Senhor Aníbal Freire. Soou enfim a hora da vossa entrada nesta Casa, que há muito vos esperava, porque há muito vos identificava – lá fora destes muros – com todos os traços do parentesco acadêmico.
Aqui compareceis esta noite para colar o último grau, para receber a última láurea da vida, o prêmio do exame final entre tantos a que, formalmente ou sem formalidades, vos submetestes, numa longa, bela e estrelada carreira, começada no vosso pequenino Sergipe – o Sergipe de El-Rei – de onde saíram, brilhando, tantas mentalidades criadoras, tantas liras vibrando os acordes da mais pura Poesia, tantas vozes que, no Direito, na cátedra, na crítica literária ou nos debates da Política, da Filosofia e da Religião, encheram a crônica espiritual do Brasil.
O pequenino Sergipe.
O pequenino Sergipe – disse eu. Mas o adjetivo só qualifica e diminui a extensão territorial da unidade deferativa. Naquele reduzido recinto geográfico, quantos engenhos brotaram! quantos homens ilustres nasceram para semear ideias, para intervir na vida do País! O sergipano Sílvio Romero escreveu: “A província do Sergipe, com ser a menor e a mais desprotegida do Brasil, não é um terreno sáfaro e ingrato para a inteligência.”
Eu não gosto dessa odiosa divisão – os grandes e os pequenos. É como disfarçar, sob as diferenças de tamanho, as categorias da riqueza ou do poder. Desgraçadamente ainda não logramos esquecer que a nossa geografia política é fundada na herança colonial das desigualdades da geografia física. Já eram assim as capitanias, assim foram as províncias do Império, assim continuam a ser os Estados da República.
Talvez por causa desse atavismo dimensional, durante decênios, não temos feito senão falar nos grandes Estados, senão executar a política dos grandes Estados, senão sorrir da presunção dos pequenos, aos quais não damos mais – e quase sempre muito menos! – do que o estritamente assegurado na Constituição e nas leis.
Essa triste mentalidade pública criou – no que devia ser a fraternidade federativa – a oposição virtual entre uma minoria abastada e a condição proletária da maioria.
Não estará aí uma das causas das nossas lutas internas, dos nossos desacertos administrativos, de certos equívocos por vezes tragicamente ensanguentados?
A cada passo das nossas crises, começamos a pensar na formação de blocos regionais, a forjar unanimidades fictícias, quando só as ideias é que deveriam associar os homens, sem distinção de zonas ou de classes.
Talvez por isso os constituintes de 1946 hajam modelado a nova Carta Política sob o signo de uma democracia orgânica, fundada no jogo dos partidos, e partidos de âmbito nacional, com o fito transparente de substituir o predomínio dos grandes Estados ou as alianças estaduais pela supremacia dos partidos que excedem a medida gregária das regiões.
Os Pequenos contra os Grandes.
Aliás, a revolta dos pequenos contra os grandes não é singular à nossa intimidade federativa. Ela existe na vida de relação entre os povos do Mundo. Quem quer que tenha ido a uma Assembleia Internacional, lá terá sentido, desde a entrada, como as menores nações tendem naturalmente a opor-se à ditadura das maiores. Toda a nossa bela linha de política externa sempre se distinguiu, numa tenacidade pouco latina, em desfraldar a bandeira da igualdade jurídica dos Estados soberanos e em combater a predominância política dos maiores sobre os menores.
Possivelmente o malogro atual das Nações Unidas esteja na continuação do velho erro que – mais do que qualquer outro – sepultou a instituição de Genebra e que hoje revive com a possibilidade ilimitada do veto atribuído às grandes potências. O arbítrio de um anula os votos de todos.
Entretanto, a regra da convivência entre os indivíduos e os povos é sempre a da igualdade e do respeito recíproco. Sem isso, la loi du plus fort est toujours la meilleure.
As Glórias Sergipanas. Pois o vosso pequeno Sergipe, Senhor Aníbal Freire, pôde sempre orgulhar-se de ter sido o berço de ilustres poetas, escritores, homens de fé e de pensamento.
Não quero falar da eloquência de Frei Santa Cecília, tão do estilo da época em que as metáforas explicavam as sentenças do Evangelho, nem da poesia lírica de Bittencourt Sampaio ou de Pedro Calasãs.
Muito mais próximo, há outro sergipano, de memória particularmente cara à Academia e ao vosso coração. Estou falando de Laudelino Freire, o escritor, o homem de cultura, mas sobretudo o filólogo apaixonado pelas “graças e galas da linguagem”.
Mas a galeria sergipana não teria fim se devêssemos recordar um por um os seus grandes vultos. Contentemo-nos em realçar quatro nomes apenas, quatro nomes que são como quatro pontos cardeais: Tobias Barreto, Sílvio Romero, João Ribeiro e Jackson de Figueiredo.
Tobias é chefe de escola; em sua complexa figura fundem-se qualidades contraditórias: a inspiração apaixonada do poeta dos “Dias e noites” e a alma do agitador do “Discurso em mangas de camisa”. Jurista-filósofo, fechava os livros para medir-se com Castro Alves no duelo repentista em que ambos se empenhavam, cada um pela sua musa, nas grandes noites dramáticas do Santa Isabel. Não se poderia escrever a história jurídica do Brasil sem assinalar no demiurgo da Escola o marco de uma fronteira entre duas épocas.
Em Sílvio Romero, o que o eleva acima de seus rivais são os sólidos fundamentos de sua cultura filosófica, o conhecimento profundo da formação étnica, econômica e social do Brasil. Não fez da crítica um episódio da sua produção intelectual, mas um professorado científico, com espírito de sequência, de organização e de método. Tinha a alma de um gladiador e distribuía diplomas de mérito ou contestava valores com a rudeza de um fanático pelas suas ideias. Nem o próprio Machado de Assis escapou à sua intransigência polêmica.
Como são diferentemente cristalinas as águas que brotam das nascentes espirituais de João Ribeiro! Crítico também ele, a sua imparcialidade tem todos os tons de uma serena magistratura do espírito. Poeta, jornalista, homem de cultura multiforme, de aptidões poliédricas, foi a expressão perfeita de um grande erudito. Mas o que nele sobressai é a vocação do mestre da língua e de um intérprete inexcedível da História do Brasil.
A personalidade de Jackson de Figueiredo ainda não foi completamente interpretada, nem situada no paralelo exato de sua influência sobre a vida espiritual do Brasil. Talvez isso se deva não só à sua breve passagem pela terra, senão também ao tumulto da transformação política que começou precisamente pouco depois de sua morte. Mas não há dúvida que ele representou uma força nova – nova e diferente – mesmo no processo dessa transformação. As ideias que pregou, as lutas em que se envolveu, os discípulos que fez – tudo contribuiu para criar rumos, para abrir caminhos, para clarear obscuridades. A lucidez de Barreto Filho encontrou naquela força um mistério que ultrapassa “as posições exteriores que ele assumiu e defendeu, as suas políticas, os seus atritos intelectuais”.
A sua poderosa obra literária não é a que lhe há de ser contada no juízo da posteridade. O que define, caracteriza e sublima é a missão que o convertido tomou sobre os ombros e que o seu ilustre biógrafo resumiu num objetivo único: “A recristianização da vida brasileira em todos os seus aspectos”.
O próprio Jackson condensou-a naquelas palavras insubstituíveis de uma carta ao nosso Alceu de Amoroso Lima: “O que tem valor é o ato da criação da alma. De onde só ter valor o que ela é para além do tempo.”
Pela inquietação e pugnacidade do seu temperamento, a conversação de Jackson de Figueiredo tem singulares semelhanças com a religião de Santa Teresa, que Daniel Halévy considerava como aventure, découverte, abordage de Dieu.
Apóstolo sem mansuetude, a sua paixão era a verdade, e ele poderia dizer como Péguy: Je ne peux pas mentir.
Assim, a fama espiritual do pequeno Sergipe, Senhor Aníbal Freire, tem a sua imortalidade assegurada com as obras daqueles vossos conterrâneos; com a vossa que a Academia agora reconhece e proclama entre as mais ilustres, e ainda com a de Gilberto Amado, que prevenções pessoais e rivalidades hoje peremptas impediram de entrar neste recinto, mas que – para honra de nosso país – ocupa neste momento, por escolha unânime de seus pares, o posto de Relator Geral da Comissão, encarregada pela Assembleia das Nações Unidas de dar corpo e unidade às conquistas do Direito Internacional e, em seguida, à sua codificação.
Ao começar omiti os vossos títulos – de doutor em Direito, professor e Ministro da mais Alta Corte de Justiça. Aqui somos obrigados a deixar, no pórtico da Academia, os nossos pergaminhos. Talvez eles influam indiretamente na escolha de cada um de nós. Mas, acabado o pleito, nesta Casa não há outro diploma válido senão o que ela nos confere com igualdade entre todos e com a cláusula de duração vitalícia. Nesse particular, a investidura acadêmica é mais perene do que as ordens sacerdotais. Se estas não se podem perder, o seu exercício pode ser suspenso pela autoridade eclesiástica.
A Condição Acadêmica.
Pelo menos no Brasil, a condição acadêmica adere até a morte a cada um dos membros da Companhia. Nós podemos amanhã negá-la, abandoná-la, combatê-la. Não importa à Academia a atitude do heresiarca. A sua cadeira fica vazia, mas não vaga enquanto a morte não suprimir o infiel. Não estou interpretando a lei da Casa, animada pelo espírito que a criou o A nossa crônica tem apenas meio século, mas já há exemplos de dissídios entre a Instituição e um ou outro de seus membros. Esta mesma sala presenciou uma vez o tumulto da dissidência. Aqui estão sentados, de espadim e chapéu armado, alguns dos mais ilustres que, então em plena juventude, aplaudiram o gesto luterano praticado pelo grande rebelde. Mas o nome de Graça Aranha continuou a ser dos maiores das nossas letras, e hoje, nos paramos da imortalidade, não constitui um orgulho só para o Brasil. Também para a Academia.
Em suma, Senhor Aníbal Freire, esta é uma ordem perpétua em que hoje professais com os votos de obediência aos seus estatutos, mas sobretudo aos intuitos da sua criação.
A Unanimidade da Escolha. A vossa escolha reuniu – o que é muito raro – a unanimidade dos sufrágios aqui dentro e dos aplausos lá fora, o que é ainda mais raro. Houve mesmo alguém que, elogiando a vossa eleição, lamentou – e com razão – que aqui não houvésseis chegado antes.
Mas, Senhor Aníbal Freire, se é pena que esta Casa se lenha privado de receber mais cedo a vossa colaboração, ninguém diria que nela entrastes depois de passados os dias do vosso esplendor intelectual. Não, meu caro confrade, estais na madureza do vosso talento, atravessais justamente aquela zona temperada de equilíbrio espiritual, muito longe das exaltações equatoriais da juventude, mas ainda mais longe da gélida esterilidade da velhice. Basta ver que a vossa relativamente recente ascensão ao Supremo Tribunal revelou uma nova face da vossa vocação pública – a do Juiz. Não a do simples magistrado que decide as rotineiras contendas de Direito privado, mas a de membro de uma Corte que é a chave dos poderes do Estado, por isso que lhe incumbe o julgamento final da constitucionalidade das leis.
Não basta que os seus membros sejam exímios no conhecimento corriqueiro dos princípios jurídicos, mas é necessário que disponham das mais acendradas virtudes cívicas. Que sejam dotados de uma imparcialidade inamoldável, que não se dobrem nem à força dos governos nem à pressão popular, a fim de que – acima de tudo e de todos e só abaixo da Pátria – exista uma instância suprema: aquela a que pertenceis com tamanho lustre, aquela que numa curva apenas temporal – se poderia personificar no passado e no presente em dois de seus grandes Presidentes: Piza-e-Almeida, cuja mão Rui Barbosa beijou quando ele foi o voto vencido em favor dos perseguidos de 93, e Laudo de Camargo, que hoje enobrece com o seu saber e austeridade a chefia do Poder Judiciário.
A Academia e o Supremo Tribunal. Há mesmo entre a Academia e o Tribunal uma certa e antiga contiguidade: quando os juízes não entraram na Academia, foram os acadêmicos que entraram no Tribunal. Pois não nasceu a Academia, antes de qualquer outra, da inspiração de Lúcio de Mendonça? Morto este a Academia vai buscar-lhe, como sucessor, o grande Pedro Lessa. Depois, são os acadêmicos do porte de João Luís Alves, Ataulfo de Paiva e Rodrigo Octavio que passam a honrar as bancas da Corte Suprema.
Aliás, Senhor Aníbal Freire, se a Academia não é o Conselho dos Anciãos, normalmente também não é o paraíso da juventude.
Renan não se queixou da longa espera no átrio da Casa de Richelieu. Pareceu-lhe até, não sem uma ponta de ironia, que os seus novos confrades eram sempre justos: Justes vous êtes jusque dans vos delais. E não foi ele mesmo quem confessou em seu discurso de posse: On arrive à votre cénacle à l’âge de l’Ecclesiastes, âge charmant, de plus propre à le sereine gaité, ou 1’on commence à voir, après une jeunesse laborieuse, que tout est vanité, mais aussi qu’une foule de choses vaines sont dignes d’être longuement savourées?
O frade-pregador pôde exclamar no púlpito do Outeiro da Glória: “É tarde, é muito tarde.” Mas a sua eloquência já enchera de vibração religiosa e patriótica, durante longos anos, as naves das grandes Igrejas da cidade. E a cegueira, completando a obra da idade, inspirou o maravilhoso sermão.
Para vós, Senhor Aníbal Freire, começa hoje uma nova forma de atividade mental, nova apenas porque diferente das anteriores, nem mais nem menos ilustre do que as anteriores ou atuais.
Principiastes o vosso magnífico discurso de posse pela defesa da Instituição a que hoje pertenceis. A Academia – em verdade – já venceu a indiferença pública e está hoje situada no exato paralelo de sua zona de influência sobre a cultura nacional. Mas os ataques ou as sátiras precisam continuar, até para a beleza dos contrastes.
Quantas vezes eles explodem mesmo de dentro da fortaleza! Delavigne, que tanto pelejou para entrar na Casa de Richelieu, dizia mais tarde a Legouvé: L’Académie a um grand avantage; grâce à elle, quand on n’est plus quelqu’un, on est encore quelque chose.
A Academia e os Expoentes. Modestamente vos escusais com o “receio de preterir a outros que, pela vocação irresistível e fiel às Letras, aspirassem a esta consagração definitiva”.
Não, Senhor Aníbal Freire, para a vossa admissão na Companhia não foi necessário quebrar os padrões de julgamento nem modificar o critério até agora adotado para a seleção de valores.
Está há muito encerrado o velho debate que opunha, aqui dentro, aos grandes expoentes da inteligência criadora, em quaisquer domínios da Cultura, os homens exclusivamente de Letras.
Nem foi esta a intenção dos fundadores nem a sua própria lista daria um testemunho contrário.
A Academia Brasileira, como todas as outras Academias do Mundo, sempre se recusou a fazer distinções ou estabelecer categorias no dogma, que Renan denominou l’unité de la gloire. Como disse o maravilhoso estilista de A Vida de Jesus: Vous trouvez que le poète, l’orateur, le philosophe, le savant, le politique, l’homme qui represente éminemment la civilité d’une nation, celui qui porte dignement un de ces noms qui sont synonimes d’honneur et de patrie, tous ces hommes-lá sont confrères, qu’ils travaillent à une oeuvre commune, à constituir une société grande et libérale. E Renan situa, com igual direito, sous la coupole, ceux qui parlent bien, ceux qui pensent bien, ceux qui sentent bien.
Mas em quantas daquelas categorias vos encontrais dignamente compreendido, Senhor Aníbal Freire. Desde o curso de humanidades, no Colégio Alfredo Montes e no Ateneu Sergipense, a vossa inteligência juvenil começou a revelar o que havia de ser o sol a pino da vossa maturidade.
Três Faculdades de Direito contribuíram para a formação jurídica do vosso espírito, ávido de saber em tão verdes anos: a da Bahia, onde, entre outros, aprendestes as lições de Filinto Bastos; a do Rio de Janeiro, que vos familiarizou com a vida da metrópole; finalmente a do Recife, em que recebestes o grau, ainda antes da maioridade.
Recife.
Recife! Esta palavra deve esta noite ressuscitar na vossa memória e no vosso coração todas as imperecíveis lembranças e sentimentos da vossa juventude, da vossa vida íntima, da vossa iniciação no magistério superior, no jornalismo, na carreira parlamentar.
O sergipano permaneceu menos de dois anos como promotor público de Aracaju. A cidade de Nassau era o seu fanal, o pólo das suas aspirações, o cenário das suas luminosas esperanças. Talvez eu devesse dizer a paisagem espiritual do seu destino.
Vós mesmo fizestes em 1930 o retrato da metrópole nordestina, cuja cidadania adquiristes pela força de uma usucapião sentimental:
Recife emerge das ondas como se a trouxessem à superfície correntes invisíveis. Nenhuma aspereza, nenhuma desarmonia, nenhuma aresta na sua configuração. Abrigo da minha mocidade, húmus vivificador de minha formação mental, estímulo e conforto de minha madureza, sacrifício. de minhas mais caras recordações, recebe, Pernambuco indômito, a oblação de meu reconhecimento e fidelidade”.
Mas a glória cívica da cidade do Recife quem a imortalizou foi Rui Barbosa nestes períodos de ouro:
O Recife poderia imitar a divisa da cidade augusta que se coroou entre todas, como a rainha das capitais universitárias. Não alvejam sobre as tuas instituições quinze séculos de antiguidade; não te revestes do quádruplo manto da Medicina, da Jurisprudência, da Teologia e das Artes, como a cidade de Benedito XIV, Dominiquino e Galvani. Mas o verdor de teus anos exubera da seiva moral, como as grandes criações seculares da História; e o que teu exemplo nos ensina é a nata da sabedoria; é o aroma da beleza suprema; é a poesia da vida entre as inteligências; é o que mais falta e o que de mais se necessita neste País: a destimidez da consciência, a independência do Direito, o estoicismo do dever, a confiança na lei, a insubmissão ao arbítrio.
Não foi sem causa que a poesia sonhou em ti a medula do leão.
Não importa, de todo, o lugar onde a gente nasce se não é nele que aprendemos a ciência da vida, se não é nele que levantamos as paredes do lar, se não é dele que empreendemos a viagem pelos itinerários da nossa vida.
Será, como queria o escritor, el terruño la pátria del corazón, mas não será mais do que isso. Assim, Senhor Aníbal Freire, naquela noite de 1904, quando de bordo do pequeno barco que ganhava lentamente as águas do Lamarão, contemplastes as primeiras luzes da cidade tremulamente refletidas nos canais da Veneza brasileira, era como se voltásseis à Terra da Promissão depois de uma longa e insuportável ausência. Desde aquela hora vos tornastes um pernambucano, palpitando com todos os anseios da grande província, cujo estilo peculiar de vida adotastes sem reservas. E já ali estais, três anos depois, alcançando, por concurso, o lugar de lente substituto da seção de Economia Política, Finanças e Direito Administrativo.
O professorado era, então, entre os profissionais do Direito, uma espécie de título de nobre intelectual a que todos aspiravam. A sala dos concursos parecia uma arena de combate. Não havia, como hoje, bancas examinadoras. Toda a Congregação tomava parte nos exames perante um público exigente que, por sua vez, julgava os próprios juízes. Foi ali que derrotastes os vossos ilustres contendores, um dos quais, Hercílio de Souza, mais tarde se tornou dos mais prestigiosos lentes da velha Faculdade. Poucos anos depois, ascendentes ao posto de catedrático de Direito Administrativo, de cuja disciplina sois, no Brasil, um dos mestres incontestados.
Escritor de direito, na interpretação da Carta de 1891, tornou-se clássico o vosso estudo sobre o poder executivo no âmbito das atribuições constitucionais.
A Política e o Jornalismo.
Mas os vossos pendores intelectuais não se esgotaram nas lides do professorado. Contemporaneamente, a Política vos envolvia com todas as suas seduções de deusa absorvente, caprichosa e versátil.
A Política e o Jornalismo daí em diante, durante largos e belos anos, encheram as vossas horas. Mas não pertencestes a esse detestável diletantismo da vida pública, tão nefasto como todos os diletantismos. Fostes um homem político de corpo e alma.
Houve um tempo em que era moda falar mal dos políticos profissionais. Mas há uma distinção inevitável: há os que exploram a Política, esses são os maus políticos, e há os que fazem da Política uma carreira, esses são os técnicos da Política e, as mais das vezes, as suas vítimas. Funesto ao interesse coletivo tanto pode ser o que tira da política a posição e a riqueza, como também o amador desorientado nas encruzilhadas da selva selvaggia.
No vosso tempo de iniciação já havia decerto homens que buscavam na política apenas a satisfação das vaidades ou – o que é pior – o meio de enriquecimento ilícito. Mas esses não passavam, então, de uma minoria desprezível e desprezada. A grande legião era formada pelos moços idealistas, que praticavam desde os bancos escolares o culto da liberdade e o serviço da Pátria. Adeptos da democracia formal, ao gosto da época, imbuídos dos princípios individualistas da Revolução Francesa, ainda não contestados por outras necessidades do homem e da massa, a imprensa e a tribuna constituíam os únicos veículos de comunicação com o povo.
A vossa carreira partidária, Senhor Aníbal Freire, teve logo a orientá-la a superioridade de um chefe das raras proporções do Conselheiro Rosa e Silva, de quem fostes um dos maiores amigos, um dos líderes prediletos, acompanhando-o no poder ou na desgraça, com uma fidelidade exemplar.
Rosa e Silva trouxe do Império para a República dotes singulares de homens de Estado afeito às lutas parlamentares e ao exercício do governo. Mas era, sobretudo, um desses homens predestinados às funções de comando. A força pôde, num assomo, derribar a situação que ele criara com profundas raízes na consciência pernambucana. Não pôde, porém, privá-lo daquela influência legítima e duradoura que resiste aos desmandos da violência.
Deputado à Assembleia Legislativa, os vossos discursos fizeram época e vos conferiram um lugar excepcional entre os vossos pares e no seio de vossos correligionários, entre os quais se contavam valores como Gonçalves Ferreira, Pedro Pernambuco, Esmeraldino Bandeira, Segismundo Gonçalves, Estácio Coimbra.
O Jornalismo Doutrinário.
À frente do Diário de Pernambuco, uma das mais velhas e mais autorizadas folhas do Brasil, acentuastes desde lago o vosso feitio de jornalista doutrinário, como então se chamava, sem exatidão semântica, o escritor que se valia da imprensa para a elevada propaganda das ideias políticas. O “jornalista doutrinário” teve o seu mestre e o seu modelo menos em Rui Barbosa do que em Quintino Bocaiuva. Foi o jornalista doutrinário um dos grandes artífices intelectuais da queda do Império. A dinastia caiu, naquela madrugada de 15 de novembro, tanto pelos argumentos da força, como pela força dos argumentos, vibrados dia a dia pelos tribunos e os articulistas da propaganda.
A imprensa ainda não era a chamada grande imprensa de informações, nem tomara as cores cosmopolitas e sensacionalistas, que hoje a distinguem por toda parte, salvo talvez na Inglaterra. Naquele longínquo mundo passado, o que interessava ao leitor não era a notícia ou o telegrama da Havas, mas o “artigo de fundo”. Por isso o leitor o saboreava com o café da manhã. Era no artigo de fundo que cada um inspirava as suas opiniões; contra ele é que endereçava as suas críticas ou formulava as suas reservas.
O tom ostentava a gravidade ritual de um apostolado, a forma brilhava sob o verniz das imagens e das invocações históricas. Até os títulos prenunciavam o conteúdo como luminosas ementas. Rui tinha a especialidade desses títulos, alguns dos quais se tornaram célebres: “A mosca do coche”; “O direito da vaia”; “Caim”; “A lição das esquadras”.
Fostes, Senhor Aníbal Freire, um dos nossos grandes jornalistas doutrinários no começo deste século.
Pesquisando as manifestações intelectuais da vossa mocidade, tive sob os olhos os vossos escritos no Diário de Pernambuco. Neles se pode acompanhar, e através deles compreender toda uma fase da agitada iniciação republicana do Brasil. Há nos vossos períodos um intenso fulgor, que põe em relevo a densidade dos vossos argumentos. Homem de partido é ao vosso partido que servis e, por vezes, como na réplica veemente a José do Patrocínio, em defesa de Rosa e Silva, a vossa pena tem faiscações de florete.
Mas não vos detendes, como jornalista, apenas nas questões políticas. Nada foge à vossa análise sutil – a política internacional, os problemas econômicos, os aspectos da administração pública e ainda vos sobravam lazeres para a crítica literária, que manejais com rara mestria. A vossa curiosidade intelectual parece não ter limites: estais a par dos últimos jornais europeus, analisais os – vient de paraître – de Paris ou de Londres, como se eles se editassem ali na Rua da Imperatriz; apreciais com exatidão os movimentos da diplomacia europeia e os fluxos das correntes imigratórias já então – ao vosso arguto juízo – indispensáveis ao desenvolvimento do nosso País.
A Formação da Academia.
A Academia Brasileira não escapou aos alfinetes de um dos vossos “Escorços Literários”, a propósito da posse de Oliveira Lima. A vossa crítica, tomada em absoluto, não carece de procedência quanto à maneira por que se organizou esta Instituição. Decerto que alguns dos fundadores praticamente se elegeram a si mesmos e que grandes valores mentais não figuraram na lista dos primeiros quarenta. Mas, entre os que enumerais, Clóvis Beviláqua, Arthur Orlando e João Ribeiro vieram a ser posteriormente eleitos. Entretanto, às vossas reservas já respondera magistralmente Joaquim Nabuco na sessão inaugural desta Casa:
Quanto à escolha própria, como poderia ser evitada? Nenhum de nós lembrou o seu próprio nome; todos fomos chamados e chamamos a quem nos chamou houve uma boa razão para nos reunirmos ao convite do Sr. Lúcio de Mendonça; é que, exceto essa, só havia uma outra forma de apresentação: a oficial. Não seria decerto a mais inspirada, e uma eleição pública havia de ressentir-se de cor local. De qualquer forma que se formasse a série dos primitivos, a ordem seria imperfeita; resultariam iguais injustiças. Não temos de que nos afligir; todas as Academias nasceram assim.
Há, porém, naquele vosso artigo, a prática de uma profunda injustiça, quando impugnais a inclusão de Guimarães Passos entre os fundadores desta Casa. Não, Senhor Aníbal Freire, ninguém entrou com mais direito no elenco dos primitivos do que o trovador alagoano, cuja glória não precisou de ser construída sobre uma montanha de poemas. Elevou-se, pura e imperecível, sobre os quatorze versos daquele lenço “pando, enfunado, côncavo de beijos”.
Coelho Neto, dormindo à noite sob uma ramada gaúcha, às margens do Camaquã, ouviu uma deliciosa modinha cantada pelos tropeiros. Eram os versos de Guimarães Passos “A Casa Branca da Serra”. Tão fundo o poeta calara na alma do povo!
Mas o Jornalismo em vossa carreira não foi fruto apenas de irreprimível vocação de escritor, senão também uma das armas da vossa panóplia de homem público. A vossa vitória nos prélios da Política estava assegurada porque sabeis manejar com igual primor a pena e a palavra. A meu juízo, em vós o orador supera o jornalista. Há na vossa eloquência um acentuado colorido francês em que se modelaram as vossas preferências espirituais. Nordestino, nascido na vizinhança do incêndio condoreiro da luxuriante eloquência baiana, fora de esperar que dos vossos discursos crepitassem as imagens, fulgurassem as alegorias e que o jogo dos adjetivos se irisasse com todas as cores do espectro solar, como as águas dos repuxos iluminados, nas noites festivas dos jardins de Versalhes. Mas isso não acontece às vossas orações, na tribuna parlamentar, nas assembleias políticas, nas colações de grau, nas comemorações cívicas ou nos conselhos educacionais, são modelos de simplicidade, distinção e medida. Tendes no mais alto grau o senso dialético. Por vezes a inspiração se alteia acima do próprio assunto, mas o que lhe confere os traços da beleza ou da eloquência é a precisão dos conceitos, a fluidez da linguagem e aquela probidade da exposição e dos argumentos que vos outorga o direito de abrigar a vossa passagem pela tribuna sob a velha definição romana do vir probus, dicendi peritus.
Seria uma jornada interminável a de citar, ainda que de passagem, os melhores textos das vossas orações. Mas nenhuma melhor do que esta que a Academia acaba de escutar no justo elogio do vosso eminente predecessor.
A Eternidade da Eloquência.
A eloquência tem tido sempre os seus inimigos e os seus detratores. Entretanto, jamais os povos se comoveram ou lutaram por uma causa sem o estímulo e o apoio dos oradores. Ainda na última guerra as Nações não pelejaram apenas com as armas dos seus exércitos, mas com os discursos dos seus líderes. Quando o mundo ocidental parecia soçobrar com a derrota militar da França, quem não se recorda de ter escutado, no silêncio da noite – bela, corajosa, estoica – a mensagem de Churchill, afirmando que as Ilhas Britânicas não se renderiam e que o seu povo continuaria a bater-se – nas praias, nos mares e nos céus – até a derrota dos inimigos da liberdade.
Não, senhores acadêmicos, os que anunciaram a morte da eloquência só anunciaram a morte da retórica, que é a caricatura da eloquência. O que morreu foi a fraseologia sem as ideias, foi a forma sem o fundo, foi o barro contingente das palavras sem a alma imortal dos pensamentos.
A Escola Conservadora.
Professor e escritor de Direito, técnico nos difíceis segredos da educação, jornalista consumado, constituiu entretanto a política o enlevo da vossa vida e a ocupação predileta das vossas horas. Há justamente vinte anos, encontramo-nos na Câmara dos Deputados, envolvidos como todo o Brasil nas labaredas do incêndio pré-revolucionário. Eu já era um dos vossos admiradores; em meio ao tumulto e à divergência, fiquei sendo um dos vossos amigos – naquela rara categoria de homens que se estimam e respeitam fora dos círculos da intimidade pessoal. Mas a tormenta, que vos colheu na derrota, não alterou a substância das vossas crenças políticas. Pertenceis, Senhor Aníbal Freire, à escola conservadora, que tudo espera da evolução e tudo proscreve da revolução. A vossa fórmula ideal de governo consiste em conciliar os dois velhos e suspicazes inimigos: a autoridade e a liberdade.
Assim o dissestes expressamente em uma mais perfeitas orações: “Nunca o problema da conciliação entre a autoridade e a liberdade foi posto em termos tão nítidos e severos como na atualidade.”
Os homens da vossa geração, sucessora imediata dos propagandistas da República, embeberam-se dos princípios da política positiva, ainda quando não professassem os exageros seitistas do seu imortal fundador. Fostes conservadores, mas não fostes nem misoneístas nem reacionários; ao contrário, o vosso ideal era conservar para melhorar, e vós mesmo o afirmastes em uma forma lapidar: “Só se conserva bem o que se utiliza para novos impulsos.”
Naquele mesmo 1930 tão impregnado de esperanças, agitações e temores, tivemos ambos a honra de ocupar a tribuna do mesmo recinto do Teatro Santa Isabel – o sacrário em que se conserva a memória de Joaquim Nabuco, pregando a Abolição e as imagens imortais de Castro Alves e Tobias Barreto. Eu falei para uma multidão ululante de conspiradores quase amotinados, e o discurso foi menos meu do que deles, pois que não fiz senão traduzir em palavras o anseio daqueles bravos revolucionários de Pernambuco.
Vós tivestes a fortuna de debater os problemas do dia com serenidade e poder de convicção, reafirmando a vossa confiança na ordem e nas instituições que já estavam vacilantes. É verdade que a vossa probidade vos obrigou a acentuar uma afirmação, que naquela época constituía, entre os amigos do Governo, um ato de coragem:
– O campo político – dissestes – precisa inquestionavelmente ser alargado no Brasil. O acesso à magistratura suprema não pode mais se processar somente entre os governadores dos Estados. Constitui uma das máculas do regime a erupção de certos prestígios quadrienais, que não se traduzem pelos tirocínios da vida política, pela sequência de serviços à causa pública, pela aptidão, descortino e atividade.
O conceito da Liberdade.
Quem hoje confrontasse as nossas duas orações veria na minha um mundo de esperanças em parte desvanecidas, e, na vossa, outro mundo de certezas destruídas pelos acontecimentos. Triste diálogo a distância entre dois homens fiéis às suas ideias? Não, apenas a prova de que dois pensamentos podem continuar verdadeiros, embora a tirania das circunstâncias não permitisse a mim a plenitude do que eu pregava e a vós a segurança objetiva sobre a qual pareciam repousar as vossas convicções. O que essencialmente nos separava – e aos conservadores e aos revolucionários de 1930 – era o conceito da liberdade.
Casualmente a vossa eleição ocorreu no ano em que o mundo celebrou o bicentenário do Esprit des lois. O vosso Mestre era Montesquieu, o vosso conceito de liberdade era exatamente o dele que não a admitia senão à sombra das leis, sub lege libertas.
Para nós o que nos guiava era aquilo que Starobinski denominou a “ideia passional da liberdade”. Depois, o mundo foi jogado na fogueira de uma nova conflagração. Ainda estamos longe de uma paz consolidada e de uma organização de princípios para a sociedade humana, mas o Ocidente já decidiu a sua orientação democrática com os novos padrões de Socialismo. Ao conceito meramente político da liberdade opõem-se hoje por toda parte os princípios da liberdade popular e da igualdade de todos os seres humanos, sem distinções, ao gozo de todas as regalias e de todas as oportunidades.
O Ministro da Fazenda. Mas a vossa carreira pública, Senhor Aníbal Freire, não se esgotou nos debates do parlamento e da imprensa de partido. Exercestes com raro brilho um dos mais difíceis postos do Governo – a Pasta da Fazenda – durante uma parte da administração do Presidente Artur Bernardes. Não foram dias tranquilos os que tiveram de atravessar aquele eminente homem de Estado. Com a ordem material sempre ameaçada, quando não perturbada por crises revolucionárias, os problemas econômicos e financeiros tinham de sofrer a repercussão das dificuldades políticas. Sem embargo, em cerca de dois anos de esforços bem orientados, as despesas puderam ser comprimidas, reduziram-se o déficit orçamentário e o meio circulante, elevaram-se as taxas de câmbio, avolumaram-se os saldos na balança comercial.
Agradecendo as homenagens que vos prestaram ao deixardes o velho casarão da Rua do Sacramento, hoje demolido, pudestes fazer uma pública prestação de contas dos vossos atos no exercício do poder, que vos pareceu “triste e efêmero para os que o exercem sem se deslumbrar com as suas fascinações”.
Barthou achava que não há aposentadoria para o político. Nenhum limite de idade fixa limites às suas aspirações. Le politique – disse ele – espère toujours.
A vossa conduta depois da Revolução de 30 desmente o conceito. De política não mais tratastes: regressastes à vida do Direito e ao Jornalismo. Consultor-Geral da República soubestes manter o prestígio daquele órgão, em cujo corpo de doutrina colaboraram antes três outros eminentes membros da Academia: Araripe Júnior, Rodrigo Octavio, Levi Carneiro.
Jornalista já agora nas colunas do Jornal do Brasil, fostes um digno continuador das tradições que naquele grande órgão deixaram Rodolfo Dantas, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, para só falar dos maiores.
O Patrono da Cadeira 3. A Cadeira, que vos coube pela escolha unânime da Academia, tem um patrono – mais célebre pelos seus ditos faiscantes do que pelas obras escritas que legou à posteridade. Era um desses talentos verbais que semeiam perdulariamente, ao vento das rodas boêmias e das ruas, a malícia dos epigramas. O gaúcho Artur de Oliveira chegou a merecer, em Paris, a amizade de Théophile Gautier que o teria apelidado père de la foudre e a admiração de Machado de Assis, que o cognominara “saco de espantos”. A sua mordacidade era o terror dos contemporâneos; as suas sátiras circulavam pela Rua do Ouvidor, pelos corredores do parlamento, pelos salões da Monarquia, como as de Rivarol no Paris do fim do Século XVIII. Uma de suas vítimas prediletas foi Gaspar da Silveira Martins, o maravilhoso tribuno, que Nabuco considerava com justiça o Sansão do Império. Gaspar era um egocêntrico. Consciente da sua força, do seu talento e do seu prestígio, abusava – em relação a todas as coisas, as ideias e aos seres – de possessivos irritantes: o meu partido, o meu Rio Grande, o meu Governo...
Artur de Oliveira não lhe poupou essa hipertrofia do ego, e dizia que ninguém se espantasse se, em face de uma tromba de água, Gaspar acabasse por dizer com naturalidade e convicção: “Eu chovo...”.
Filinto de Almeida. Durante longos anos – quase meio século – sentou-se nessa Cadeira Filinto de Almeida, um dos últimos robles da época da fundação, abatido afinal pela lei inexorável da morte. Aqui o encontrei há pouco mais de um decênio, quando me coube a honra de suceder a Coelho Neto.
Não me seria possível deter-me nem sequer um instante no estudo dessa esplêndida personalidade literária. Limitar-me-ei a dizer que ele era cidadão de uma nacionalidade que nunca existiu nos compêndios da geografia política, mas apenas nos fastos da geografia sentimental. Filinto foi sempre súdito do império luso-brasileiro – no grande, no profundo, no histórico e alegórico sentido da expressão. Simbolizou, em seu feitio humano e literário, a alma inseparável das duas Pátrias – a que lhe deu o berço e a que lhe deu o lar – ambas unidas para sempre pelo laço de ouro da língua portuguesa.
Roberto Simonsen. Não chegou a dois anos a nossa convivência acadêmica com Roberto Simonsen, A morte o colheu justo neste mesmo lugar, quando saudava, diante de uma sala repleta, a personalidade do ilustre homem de Estado belga, Sr. Paul Van Zeeland. Aníbal Freire acaba de pintar com inexcedível mestria um grande retrato espiritual do seu eminente predecessor.
A vida, a obra e a ação de Roberto Simonsen fizeram dele, no Brasil, um homem ímpar. Durante largos anos só enxergaram nele um capitão de indústria; a calúnia, ao serviço da inveja, apontou-o como um adorador do bezerro de ouro, um comanditário da finança internacional, um exemplar anacrônico do capitalismo em sua concepção e em suas formas mais odiosas. O trabalhador sem canseiras que ele era, o patriota, o estudioso, o investigador dos fenômenos econômicos – não se revoltou contra o crime da iniquidade pública, nem arrefeceu o seu entusiasmo pelo Brasil. Continuou a pelejar justamente pela independência econômica da Pátria, sem ostentação nem espera de recompensa. Depois foi o que se viu, neste nosso País em que a justiça aos lutadores só começa quando eles tombam na arena. Mas seria uma terrível inexatidão julgar Roberto Simonsen apenas pelo que ele vale – e vale imenso – como autor de uma obra sem antecedentes nos assentos da nossa cultura: a História Econômica do Brasil. Ele pertenceu àquele reduzido número de homens superiores à sua própria obra escrita. Verdadeiramente, a sua grande obra foi a sua vida executiva. Num país em que viceja uma burocracia luxuriante e cara, Roberto Simonsen era um funcionário gratuito da República. Atravessava noites em claro no estudo dos problemas nacionais, queimando na ação as suas últimas reservas de saúde, entregando ao Governo, sem paga – e quase sempre sem agradecimento! – o fruto de seus exames, o resultado de suas pesquisas no laboratório dos fenômenos econômicos, sociais e financeiros.
Conheci-o há mais de vinte anos, quando estendia a sua atividade ao Rio Grande do Sul. Em plena mocidade – belo, insinuante, superior ao meio – conquistava as vitórias às vezes pela ação de presença. Com todos os traços de uma cultura e de uma intimidade europeias, não era o esnobe, que raciocinasse sob as medidas de Paris ou de Londres, mas o brasileiro a quem só preocupavam as nossas aflições domésticas: a insignificância da renda nacional, o alto custo da produção, o drama do café, a pobreza da nossa densidade demográfica, a necessidade de elevarmos os nossos miseráveis padrões de vida pelo crescimento dos grandes ramos de uma indústria viável e multiforme.
Encontramo-nos depois no parlamento, na vida de sociedade, nos cenáculos de estudo. A sua cultura adquirira com a experiência e a idade o equilíbrio e a lucidez da madureza; a sua inteligência ganhara a limpidez dos cristais; a sua vontade não se dobrara nem aos ataques nem os reveses.
Às vésperas da IX Conferência Internacional Americana, reunida em Bogotá, justo há um ano, assisti quando fazia dádiva ao Governo de um precioso e custoso cabedal de estudos, monografias, mapas, quadros, indispensáveis ao resguardo dos nossos interesses no momento em que se houvessem de discutir e votar as bases da Carta Econômica das Américas. Era o tesouro dos seus próprios estudos, dos seus arquivos abertos ao serviço da Nação. Vi-o ainda oferecendo-se desinteressadamente para ir até aquelas enormes altitudes andinas, das quais provavelmente não voltaria com vida, tão deficientes eram então as suas condições orgânicas. Chefe da Delegação brasileira àquele grave e difícil concílio das Américas, guardo entre os meus papéis, mas sobretudo na minha memória e na minha saudade, os conselhos inspirados que ele me deu; os elementos que me forneceu, como técnico, para defender sem desmaios as linhas da nossa defesa econômica, que afinal não são senão as últimas trincheiras da independência política.
Felizmente a posteridade começou, para Roberto Simonsen, no dia seguinte àquela tarde triste em que caiu fulminando nesta mesma tribuna.
Um dos mais belos espíritos deste País, já proverbial do culto de uma imparcialidade corajosa e quase fanática, o Senador José Américo escreveu um artigo cujo título diz tudo: “Roberto Simonsen, uma de minhas retificações”:
Senhor Aníbal Freire:
Eis os santos da vossa nova Capela: um homem de espírito, um poeta, um homem de ação.
Fiz quanto me permitiram as forças para compor com as melhores tintas o vosso retrato. Receio que o panegírico tenha saído ainda mais pobre do que eu temia, mas confio que não repetireis, nem mesmo por pensamentos, a censura do personagem de Gide: plutôt que d’être mal loué, je préfère ne l’être point.
Até porque, Senhor Aníbal Freire, ninguém mais do que eu saberia apreciar esta honra – a mesma a que se referiu de Jouy quando recebeu na Academia Francesa a Charles Nodier, como sendo a que nos autoriza a louvar solenemente o homem que estimamos, a manifestar em público a nossa admiração pelos seus talentos, a nossa estima pelo seu caráter, a nossa amizade pela sua pessoa.