o secretariado em cooperação com o chefe. Pois no dia da sua posse, às 11 horas da manhã, faz seguir a lista do seu secretariado ao chefe do Partido – a mesma lista que a “Federação” publicará às 2 horas da tarde. Foi esse o maior desafio que alguém até então mandara para uma revolta imediata, dentro do Partido Republicano do Rio Grande, onde todo o poder era atribuído ao Sr. Borges de Medeiros.

Que é o temperamento brasileiro? O das naturezas mais acomodatícias, que menos reagem, por demais falhas de combatividade.

Vargas é, a todos os respeitos, o antiBrasil, o antibrasileiro, como lidador de cem batalhas que ele é. Nós somos uma gente de personalidade essencialmente pacata, um povo que suporta tudo, que engole tudo, a massa mais resignada para padecer, sem o apelo a recursos extremos.

Antenticamente caudilho, gloriosamente outlaw, fabricante ele mesmo de constituições para desbordar uma espevitada legalidade constitucional, quando em sua consciência ou em sua vontade entendia resgatar os brasileiros de grilhões que os oprimiam, será dentro da perspectiva do “fora-da-lei” que podemos melhor compreender a psicologia de Vargas. Seu desdém pelas constituições, elaboradas pelos mandatários do povo, era olímpico. E quando sucedia encontrá-los em seu caminho, só o mordia um apetite: o de violá-las. Era um fauno todo o dia disposto a comer um prato de legalidade, cozido pelos outros.

Em 1929, no último dia do ano, João Pessoa, recém-chegado da Paraíba, telefonou pedindo-me encontro em nossa casa aqui no Rio.

– Tenho a minha cheia de gente –, dizia. – Prefiro que todos saiam para ir ter à sua, lá para as 10h30 da noite.

Ele me conhecia os hábitos. Lá foi ter, à Avenida Atlântica 574, para fazer esta confidência:

– Estou atônito. De todos os lados me chegam notícias contando a deserção de Getúlio Vargas da nossa causa.

– Mas ele, o que lhe diz, goverrnador? – indaguei.

– Sobre a resistência a fazer ao poder federal, diante da derrubada de funcionários em nosso Estado, me disse isto: “Por que não te armas?”

Este conselho mostra que, em dezembro de 1929, Vargas já cuidava de sair da legalidade, e caminhar para um plano que era, no campo dos prélios cívicos, favorito no seu Estado. Com quem em 1922 estava o governo do Rio Grande, senão com os propósitos subversivos da Reação Republicana? Se mudou, foi depois da derrota eleitoral de Nilo Peçanha. Logo ele seguirá uma tradição do seu partido, mas também uma tendência sua, contrafingindo que não queria ser para a subversão da ordem.

Nenhum político abriu, neste século, mais frentes de luta, de luta para pelejar ele mesmo, em pessoa, contra quem quer que fosse, Presidente da República e do Rio Grande, Exército, Marinha e Aeronáutica, quanto Vargas. O combate (por mais estranho que pareça aos que o conheciam pouco) era a sua ginástica sueca de todos os dias. E, particularinente a luta com os companheiros, com o seu clã, com os que o acompanhavam.

Nos primeiros dias de julho de 1932, o General Góis Monteiro procura-o aqui no. Rio, e lhe diz:

– Presidente, os paulistas já elaboraram o dispositivo militar da revolução. E nós temos um caminho para evitá-la. Ocupando com gente nossa a Serra do Mar, e alguns troncos ferroviários em torno da capital, o movimento estará abortado.

Vargas não tomou uma só das providências indicadas pelo General Góis para fazer abortar a intentona. Deixou-a vir de alma leda. Ele a queria, para fortalecer a sua autoridade de primeiro cônsul.

Em 1945, convocou-me, ao regressar da Argentina, para dar uma entrevista destinada a La Nación, onde eu colaborara, outrora. Escrevi a entrevista e fui levá-la para que aprovasse a sua redação. Aproveitou o ensejo para me inquirir da situação política. Eu lhe disse que a reputava delicada.

– Não é outra a opinião dos Srs. José Américo e Pedro Ernesto. Ambos estão impressionados com a infiltração do vírus comunista nas classes armadas.

Terminei por lhe fazer esta grave confissão: “que o prefeito Pedro Ernesto dissera-me que achava o governo Vargas perdido, sendo a única hipótese de salvação convidar o chefe comunista para ser o Ministro da Defesa Nacional, com a fusão das duas pastas militares”.

Vargas ouviu-me com o rosto sombrio, passeando no Catete, diante da cadeira em que me sentava. Pedi-lhe que mandasse chamar o nosso comum amigo Pedro Ernesto, a fim de o salvar de um perigoso contato pessoal com os conspiradores.

Dez dias depois fui ver Pedro Ernesto. Ele me disse que desde o meu encontro com Vargas não se avistara com o presidente.

Em 1945, convocou-me, por intermédio do Sr. Andrade Queirós, ao Rio Negro. Estava decidido intimamente a ser candidato. E disse-me veemente:

– Resolvi candidatar-me porque soube, de fonte segura, que Osvaldo Aranha e Juraci Magalhães resolveram vetar o meu nome. Não lhes reconheço autoridade para isso.

Engajou-se na batalha até o dia 24 de outubro. Mandei um dos seus mais íntimos amigos, seu e meu, sondá-lo acerca dos planos que tinha para o futuro. Ele voltou cabisbaixo, dizendo-me: “Sinto que Vargas o que deseja, de preferência, é uma revolução. E está candidato contra os dois civis que já ocupam a arena.” E, realmente, tudo tentou em 1945 para continuar. Esse era o détour da Assembléia constituinte, primeiro?

Não restava dúvida que Vargas era mesmo do barulho, coisa que não é do brasileiro, salvo quando se tem o exército para ir na frente. Mas isto é outra história, e coisa que fia mais fino.

Assim como o nacional-socialismo nunca teve uma Constituição, Vargas, que o precede no poder, não tem maior apego por esse gênero de literatura. Seu raciocínio deveria ser este.

As constituições são organismos que se cristalizam, códigos que o tempo supera, sobretudo nos dias vertiginosos que atravessamos, com o poder destas transformações violentas que lhes oferecem a Ciência e a técnica. A obra-prima da arte política (para a escola de Vargas) consiste em não elaborar constituições, em não consentir que, feitas, possam vir a ser executadas, anos e anos, para decantação dos princípios que o caudal do progresso, que só povos, que têm o horse sense, como os ingleses e suíços, por exemplo, sofrerão a sua influência. Vargas reivindica uma alta dose de liberdade para tratar o direito público como uma matéria fluida.

Como um Deus criando leis próprias, Vargas fabrica, ele mesmo, igualmente, as suas. Não acredita nelas, até porque sua inventiva criadora, no curso da vida, será mais útil ao povo que as constituições paradas no tempo. Mas ele faz ou manda fazer constituições para atender apenas à superstição de legalidade das elites. Nada mais.

Embutido numa moldura constitucional, o gênio renovador de Vargas dir-se-ia implacavelmente diminuído. Ou, se quiserem, estagnado. Seu ágil talento plástico e dúctil, desabituado da camisa de força da legalidade, porque singularmente aberto às especulações da metafísica política e da filosofia do Estado, se viu sacrificado nas suas forças de espontaneidade e de inconsciente! Excitado incessantemente pela vida, com ela dançando em quermesses, em orgias de liberdade de pensamento, Vargas, posto dentro de um figurino constitucional, foi como se o esmagasse um fardo insuportável.

“Eu não queria voltar ao Catete”, disse-me em janeiro de 1951, depois de eleito.

Uma tal sabedoria e uma tal sinceridade revelavam a infinita sensibilidade deste homem para entender o seu verdadeiro papel na formação brasileira. A fonte original das suas normas do governo e da justiça, das suas regras do bem e do mal, não devia ser a lei manufaturada por outrem, mas a sua filosofia, o seu mesmo julgamento prático, em função do que ele havia sentido e sofrido pelo povo e suas necessidades.

É ponto de importância capital no estudo do perfil de Vargas, a gente capacitar-se de que ele não reduzia a vida a termos de bom senso – padrão vulgar e infecundo de viver – mas de imaginação, de aventura e de fantasia. Era uma expressão mágica para si a palavra liberdade. Entretanto, a liberdade que ele entendia era um elemento individual, que lhe cumpria utilizar para resolver as questões do governo com os critérios próprios do seu gênio público acaudilhado. Resvalar na legalidade hirta e seca dos códigos escritos era para este demiurgo cair no fictício da rotina e no factício dos atalhos da perdição.

Getúlio Vargas tinha um padrão de existência política fundado em bases opostas àquelas com as quais vinha governar. Ele havia perdido o sentido da democracia de representação popular. Fazia-a pagar caro, caríssimo, a sua esdrúxula esperança liberal.

É um capítulo a estudar, a meditar e a desenvolver o trágico do isolamento de Vargas dentro das fronteiras do Estado liberal de 1946. Mexe-se num mundo exótico e fala a surdos. Ele será um espectro solitário no meio do niilismo que se estabelece entre a sua vontade forte e os pelotões políticos, diante dos quais só tem um desejo: diluí-los, para patentar a desassociação que os divide.

A máscara do liberal, posta em 1950 por Vargas, faz da fera esplêndida de 1937 uma caricatura de jaguar. Ninguém mais do que ele sente a humilhação do grande felino no meio dos destroços da floresta magnífica que plantara para nela viver. Aquele Eu viril que ele exibia outrora, no alto de uma filosofia, cheia de virtualidades metafísicas, ressoava como um som ininteligível aos ouvidos mesmo das massas.

Eu não sei de página em que se resuma a vaidade das vaidades na sua mais dramática experiência do que a aventura de Vargas em 1950. Confrontem- se os dois termos da relação Vargas e o Brasil e as essências douradas do passado já terão desaparecido. Ele se vem instalar num meio onde falta uma das peças do seu binômio. O povo, que o renegara um instante, volta a se reconciliar com ele. Mas o povo não se constitui só da massa e a própria massa, com a vida que sobe todo o dia, como também o larga desamparado! É certo que elites intelectuais, políticos, gerarcas da nova ordem liberal virão cercá-lo. Mas cercar não é coabitar, não é conviver, secretando-lhe interesse pela sua obra. Tanto que já em 1953 e 1954 lhe sentimos a sensação da frustração...

Nesta segunda presidência Vargas vive mais solitário do que nunca. Ele dera, contra a vontade, um rendez-vous ao Brasil e via que o Brasil não aparecia. O silêncio cósmico lhe surgia no caminho do seu apelo. Era a falência da grande aventura. Transposto o período da lua-de-mel da presidência, vemos estampada na face de Vargas a expressão do atormentado. Acaba o velho, no Catete, jantando sozinho, dentro do próprio quarto. Isola-se no próprio seio da família e dos amigos. É recíproco o desapontamento: o País e ele não se entenderam. E o que havia de amargo e desolador para Vargas é que ele tinha a consciência da desilusão que levara ao povo uma administração que não podia conter a inflação nem o alto custo da vida.

Francisco Campos pode-se dizer que envenenou para todo o sempre a alma e o sentimento de Vargas, fantasiando, para uso exclusivo da sua pessoa, o mais poderoso poder estatal que ainda viu um brasileiro, neste País, desde a sua independência. Primeiro o constitucionalista do Estado Novo, com o ceticismo anárquico que lhe caracteriza a formação do espírito convenceu Vargas de que, nos Estados Unidos, não passa de uma ficção a afirmativa de que o presidente esteja impedido de legislar. Sim, ele pode legislar, e quem o diz é James Hart. A legislação delegada vem de Washington a Coolidge, o último presidente que abrange o livro de Hart. O Congresso tem a ver com os lineamentos gerais e os princípios. A técnica legislativa cabe ao Executivo.

Outro postulado alarmante da ideologia “campista” consiste na descapitalização da Suprema Corte como intérprete final da Constituição. Golpeou, de frente, o filósofo do Estado Novo a supremacia do Poder Judiciário, na parte ativa e dinâmica que lhe cabe, em face do processo evolutivo das instituições democráticas. Criou, para uso do Chefe Nacional, o Sr. Francisco Campos, uma tese temerária: a de que ao controle do Judiciário deveria escapar o exame da Constituição. Assim, destruindo os partidos políticos, tomando ao Legislativo a faculdade de legislar, e ao Judiciário o direito de interpretar a lei – que restava das instituições democráticas, no quadro do Estado Novo, representado por um Executivo escolhido pela vontade unilateral dos chefes militares, que estavam ocasionalmente no poder quando ele foi proclamado?

Caducado o Estado liberal das duas constituições, a de 1891 e a de 1934, o que se projetava no horizonte político da Nação era o Estado Novo, dominado pela personalidade do condutor do Executivo. O Estado Novo, assegura em 1939 à imprensa o Ministro da Justiça de Vargas, é o Presidente. Não será preciso acrescentar nada, mais nada para definir o imperium da vontade inconfundível de um homem, como expressão destas duas entidades: o regime político e a soberania nacional. Fixando o estilo da nova ordem de coisas decretada pelas Classes Armadas, rufava nos tambores da tropa de linha o Sr. Campos: “Um Estado como este não pode ser uma abstração jurídica. Há de ser um homem, uma pessoa viva, inteligência, vontade, sentimento – faculdades da pessoa humana, e não de fórmulas algébricas ou de abstrações jurídicas. O Estado popular é o Estado que se torna visível e sensível no seu chefe, etc.”

À medida que os anos se passavam, mais Vargas se capacitava de que o regime que lhe servia era o da Constituição por ele outorgada, como ordem, poder e segurança do Estado. “Nada de plebiscito”, disse uma vez o Sr. Campos. Mas, embora não plebiscitado, ele era um fato, e esse fato seria o clima no qual Vargas passaria a viver, dentro ou fora do poder. Com uma atmosfera de supressão dos direitos individuais, seria possível, tal qual aconteceu entre 1937 e 1945, a passeata de um chefe nacional, transferida a sua ação para o campo da turbulência agressiva da investida dos supostos depositários da vontade popular, da validade das forças de propaganda do tipo de um governo autoritário, sem contraste, que a constituição outorgada proclamara.

Ora, Vargas, demitido em 1945 das funções de ditador, regressa em 1951 investido das funções de presidente constitucional. Existe um desencontro completo entre ele e o mecanismo com o qual irá novamente viver. Como poderia caber o antigo tirano dentro das instituições recodicionadas, com o Legislativo e o Judiciário como peças suscetíveis de congelar noventa por cento das atribuições de que ele vivia? Seu Estado Novo campista deixara de existir havia seis anos. Voltava o País a viver com sua Constituição vazada nos moldes do velho edifício do liberalismo, demolido pelo ditador em 1937. Mais Vargas vivia, a partir de 1951, mais se acentuava o seu divórcio, o divórcio da sua personalidade com o regime, no qual o País depositara as suas novas esperanças.

Se há um governo e um homem frustrados são o quadriênio de Vargas, de 1951 a 1954, e aquele que o encarnava. Quando ele volta, os partidos já haviam tomado conta da maior parte da opinião pública. Para se eleger carece do apoio de um seu encarniçado inimigo. E, mesmo assim, a votação que alcança é inexpressiva, no cômputo dos sufrágios da totalidade do eleitorado. Por fora dá mostras de grande fortaleza de ânimo. Mas, por dentro, Vargas vive indomável como um sombrio. Fala freqüentemente em passar o governo ao seu substituto legal, de tal modo é a desconfiança que reina entre a sua ação e o vozerio da turbamulta, que o atropela nas ruas e no parlamento.

Vargas aparece para despedaçar toda uma escala de valores políticos e sociais. Assume, abertamente, a árdua responsabilidade da luta contra a sociedade brasileira ainda em condições de virgindade mental, ou seja, compromissada com o pudor liberal. E a sua danação, a qual começa a revelar-se em 1931, em 1937 atingirá o apogeu. Surgirá, naquela época, ao lado do satânico Francisco Campos e de alguns inocentes úteis das Classes Armadas como “o disponível” gidiano. “Era” o Getúlio Vargas que ele queria ser. Faz arder o fogo demoníaco em sua plenitude, fiel a si mesmo. Com vários caminhos trancados, pela própria mão, para a liberdade, para os direitos do homem, ele me dirá, em março de 1938: – “Eu não queria continuar no governo por mais o ano de mandato que alguns me queriam conceder, com a Carta de 34; mas fico com esta outra.”

E cerrou o punho, possuído da mesma dose de virilidade com que praticava o ato de repúdio aos dogmas constitucionais, discutidos e votados pelos representantes da soberania do povo, escolhidos nos comícios.

Na solidão de Itu, na inquieta intimidade de si mesmo, em lugar de diminuir-lhe aumenta a danação do compromisso antiliberal. Entregue ali a si próprio, a tensão de insubmissão do rebelado contra a liberal-democracia lhe avoluma o problema da consciência. No frígido silêncio da “querência”, o seu antiliberalismo, ao invés de agonizar, se retempera. Mostra dez, vinte vezes a Salgado Filho a impossibilidade de uma constância conjugal com a nova carta, de 1946, a que anularia a sua. No espírito de não aceitação se varam as suas horas de angústia. Posto frente a frente da Democracia reconstituída, a crise de consciência irá até ao desespero. Sente-se possuído de uma Razão de Estado, que não cederá a ninguém, e essa Razão resulta da outra Razão, na qual confia cegamente. Será uma figura varonil da era pós-Hegel. No seu exílio da fronteira meridional, o outro, cá de fora, o reputará um condenado, que não tem o senso da culpa que sobre ele pesa, em sua queda no pecado original, o autoritarismo. Ele lá dentro considera os outros perdidos por não sentirem o avanço que faz a doutrina do patriarcado político, do homem providencial, na terceira e na quarta década do século.

Egresso de Itu, em 1951, Vargas arcaria com a posse incompleta da Nação brasileira. Ele fizera o seu ato de entrega, a entrega da sua pessoa àquela que tanto amava. Mas ela não se lhe dava com aquela confiança que esperava da ternura, do amor que ele lhe dispensava. À beira dos setenta anos, Vargas se engajara como nunca à Nação, e o seu espanto, o seu espanto aristotélico era constatar, após as primeiras experiências, que dos dois, o que mais amava era ele. E daí a descompensação entre sentimentos que não se completavam. O apóstolo não encontrava os catecúmenos que esperava rever. Quase todos haviam recaído no paganismo, ou fosse na adoração do Moloch liberal. Ele evangelizava, devorado da fé de servir para ver que a sua doutrina morria sem eco, caía no vazio, e ele permanecia numa triste ociosidade, numa estéril solidão.

A vida revestia para Vargas algo da solenidade que lhe emprestam certos filósofos germânicos. Como vontade e vida nele se confundiam (pois a vontade é substância da própria vida), gostava de se deter, sempre, insatisfeito, à beira do rio da vida, para deixar que ele corresse, na sua marcha incessante, no seu impulso eterno. O que queria era concentrar uma maior soma de elementos, um conjunto mais robusto de condições para o êxito dos golpes que preparava. Este aventureiro vocacional, por uma estranha contradição, demorava o que fazia para eliminar o mais possível, nas cartadas que dava, a hipótese do risco. Desgastava a têmpera dos companheiros. Esgotava a paciência e os cálculos de todos, que o acompanhavam, porque a sua natureza se requintava num êxtase voluptuoso em esperar, visto como esperar significava para ele enriquecer tanto o seu ser interior e as forças ambientes que o ajudavam, como o seu naipe de mais trunfos que reduzissem as oposições inevitáveis e os riscos fatais.

Getúlio Vargas, conquanto a sua nota tônica fosse um nacionalismo, às vezes cru, de um brasileiro noventa por cento, a raça, o meio, a sociedade dentro do esquema tainiano bem pouco o explicariam. Seus signos, as suas “viradas”, os seus gostos, as suas expressões nada de um primitivo são para desesperar, quando nos lembramos que, fazendo questão de ser povo, e logrando até aí nivelar-se, através do cálculo, da astúcia e da mistificação da inteligência, o que ele resultava, ao cabo de mil manobras e desenvolturas da natureza mais complexa que ainda vi, era viver de acordo com as concepções da vida de um aristocrata do espírito.

Tomado a distância, no meio das palhaçadas do circo das consciências, armado para comemorações de dias e fatos revolucionários, Vargas parece um Caliban lúbrico, a se mover no seio da massa, num total eclipse das perenes faculdades do seu raciocínio arguto, sutil e raro.

Tirássemos, porém, o monstro estranho de dentro da multidão e o puséssemos no seu gabinete, a arranjar as idéias, as caras idéias, que tanto amava, a fazer as concessões que habitualmente fazia à imaginação, a operar com a fantasia, que era uma das suas mais enternecidas deusas protetoras e fonte das abstrações que criava – dos planos políticos que traçava e racionalmente aplicava, por forma tão pessoal – e Ariel, o mágico fascinante, se apresentará dentro das suas eternas nebulosas, da sua vida interior, do seus monólogos, dos seus diálogos com a própria consciência, dúbio, impreciso, doce, consolador, umas vezes quase casto, outras quase moral, indulgente com os fracos, os desarmados, o coração delicado, o gume intelectual acerado, vivendo coroado de estrelas e de rosas, entre les beaux esprits, que eram seus irmãos.

Por que Vargas, que fazia questão de ser povo, de ser turba, de ser tribuno da plebe, marcha para a Academia sem receio de que as massas, vendo-o no mundo elegante, sociável das Letras, duvidassem da sinceridade do líder que as trocava por outro meio embalsamado de Arte, de Poesia e de bom-tom?

Era que a companhia de Ariel traduzia uma necessidade que havia dentro dele da criatura que viveu anos, no seu retiro de São Borja pelo pensamento e para o pensamento; do provinciano que jamais deixou de conviver com Platão, Aristóleles, a metafísica e outros oráculos das suas horas de meditação e de solidão.

Ele disse-me, um dia, logo que chegou do Sul, em 1924:
– Tomo de Comte a filosofia e deixo a religião que é a caricatura do
Positivismo.

Aí tendes o Vargas cético, o Vargas rico de renúncias teológicas, o Vargas órfão da capacidade de crer.

Faltou-lhe sempre ao espírito cético, ao adorável cinismo intelectual que sabia carregar com tanto charme e tanta naturalidade uma onça de misticismo revolucionário. Se mística lembra sobrenatural, Vargas voluntariamente se exclui desse terreno. Não era uma natureza de religião, de confraria e tampouco de santuário. Só adorava uma coisa: a sua imensa liberdade de espírito, para fazer o que quisesse, como quisesse e quando quisesse. Isto, é claro, na dependência de “outro” tirano com quem o bivalente reclama o poder.

Se pretendeis que vos ofereça um traço vivo da penúria do misticismo em Vargas, eu os darei um exemplo, que é transcendental: Ele faz o Estado Novo e vai caçar, não com uma matilha de jovens, nem uma legião de fanáticos autoritários, de ideólogos das idéias do Estado Forte ou de idéias nacionalistas, mas com velhos perdigueiros do regime derrubado em 1930, com os sovados políticos liberais, sem sombra de fé pelo regime que adotarão para viver!

Dando cá fora a sensação de crente, havia, contudo, uma visível incompatibilidade entre vargas e o mito – o mito, que é uma das peças fundamentais da glória do personagem carismático. No fundo da formação espiritual deste homem havia o Positivismo. Ao contrário do espírito da abstração, ele era criatura do fato, e do que da observação do fato se poderá provar. As religiões não entravam no seu sistema espiritual. Tolerava-as, como concessões à imaginação humana e, até se quiserem com elas convivia, não lhes sendo por nada hostil.

Ora, haverá maior absenteísta do misticismo do que o positivista? Ele prefere arrumar de outra forma as suas idéias, os seus compromissos com o “gorila feroz e lúbrico” de Taine.

Há que ver a paisagem do Estado Novo que o Sr. Campos fez tudo para chamar de Estado Nacional, mas nada obteve. Está, de saída, o ministro dele eliminado. Devia-se fazer a legião ou o partido para decifrar o Homem. Havia que elaborar a mística do Estado. Vargas suprimiu isso tudo, entregando-se ao povo com um misto de simplicidade e de humildade, em contraste com a linha dos chefes, no Fascismo e no Nazismo.

Vargas era muitas vezes aquele egoísta amável de Benda, o cético das suas íntimas divagações intelectuais.

Sustento a existência de alguma dose de metafísica em Vargas, pelo estuário que ele era, onde se davam rendez-vous o diabo e o Senhor. Vida e natureza, filosofia e rotina constituem o perpétuo diálogo da sua consciência. Não podia ter pontes para nenhuma ideologia, para qualquer doutrina onde ancorasse o espírito, aquele que amava viver no clima de um universo nu e deserto. E, invariavelmente, sem dogmas. Era uma criatura que não se julgava ofendida por nada, porque em sua introdução à vida do pensamento, Vargas aprendeu a não se deixar excitar por coisa alguma. Os inimigos o julgavam rancunier e vingativo. Que santa ilusão! Para que fosse odiento era preciso que acreditasse, que fosse beijado por uma paixão, que fosse encantado por uma alegoria, que, batido por uma tempestade, reagisse.

Qual a sua inquietação? Qual o seu patético? Qual a página do seu romantismo nietzschiano? Qual o momento em que se entregou a alguém? Desertor contumaz do ser moral, ancoraria no Estado Novo por ser este um porto seguro para o seu duro espírito de caudilho. E o Estado Novo, para ele, não era uma doutrina, mas um fato. Um fato, sim, e só.

A vida de Getúlio Vargas com a comunidade, desde que ele veio para o poder, tinha coisas de místico sem, entretanto, de modo algum, ele lograr sêlo. O seu espírito errava pela periferia deste imenso todo, com o qual procurava viver em unidade de sentimento, a tentar pôr ordem onde existe o caos. Gemeinschaft, Führer, Stimmung, como ele tinha o sentido destas expressões, que acordam a idéia de massas da matéria-prima do chefe, na riqueza e na variedade das suas faculdades! Quando, em 1937, adquiri meia dúzia de livros alemães, acerca do novo Direito Público do Estado Nacional-Socialista e entrei, com certa malícia, a interpretar o Estado Novo, o General Góis mandou- me dizer: “Se eu estivesse no poder mandava-o para Fernando de Noronha.” Mas a filiação de Vargas com o dionisíaco da minha interpretação era maior que a do seu colaborador militar. Consentiu que eu ficasse no Rio e insistisse em interpretar o regime.

Para julgar (é da essência da lógica) é indispensável ter medida. O julgamento humano de Vargas será sempre diferente, porque, se ele é a medida, será muito mais o desmedido, o excepcional, o passionário, fora do espaço de qualquer método, do quadro de qualquer disciplina. Fugia a freios e a preconceitos. As suas atitudes, as suas reações diante das coisas temporais não eram morais nem imorais, nada tinham com o bem ou o mal, eram getulianas. Da regra do seu jogo de florentino fazia parte a autonomia do movimento. Não entrava na chave das suas manobras, nas manobras ágeis de expertise que traçava e executava qualquer sentimento de idealismo humanitário que o levasse a perturbá-las. O seu negócio era o fato, era o camundongo.

Getúlio Vargas, se não criou aqui o mito bonapartista, deixou, todavia, que outros o espalhassem e dele viveu. Engaja a própria responsabilidade nos dois golpes que desferiu, pela certeza de que a contumácia democrática mostra- se incorrigível, em muitos casos, na execução deplorável das instituições livres. Seus dois regimes, aqueles nos quais trabalhou com alma, ele os utiliza para “decantar” a vida política do País. O revolucionário do pampa se sentirá maduro, numa e noutra circunstância, para realizar o seu destino, que será o governo pessoal contra o que ele consideraria os governos impotentes e desenxabidos dos “leguleios” partidários e parlamentares. A quem pediria hospitalidade para os seus princípios de governo de autoridade? Ao povo e às Classes Armadas. Principalmente à linha deve seus sucessos mais sensacionais.

Não conciliava as preferências individuais com as instituições democráticas. Recusava-se a depositar maior confiança nelas, e este seria o seu erro, em 1950, ao deixar-se eleger por um estatuto que não era o de sua vocacão pessoal. Em 1938, disse-me rudemente, por volta do mês de maio, aqui no Guanabara: “Queriam arranjar-me a permanência de mais um ano no governo, com a Constituição de 1934. Repeli a idéia, O regime que eu desejava era este, da Carta de novembro. Agora, sim, poderei trabalhar à vontade.” E logo deu o golpe de Volta Redonda. A seguir, o outro, da usina de papel do Tibagi.

Seus acumuladores políticos não eram carregados com a eletricidade criada pelas correntes partidárias. Essas, a seu ver, davam gás deletério ao povo. Nem do parlido único, chave e sustentação dos regimes autoritários, quis saber.

O Sr. Francisco Campos criou a Legião Revolucionária em 1931, quase à sua revelia. A propósito, disse-me, um dia, duvidar que Olegário Maciel vestisse a camisa da Legião de Minas Gerais. E, quando o velho fóssil do regime democrático envergou a camisa do Malazartes da Mantiqueira, Vargas, para se desforrar da dúvida que tinha posto quanto à abstenção do governador de Minas em envergar o uniforme da Legião do Sr. Francisco Campos, fez este reparo: “É fato que ele pôs a camisa revolucionária, mas por baixo do paletó...”

Desde que foi ditador, de 1930 a 1934, que Getúlio Vargas entendeu como sendo o governo unipessoal o único caminho dele sozinho, sem freios nem contrapesos, promover o bem-estar do povo brasileiro. Contava-me Antônio Carlos que ele assistiu ao processo de constitucionalização do País, em 1934, de braços cruzados. Jejuava constituinte. Procurava ter o mínimo de intervenção nos seus debates. Assim como Bonaparte quando desembarca do Egito, no 21 do Vendimiario, ano VIII (1.º de outubro de 799), diante da luta furiosa e exaustiva das facções, não tem outra ambição além da ditadura, Getúlio Vargas, depois da revolução de 1935, só encontra razões para aumentar suas reservas quanto ao Estado democrático. A mudança do regime pasa a entrar-lhe nos cálculos diurnos. Fora possível obstar-lhe o caminho se a contra-ofensiva viesse dos partidos democráticos unidos. Mas eles não se uniam, e, assim, quanto mais alargavam a brecha, mais o pretendente empurrava a sua cunha.

Alguns, no Exército, procuravam uma espada. Mas a sua lança de caudilho era mais afoita que o gume do General Góis Monteiro. Desse modo, no 18 Brumário brasileiro, concertado entre dois generais e um caudilho civil, foi o caudilho civil quem ganhou a partida para os soldados.

Getúlio Vargas aspirava a ter na sua Pátria, no seu meio, uma função eminentemente pastoral, armado ele de uma doutrina social. Era, a certos respeitos, um daqueles personagens das sociedades de pensamento des sociétés de pensée que de 1975 a 1993 fizeram a propaganda da revolução e a desencadearam na França. Tendo evitado com todas as forças e com todos os truques a jornada de 1930 (segundo disse-me e no que não acreditei), ele desembarca em Curitiba decidido a não emigrar. Estava com a revolução e dela não se apartaria mais.

Uma noite de fim de inverno, convocou-me ao Grande Hotel da capital do Paraná, onde ambos nos hospedávamos em outubro de 1930, para dizer-me, sem hesitar, que a Aliança Liberal estava extinta. A revolução de 3 de outubro era outra história. Com o programa da Aliança tentara-se uma eleição que foi fraudada e fracassada. Obstinara-se meses seguidos em não se fazer revolucionário.

– Fui o último a aderir à revolução no Rio Grande. Não desejava que confudissem uma derrota pessoal minha num pleito com os interesses imperiosos da minha terra.

Mas, já que nela entrara, iria até o fim. E até o fim com o Rio Grande do Sul.

Pode-se dizer que, desde 1930, Vargas adere à Democracia autoritária, e foi por isso que não quis mais saber da Democracia liberal; e se a ela irá volver em 1950, só Deus sabe com que constrangimento. Não deu uma arranhadura no regime. Mas, como guardava distância! Dois inimigos íntimos não se podem mais respeitar.

O Brasil é um inibido, com pouco dinamismo, e Vargas procurava cultivar-lhe o movimento, o amor do risco e a moral da vida perigosa.

Que outra poderia ser a base da sua intensa vida de conspirador? Ela não se concilia com a existência do pioneiro que vive o dia inteiro na jungle?

Um dia, em 1927, ele disse-me: “Há uma diferença sensível entre mim e o meu chefe Dr. Borges. Eu sou spenceriano.” Não havia tal. Nunca houve, pelo menos desde que Getúlio Vargas adotou o program que sabemos.

Foi o primeiro chefe de Estado, aqui, a não cruzar os braços diante da injustiça social, a lhe oferecer combate com franqueza e valor. De 1930 a 1945, seu corpo traz a marca do que sente o indelével daquela injustiça. Darlhe combate será a sua obsessão; extirpá-la da face do Brasil social, a sua luta.

Não se desarmará mais, desde que a viu de perto, com a visão objetiva de calamidade.

O sucesso prodigioso de Vargas é que ele veio para o poder possuído dos filtros do populismo, ou fosse, de paroxismo da exaltação das massas. Ele era povo e foi povo, desde que em 1927 foi para o governo de sua terra até o dia 24 de agosto de 1954.

Procurando colocar as classes num pé de igualdade, seria nessa decoração exótica para uma sociedade ainda inorgânica que Vargas tentaria não só desenvolver o seu apostolado, como governar uma massa de 50 milhões.

Disse e repeti várias vezes a Vargas que ele era um sonhador, que, com efeito, a maior parte do esforço desse calculista frio, desse realista inexorável, é obra de um demiurgo, ou seja, o trabalho de uma criatura que vivia dentro do irreal, num mundo de fantasias e de sonhos... Pondo nas mãos do povo os regimes que tentava edificar, Vargas passava de longe pela incapacidade das nossas massas e classes médias, para sustentar uma ordem de coisas políticas nos seus ombros, pela sua mesma inaptidão para tornar coordenados e concomitantes os interesses delas com os seus arquétipos.

Qual a razão pela qual Vargas caminha adiante dos governos anteriores? É que ele tinha uma força que eles não possuíam: o ascendente sobre as massas. Que sortes não dava todas as semanas para impor o brilho de sua porsonalidade irresistível ao eleitor do País!

Fazia a política como uma Arte, como um esporte, na complexidade de suas exigências espirituais, no interminável da vida e dos acontecimentos que ele cria nesse terreno. É preciso ter uma certa ótica cênica para ver as preciosas peças políticas que Vargas armou pela vida afora. Borges de Medeiros, Osvaldo Aranha, João Neves, Góis Monteiro, José Américo, Armando Sales, Eduardo Gomes, lá sabemos com quantos o “monstro loiro” teve aventuras por este mundo além! Cá fora só tínhamos conhecimento do desenlace das peças que armava. Os mais arrevesados, os mais cabeçudos, ele os seduzia. Fossem ver de dentro, na caixa do teatro, a escolha dos artistas, a distribuição dos papéis, a técnica dos ensaios, a preparação da ribalta com os seus jogos de luzes, a montagem, em suma.

Era qualquer coisa da paciência de um Flaubert, armando Madame Bovary ou de um operário de relojoaria suíça montando um relógio de precisão, ou Pratt-Whitney aprontando as peças de um motor de avião.

A história registrará, sim, registrará o pequeno ensaio que ele fez de uma das partes do golpe de 10 de novembro, na Guanabara, com os governadores de Minas, Bahia, Pernambuco e o Sr. Francisco Campos. É essa uma obra-prima de carpintaria teatral. Ouvi todo o episódio, narrado por um dos serafins da política brasileira, o vice-presidente Medeiros Neto, ator que Vargas havia preparado, com um esmero de ourives, para desempenhar um papel específico, deveras importante, nos dias dramáticos da sucessão e do golpe, na Bahia ao lado do seu governador, que ele precisava enfraquecer. Um serviço de anarquistas russos não teria montado uma máquina infernal mais diabólica para atuar num cérebro receptivo ao fascínio da sucessão presidencial, depositada engenhosamente por Vargas na cabeça do seu vice-presidente. Assisti, de corpo presente, a uma cena de despistamento, em que era ensaiador o seu então Ministro da Justiça. Asseguro-vos que no gabinete daquele Doutor Fausto, mesmo os aprendizes trabalhavam bem.

O biógrafo de amanhã, de Vargas, estudará o seu satanismo. Ele tinha um fraco por essa legenda, por esse jogo entre céu e inferno, que lhe vinha da fama de despistador, desde os pródromos de 1930 e da aversão que tinha muitas vezes em afirmar a verdade. Mas, acaso não era trair ou maltratar a verdade, o afirmá-la, sabendo-a quão fluida, quão transparente e quão relativa ela é?

Pelo que contam Aranha, Neves, Maurício Cardoso, João Daudt, Getúlio Vargas, desde a Escola que se impunha dos colegas. Impunha-se como? Por quê? Pelo seu eu dirigente. Moço, já conduzia os companheiros, entendendo mais, muito mais de Política do que qualquer deles.

Para se entender Vargas, é indispensável lançar um golpe de vista sobre o gaúcho e o Rio Grande, com os dados da sua vida real e do seu misticismo. Confundem-se os que pensam que o Rio Grande é Porto Alegre, ou mesmo Pelotas. Porto Alegre é um centro cosmopolita como Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio Grande não começa na Lagoa dos Patos. Aí pode dizer-se senão que ele acaba, pelo menos o que ele significa como proporções de elemento, como medida de natureza. Há dois anos, tomei, durante o dia, um avião e fui de Porto Alegre a Uruguaiana e de Uruguaiana a Curitiba. Ofereceu-me o pampa a sensação do ilimitado de um continente que não se detém na torrente do Uruguai. Ele avança pelas duas mesopotâmias, a paraguaia e a argentina, com uma vastidão de imensidade eslava. Dando uma vista de olhos no panorama do pampa, com as suas savanas hirtas, a primeira sensação que se recebe das suas populações ralas é a de um povo que ainda não se fundiu com a sua terra. A história interior do Rio Grande confirma que a reação da personalidade rica do pampa ainda não promoveu ali os grandes recursos suscetíveis de o dominarem – a fusão do homem com o meio só se acha parcialmente feita. Cedo ou tarde a síntese terá que produzir-se, e aí veremos, em quinze ou vinte milhões de homens, refletidos os traços que o crisol irá apurar, e que, entretanto, já se anunciam no mujique gaúcho dos nossos dias.

Em Porto Alegre, e, parcialmente, na zona da colonização italiana, palpita o dinamismo ocidental. A paixão mecânica do ítalo e do teuto progressistas é a continuadora das populações excêntricas do Mediterrâneo e da Europa Central, que trouxeram para o pacato meio rural o ruído da civilização da máquina a vapor. Tem o Rio Grande do Sul a dez, vinte, trinta, cinqüenta e sessenta quilômetros da sua metrópole, ilhas paulistas nas quais se discernem as linhas da rude tentativa de Street, de Pierson, de Sir Alexander Mackenzie, de Billings, de Siciliano, de Matarazzo, para industrialização do Brasil. A Democracia dos nossos tempos, em sua base mecânica e burguesa, a encontraremos em certos trechos da faixa atlântica do território gaúcho. São já duas articulações européias e americanas. Estudem-se os reflexos do pampa e do arquipélago da técnica manufatureira americana, quando se trata de partir com o Rio Grande numa aventura política. O arquipélago reage logo com um instinto ríspido de defesa do seu patrimônio produtivo, assim como com as suas concepões de viver, baseadas na propriedade privada e no poder da iniciativa. O pampa, esse, antes de ser ouvido, já está pronto para marchar para a Grande Aventura a que o convidam, e isto a fim de não se dessolidarizar das suas tradições guerreiras, risque-tout.

Como é este homem do pampa? Ele é quase todo de descendência portuguesa, espanhola e autóctone. Podemos defini-lo 50% Vargas. Um dos seus traços típicos é a rusticidade. Confundem-se a esse respeito as duas ambiências: a física e a moral. A simplicidade da vida do homem é a da sua mesma natureza. Terra, homem e concepção de vida do homem têm algo de primitivo. Estamos diante de gente pastoril, que, só recentemente, com a cultura do trigo, entrou a ocupar de modo mais direto o solo em que vive. Cavalo, homem e campo completam a figura do gaúcho, seu ritmo de viver e sua atmosfera. A geografia da terra não teria dito ainda tudo se a psicologia desse indivíduo não fosse marcada por aquilo de que Getúlio Vargas era representativo: a aptidão do gaúcho para a vida pobre, para sofrer a adversidade, na sua paciência para esperar, com o otimismo, o dia bom e o dia mau.

Era Vargas a natureza cautelosa do camponês. Ele era conspirador, sim. Gostava de conspirar muito. Conspirou desde o Rio Grande, em 1927, contra a autoridade de Borges de Medeiros, no seio do Partido Republicano. Conspirou em 1930 contra Washington Luís. Conspirou em 1937 contra a República Liberal de 1934. Mas, não desprezando as devidas cautelas, no seu ofício de conspirar, procurou sempre vedetas militares para dar os golpes que havia arquitetado. O seu Rubicon, o mais sério obstáculo que teria encontrado nas suas manobras subversivas, terá sido o 1937. Generais, almirantes, brigadeiros, havia às centenas contra o seu Estado Forte. Com quem atravessa ele o passo difícil, o passo de tão estreita garganta? Com os Generais Dutra e Góis Monteiro. Não faz uma revolução sem a tropa. Mas fez todas as que quis, menos a de 1945.

Na sua “querência”, era Vargas um camponês, um perfeito homem de gleba, um terrien, como se diz em França. Ali reside outra lancinante contradição, de um lado entre o imperialismo avassalador do homem do Estado, a capacidade de ataque do seu intervencionismo estatal sobre a superfície da existência dos seus compatriotas, do que temos o testemunho na armadura do Estado Novo, e, por que não dizê-lo? O autoritário e o totalitário que ele era, com as suas medidas de grandeza, na ação pública, e do outro, o individualismo do francês de rotina, do terroir, do pied-à-terre, do sentido miúdo das coisas que ele também era. Desdenhava a concepção do terroir político para adorar a outra do terroir doméstico e nela integrar-se.

Encontrava-me, certa tarde, em Sorocaba, com os Senhores A. de Moura Andrade e Benjamim Vargas. Contava ao meu velho e caro amigo, o irmão do presidente, o que era, há 150 anos, um homem do campo naquela região. Então, Moura Andrade, a meu pedido, se pôs a detalhar a série de anedotas a respeito do camponês sóbrio, sovina, agarrado aos seus bens, que se alinha na zona rural de Sorocaba, Tietê e Itu.

Contou a do queijo que o ituano escondia no guarda-roupa (Não esquecer que o pai de Vargas, Manuel, e seu avô, Evaristo, eram filho e neto de um sorocabano, Bueno. Pura cepa camponesa, desse trecho do interior paulista).

Benjamim Vargas arregalou os olhos e levantou-se do chão, onde nós três estávamos de cócoras como jeca-tatus.

“Pois eu vi Getúlio, há meses, ganhando um queijo, levá-lo ao armário do seu quarto, fechá-lo à chave, e dizer- nos: Este vocês não o terão sozinhos.” Era o ituano que, no Catete, 150 anos mais tarde, juntava as duas pontas da meada.

Falando à J. Nabuco, de Vargas se poderá dizer que foi o espongiário magnífico deste oceano humano que é o Brasil. Ele era o guasca, o campeiro, o caipira, o tabaréu, o matuto, o jeca, o sertanejo, o farroupilha, o favelado, o charrua, o tamoio, o guarani, o capixaba, o caeté, o tupinambá, o tabajara, o tupininquim, o timbira, o marroeiro, o homem branco, o negro, o amarelo, nas infinitas nuanças de todas essas cores; a música dos nossos rios; o barulho das nossas cachoeiras, a alegria das nossas madrugadas, a graça de um mês de maio nas campinas verdes do Rio Grande, o sorriso das nossas crianças, o uivar do minuano na cochilha, o coruscar das estrelas neste céu tropical. Que deslumbrante aquarela do Brasil! Que força elementar da vida! Não era um fragmento da nossa natureza, porque era toda ela!

Os medíocres charlatães, que já o estudaram, não enxergaram o segredo da sua imensidade. Vargas, era ele, e plus-todos os seus contrários. A sua prodigiosa glória é a de haver tantas vezes sacudido este cadáver obediente que é o Brasil. Ele não falava para o povo: oficiava como um sacerdote.

E como era nacional o demônio que as igrejas, porque ele não era de nenhuma para ser de todas, irão beatificar! Que soberbo animal telúrico, surgido no terceiro dia da criação, não havia no poder messiânico desse pretendente fechado e desse providencial aberto !

Homem pirandelesco, fluido, sem constantes, pioneiro múltiplo e variável, desconfiado e agressivo, nas horas decisivas não gostava de falar, apenas advertia. Afinal, por que aparentemente frio, dava murros espectaculares na cangalha? Era para matar o burro? Para deixar o burro no chão? Não, só para assustá-lo, tão-somente para assustá-lo, com um golpe violento no dorso.

A opulência deste detentor feérico da psicologia, da patologia e das possibilidades do seu povo residia na sua mesma indeterminação, no seu, se quiserem, sonambulismo, no seu ar de quem abria a picada, na mata, e ficava o resto do tempo a fazer a estrada real, quase sempre sem consegui-la, para outra vez lançar-se a novas picadas.

Duas vezes, ao que me disse, Vargas deu o consentimento íntimo à idéia da morte. E ambas no campo da luta civil. A idéia de morte traduz invariavelmente um estado emocional de alta responsabilidade e de beatitude da espiritualização. Isto mostra quanto o pólo do sofrimento tinha uma elevada representação na natureza desta criatura. Ele era a encarnação do “homem paciente”, como chamavam os gregos, do homem do qual era Ulisses o arquétipo, ou seja, a natureza saturada do heroísmo trágico. Vargas alinhava a bravura à serenidade, para encarar, face a face, o enigma da morte.

Derrubado em 1945, e, de novo, em 1954, a sua sensibilidade viu no segundo golpe uma tragédia sem saída. Era de novo a força militar a sua velha guarda que lhe faltara. Partira-se a cadeia formada de 1930 a 1945. Sente, já no fim da existência terrena, a necessidade de uma morte, como dizia o mito. Não é a desesperação suprema, porque é a humanização do Dragão.

Tarefa assaz difícil para um País, destituído de crítica, de cultura política e sem trânsito para as responsabilidades do Espírito, entender uma personagem como Vargas, que não encontra antecedentes em nenhum outro ponto do cosmos latino-americano. Nunca teve este País, em seus anais, nada tão espiritual como Vargas no campo da política. É o mais diferenciado dos homens públicos desta terra. Tem de vários deles, e não se parece com nenhum, como idéia, sangue, liberdade e dependência da comunidade. Suas vastas construções ainda não encontraram intérpretes.

Provocou uma crise, na qual, só agora, um ano após o seu desaparecimento, o País está entrando. Foi o primeiro homem do devenir, do Gemüt, do princípio germinal, dentro da órbita brasileira. É uma página desconhecida que aindaninguém leu, por falta de iniciação filosófica, pelo estado embrionário da inteligência brasileira, essa, da intimidade de Vargas com o Brasil, malgrado um certo bovarismo gaulteriano que o levava a supor-se diferente do que eram as notas tônicas da sua gente. E isto era bem verdade. Tanto que era ele quem puxava o Brasil, ao invés de o Brasil arrastá-lo.

O fino animal sensitivo, que era Vargas, tem uma medida de não-fixação nos estilos das velhas rotinas nacionais, dos carros de boi do direito público indígena, que só um processo de renovação da nossa cultura poderia abarcá-lo.

Encontramos no quadro da morte voluntária de Vargas o ritmo da epopéia dos Niebelung. Matando-se, o que ele procura é sobreviver. A idéia da morte deverá ocorrer no ser que se dispôs, graças à plenitude do sofrimento, a encontrar os motivos do renascimento.

Vargas se apresenta ao povo numa atitude de líder, para dizer-lhe a frase que Cristo foi o primeiro a pronunciar para o Ocidente: “Eu sou a Verdade.” Efetivamente, seu apostolado social dava-lhe à existência um sentido de cruzado. Era um homem que, quando volta em 1950, mais que dantes faz a doação de si mesmo à causa pública. Virá a realizar-se mais do que das outras vezes como representação de um destino, que nenhum outro teria força para cumpri-lo neste País, como poder de renúncia, para a qual ninguém aqui estava preparado, sobretudo num meio de depauperação espiritual como o nosso.

Velho jardineiro, podador dos galhos da árvore da liberdade, Getúlio Vargas tomba varado por esta suprema contradição: mandando aos seus compatriotas a mensagem do homem livre. Em seu calvário luta pela liberdade da iniciativa do presente, e, como um herói helênico, morre para renascer.

Tal a lanterna verde com que ele marcha para a eternidade.

27/8/1955