Senhor Américo Jacobina Lacombe,
Ao encerrar-se o primeiro ano desta Academia, escreveu Machado de Assis, seu Presidente, ser ela “uma torre de marfim, onde se acolham espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto”. Aí tendes, meu caro e ilustre amigo, a bucólica paisagem do lugar a que, entre as galas desta festa aquecida pela amizade e pela admiração, acabais de chegar. Sensível às vossas raízes, que um ancestral nativista incorporou ao nome, que tanto tendes enaltecido – Jacobina –, quisestes fazê-lo na data magna da Bahia, que não evocamos sem nos vir à memória o estro de Castro Alves:
Era no Dois de Julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
Menos belicoso, o anjo que nos recebe à porta desta Casa, suave e ameno, apenas nos impõe uma condição: aqui se entra para um convívio por toda a vida. Podeis, porém, estar tranquilo, pois a Companhia, além de compensar as farpas dos que demoram em entrar, é grata e fácil para os que como vós, e como todos nós, substituíram o egoísmo pela solidariedade, o despeito pela admiração, a malediscência pelo louvor, a intolerância pela compreensão. Também agradável nos será termos conosco a vossa personalidade, na qual, além das seduções de uma culta inteligência se assinalam o trato ameno, o convívio educado, a tendência e o gosto pela cooperação. Igualmente grata será a presença da Sra. Jacobina Lacombe, a dedicada companheira, que partilha convosco a construção do lar exemplar, onde florescem as gerações dos vossos descendentes.
São vários os caminhos que conduzem à Academia, onde notou-o Afrânio Peixoto ao saudar Oswaldo Cruz, se “abrem sucessões à inteligência”. Nada mais que isso: não exige o nosso Grêmio outro título que não o da inteligência. Daí encontrarmos, nos fastos dos nossos anais, romancistas, estadistas, sábios, contistas, jornalistas, prelados, médicos, historiadores, militares, juristas e poetas. Não dissera Renan que, afinal, tudo se torna Literatura quando feito com talento?
Bastaria atentardes na Cadeira que ides ocupar, para perceberdes quão diversos os caminhos da Academia. Vosso Patrono é Joaquim Caetano da Silva, insigne pesquisador e historiador, cujo perfil e trabalhos acabais de ressaltar com justiça e nitidez. Fundador da vossa Cadeira foi Alcindo Guanabara, jornalista lendário, parlamentar aguerrido, confesso agnóstico e sucedido pelo eminente prelado D. Silvério Gomes Pimenta. Circunstância esta que nos mostra como dentro dos critérios desta Casa, pode um homem de fé tomar o lugar de um incréu. Nem é de esquecer a sutileza com que espírito do porte e das convicções de Carlos de Laet, ao dar as boas-vindas ao arcebispo de Mariana, sublinhou o fato que, de certo modo, agora se repete com a vossa eleição para substituir Silva Mello, cuja vida, ideias e trabalhos estão fundamente marcados pela longa e renitente incredulidade e a quem coube tomar a vaga de Gustavo Barroso, também historiador, polígrafo, e sob cuja figura imponente, aparentemente marcial, escondia-se um coração romântico. São notórios os vossos sentimentos religiosos, pois desde cedo vos tomastes um militante da Igreja a que pertencemos e da qual participais como integrante ilustre do laicato. Mas, quer pela compreensão, quer pelas tradições da Academia, bem sei que antes vos alegrou do que constrangeu o vosso perfeito elogio de Silva Mello, o íntegro, corajoso e inesquecível companheiro que substituís, e a propósito de quem poderíeis lembrar a excitada curiosidade pública por ocasião da investidura de D. Silvério, a quem cabia falar de Alcindo Guanabara.
Estão aflitos por ver como se há de haver um bispo – disse o prelado – tendo de homenagear um literato de talento superior, mas reputado totalmente profano e inteiramente indiferente ao ideal religioso. Folgo, porém, de declarar que essa dificuldade que despertava os curiosos me ocasionou verdadeiras consolações e contentamento, porque estudando a vida e escritos de meu antecessor, me convenci que Alcindo Guanabara não foi um ateu, desconhecedor, quando não desprezador, do Supremo Senhor do Universo, nem um desses espíritos que se dizem emancipados; foi, sim, um varão deveras crente...
Quem nos dirá não tenha sido Silva Mello também um crente?
Assim, na linhagem de vossa Cadeira, ao tempo em que encontrais um santo vos deparais com dois ateus ilustres e com outros tantos renomados historiadores.
Acredito, aliás, que, antes de tudo, foi a História que vos trouxe à Academia. Clio vos iluminou os passos. O que significa que vos sentis à vontade tendo como um dos vossos antecessores Gustavo Barroso, e como patrono Joaquim Caetano da Silva, a quem deve tanto o Brasil, e de quem disse Laet ser “um literato, um poliglota, um diplomata e, mais que tudo, um patriota”. Em verdade é ele o precursor da conquista do Amapá. Vivendo em Paris, aí soubera, nos idos de 1858, haver Napoleão III designado Alfred de Saint-Quentin para tratar da questão do Oiapoque, e logo se apressara em escrever a D. Pedro II, pedindo-lhe, “pelo amor do Brasil”, que não admitisse “negociação alguma enquanto não aparecer o trabalho terminante que estou redigindo”. Era o prenúncio dos dois volumes sobre L’Oyapoc et l’Amazone, que antecederam os estudos definitos e decisivos do Barão do Rio Branco.
Donde vos adveio a tendência e o amor pelas cousas da História é possível que nos reveleis algum dia. Mas, enquanto não vos dispondes a essa confissão, permiti que desvende os vossos passos pela vida afora. Tivestes a rara ventura de nascer e crescer dentro de um colégio, o benemérito Curso Jacobina, de tal modo preso à vossa formação que se torna impossível falar de vós sem lembrar o notável Educandário, ainda hoje orgulho da Educação Nacional. Foi ele, nos primórdios, o ramo nacional, se não o desdobramento do Colégio Progresso, que a admiração de Rui Barbosa imortalizaria. Fundou-a D. Isabel Jacobina Lacombe, vossa Mãe, que se diria preparada, estimulada, e orientada pelo pai, Antônio d’Araújo Ferreira Jacobina, para a nobre tarefa de mestra, que ela foi, e excepcional por quase toda a longa vida, até passar às mãos da filha, D. Laura Jacobina, também ilustre educadora, a missão de continuar-lhe a obra meritória. Obra, por sinal, da qual é inseparável o nome de Francisca Jacobina Lacombe, cuja incansável colaboração terá sido fundamental para o bom êxito da instituição, que marcou com “um exemplo de energia e de espírito de justiça”.
Vale dizer que numa época em que as crianças começavam a frequentar a escola somente depois dos seis ou sete anos, impedidas de opinarem em meio às conversas de gente grande, obrigadas ao silêncio durante as refeições, e confinadas no convívio das amas, afetivas, mas geralmente ignorantes, bem cedo conhecestes e participastes do bulício dos alegres e travessos bandos infantis. Como irmão dos mais novos tivestes regalias, cuidados, carinhos. Não terão nascido aí, imperceptivelmente, traços essenciais à vossa personalidade, e entre os quais é fácil assinalar o culto da amizade, o gosto pelos trabalhos em colaboração, a inclinação pelas associações, a naturalidade no dar sem pedir? Precocemente, vos habituastes às relações múltiplas, variadas, e que, certamente, vos fizeram ver e sentir o caleidoscópio do mundo. Madrugastes, pois, para os contatos humanos, e toda a sorte de reações, que aqueles provocam no dealbar da existência. Não vos feriu, porém, nenhum ressentimento, nem fostes assaltado por qualquer complexo. O que vos permite fazer da franqueza uma flor sem espinhos, e da amizade o melhor quinhão da vida, sendo a vossa infatigável dedicação o fértil terreno no qual crescem a admiração, o apreço, e a estima dos que elegestes e distinguis com a vossa amizade.
A saúde não vos permitiu, porém, concluir o curso no meio que era ao mesmo tempo o vosso lar e a vossa escola. Tivestes de partir para Belo Horizonte, reputada na época infalível sanatório. E, durante o ano que aí passastes, não apenas desfrutastes, encantado, dos lazeres e dos prazeres da generosa biblioteca do cunhado, que vos hospedou, Roberto de Almeida Cunha, mas também vos matriculastes no Colégio Arnaldo, cujo aluno mais famoso, dentre os que então o frequentavam terá sido João Guimarães Rosa. Dele, ao tempo conhecido como João Guimarães, tal como se assinava, vos tornastes amigo. E não mais esquecereis o devorador de livros, que rapidamente os renovava mediante um sistema de tômbola, providencial invenção com que compensava a falta de recursos, e da qual ainda conservais a lembrança do volume de Júlio Verne, Em frente da Bandeira. A imaginação supria a pobreza. E graças a ela o modesto estudante familiarizava-se com os conhecimentos que o preparariam para se tornar o autor imortal de obras básicas da nossa Literatura.
Felizmente sarastes depressa, retornando à amorável cidade do Rio de Janeiro, tão bela, tão acolhedora, tão suave no azul dos seus dias, tão nítida no recorte da paisagem dos seus morros. Como era tranquila e perfumada a velha capital, ainda orgulhosa das inovações do Prefeito Passos.
Mais alguns poucos anos e iríeis encontrar o rumo da vossa vocação de bacharel como toda a gente. Ao falar das estradas que percorrestes até as cumeadas da Academia, impossível omitir a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Cursaste-a em momento de relevante significação para a evolução nacional, indelevelmente marcado pelo sopro de renovação, que tanto encontramos na Semana de Arte Moderna quanto na Revolução de 1930. Tudo a exprimir insatisfação, e, portanto ânsia de mudar. Não existia ainda a perspectiva, que hoje nos permite avaliar o sentido e as consequências daqueles movimentos, cujas correntes mais profundas e vigorosas emergem então de Oliveira Viana, Paulo Prado, Oswald de Andrade, Azevedo Amaral, Gilberto Freyre, Plínio Salgado e tantos outros. Contudo, já se divisavam as claridades da madrugada. E cedo fostes tocado pelo fervor religioso, que vos fez participar da Ação Universitária Católica, e frequentar o Centro D. Vital, convivendo com Jackson de Figueiredo e com o Padre Leonel França àquele tempo as duas mais fortes figuras do Catolicismo brasileiro.
Não ficastes, porém, indene à aspiração de participar em outros setores para que o Brasil, abandonando velhos rumos, dos quais dir-se-ia desertado o ideal dos fundadores da República, encontrasse o espírito da renovação. Reuniste-vos a outros colegas. E, embora possível, como ocorre à mocidade, que se conduz pelos impulsos generosos do coração, não tivésseis ideia exatamente precisa dos objetivos a alcançar, o essencial era a seriedade da contribuição que todos almejavam dar ao País.
Permiti que recorde, em que pese o risco de imperdoáveis esquecimentos, haverem figurado nessa coorte nomes como os de San Tiago Dantas, Antônio Gallotti, Elmano Cruz, Aroldo de Azevedo, Almir de Andrade, Otávio de Faria, Hélio Viana, Vicente Chremont de Miranda, Henrique de La Rocque, Deocleciano Martins de Oliveira, Antônio Balbino, Clóvis Paulo Rocha, Gilson Amado, Thiers Martins Moreira, Plínio Doyle e Vinicius de Moraes. Certamente, constitui raro privilégio participar de plêiade tão ilustre. Mas, o eloquente testemunho dos ideais de progresso e renovação que acalentastes está no Centro Acadêmico Jurídico Universitário, conhecido pela sigla CAJU, e, mais tarde, no Centro de Estudos Jurídicos e Sociais, de cuja Revista fostes o principal redator ao lado de San Tiago Dantas, Otávio de Faria e Hélio Viana.
Nessa qualidade promovestes o rumoroso Inquérito de Sociologia Brasileira, iniciativa de relevo nos estudos desse gênero. Era “a franja luminosa do Brasil de amanhã”, escreveu Azevedo Amaral, a quem também se deve este conceito sobre o vosso trabalho: “a mocidade ainda na idade de aprender começa a dar lições aos que deveriam ter sido seus mestres.” De fato, pela seriedade e amplitude com que o elaboraram representou esse Inquérito de Sociologia página importante para, justamente na ocasião em que a Revolução de 1930 sacudiu o Brasil, se pôr à mostra a realidade nacional, cujo conhecimento era inseparável de uma adequada e frutuosa reconstrução das instituições nacionais. A Revolução representara uma lufada de ar puro permitindo o melhor conhecimento do País. “O sociólogo de amanhã” – escreveu então Vicente Chermont de Miranda, presidente do vosso Centro de Estudos -
[...] que se impuser o duro encargo de examinar o papel da revolução de Outubro na história pátria – perscrutando-lhe as origens, pesquisando-lhe as causas, estudando-lhe os homens, balanceando-lhe os resultados – terá, certamente, mais críticas a fazer, erros a apontar, falhas a salientar, do que elogios a tecer e méritos a revelar. Entre estes últimos, porém, não se lhe pode negar o de haver posto a nu a realidade nacional, por tão largo tempo esquecida, encoberta e mascarada.
Era a bendita curiosidade dos que começam a ver a vida. Depois, o que se fez dessa realidade não cabe dizer aqui. Fica, porém, consignado o idealismo, a inteligência, a Cultura, o civismo com que vos associastes à vossa geração, numa posição de liderança, prova do apreço com que vos distinguiam colegas que tanto se fariam presentes na vida brasileira.
Mas, como inerente às próprias contingências da vida, a conclusão do curso vos dispersou. Não na afeição, bem o sei. Mas, na diversidade dos trabalhos e das aspirações. Antes de vós, aqui chegou o extraordinário romancista Otávio de Faria, o Balzac da nossa burguesia. San Tiago Dantas e Thiers Moreira, como tão bem o disse Francisco de Assis Barbosa, certamente também seriam dos nossos, não fora a dolorosa brevidade com que de nós se separaram, e aqui estariam participando das alegrias por vos acolhermos.
Chegastes sem pressa. Durante largo tempo resististes ao convite de amigos que vos ambicionavam a companhia, seguros de que, pela benemerência cultural do vosso trabalho, e pela alta categoria das obras do historiador, era aqui o vosso lugar. Insististes, porém, em permanecer por mais dias na Cadeira 41. Ao receber Elmano Cardim, que como vós também se demorara em aceitar a ideia da candidatura, disse Levi Carneiro que o deveriam designar para redigir as advertências contra a sofreguidão a incluirem-se no “manual do perfeito candidato”. Já agora acredito que ele não as redigirá sozinho, pois sereis prestante colaborador.
O tempo, indispensável aliado dos que se encaminham para a investigação histórica, permitiu, porém, que alcançásseis as láureas acadêmicas como autor de obra, que, se não podemos dizer concluída, visto que jamais se completam os trabalhos da inteligência, representa bagagem das mais sólidas e prestimosas. Em boa hora, não vos quisestes assinalar pela vastidão de trabalhos desdobrados em milhares de páginas, que frequentemente perdem em substância o que adquirem em extensão. Preferistes vos distinguir pelo rigor das pesquisas, a exatidão dos conceitos, a segurança das observações e conclusões. Assim vos incluís na linhagem dos nossos grandes historiadores dos quais entre os já desaparecidos, excetuado o Visconde de Porto Seguro, nenhum logrou compor visão total da nossa História. Capistrano de Abreu, possivelmente o mais agudo dos investigadores do nosso passado, legou-nos uma obra esparsa e dispersa. Mas, que nitidez nas teses e hipóteses formuladas, que vigor nas afirmações, que precisão nos comentários. Capistrano viu a nossa História com olhos de lince. E isso lhe permitiu descobrir o que outros não haviam notado antes dele. Ele não nos diz apenas como os fatos aconteceram, mas por que aconteceram. Igualmente parco no produzir foi Rodolfo Garcia, que tinha poderosa a inteligência do historiador a quem devemos haver prosseguido e ampliado, de maneira primorosa, as anotações a Varnhagem iniciadas por Capistrano. Também não foi abundante o Barão do Rio Branco. Mas, que riqueza de informações nas suas Efemérides, onde encontramos as mais preciosas gemas recolhidas pelo paciente e incansável pesquisador que conheceu o nosso passado em minúcias verdadeiramente estarrecedoras. Dir-se-ia não haver restado nenhuma piçarra na bateia do garimpeiro, que somente traz aos nossos olhos as pedras mais puras. De quantos outros não vos poderia falar, e nos quais o valor da obra está longe de se dever medir pela extensão? Vale Cabral, Pizarro, Oliveira Lima, João Francisco Lisboa, Melo Moraes, Felício dos Santos, Calógeras, José Higino, João Ribeiro são bons exemplos de autores justamente renomados, mas cuja produção foi limitada pela profundidade e integridade dos trabalhos.
É gente que andou devagar, para andar bem. E esse, certamente, é o vosso caso. Não que sejam escassos os vossos trabalhos. Longe disso, pois são numerosos os ensaios que nos proporcionastes graças às vossas exaustivas pesquisas. Ocorre, entretanto, que enquanto uns preferem deter-se em campo limitado, que examinam de lente em punho, e do qual acabam por saber todos os pormenores, causas e consequências, como é o vosso caso –, outros sacrificam a exatidão da miniatura à amplidão do painel, que nem sempre suporta análise acurada. Preferistes as sínteses elaboradas em torno de um episódio, de uma personalidade, ou de um debate. Sínteses que revelam o espírito adestrado para o mar alto da História. De fato, somente um investigador para o qual não tivesse segredos o nosso passado escrevia Um Passeio pela História do Brasil, súmula perfeita de nossas cousas e nossos homens. Passeio ameno, e através do qual nos conduzis, com encantamento de que não se aparta a segurança dos conhecimentos, pelos meandros da História, que aprendemos sem fadiga, quase insensivelmente. Aliás, essas caminhadas, aparentemente despreocupadas se vos tornaram hábito, que repetistes ao escrever o pequeno e saboroso volume intitulado Brasil, para o Instituto Pan-Americano de Geografia e História. É síntese admirável para os não iniciados, mas por isso mesmo peculiar a um competente veterano dos estudos históricos. Que dizer dos vossos trabalhos sobre a formação brasileira, a cultura luso-brasileira, ou a questão dos bispos? São eles ensaios relevantes, fruto de trabalho amadurecido, e no qual as ideias se apresentam decantadas pela meditação. Sois o oposto do improvisador. Não vos corre nas mãos a pena do historiador, pois os vossos trabalhos são daqueles que reclamam tempo para as longas pesquisas, e tranquilidade para as análises cuidadosas. Por isso mesmo podeis estar certo de que eles vencerão o tempo, projetando o vosso nome e os vossos trabalhos para a admiração da posteridade. Não desejo antecipar-me ao seu julgamento. Mas, não tenho dúvida sobre o interesse com que continuarão a ser lidas as páginas que dedicastes a Paulo Barbosa e a Fundação de Petrópolis ou à extraordinária figura de Monsenhor Pizarro, e nas quais se sente o sopro de um espírito dominado pelo senso do equilíbrio e o sentimento de justiça.
Não sei das vossas preferências entre os trabalhos que tão concienciosamente realizastes. Contudo, onde creio que deixastes mais funda a marca do erudito que sois em relação à nossa História foi na recente Introdução ao Estudo da História do Brasil. A modéstia do título certamente não dará aos visitantes de livrarias noção exata do que representa o contexto. Na realidade é o resultado de uma vida de trabalho organizado, e polido pela experiência do mestre de muitas gerações. Aí, em corpo inteiro, encontramos o professor erudito, abrindo e preparando o caminho para quantos pretendem percorrer os campos da nossa História. Se apontais as dificuldades da matéria, que reclama virtudes impensadas pelos que lhe são estranhos, também colocais ao alcance do público o conhecimento das fontes, dos documentos, dos arquivos nacionais e estrangeiros, dos Anais, dos Museus, das revistas, dos historiadores, tudo a representar inestimável manancial para quantos pretendam pesquisar, estudar e conhecer o nosso passado. No particular não sei de livro mais prestimoso e mais completo. Com a mão de mestre traçastes amplo panorama da historiografia brasileira, atribuindo a cada qual o seu valor próprio, e colocando-o na posição que deve ter graças à generalização ou a especialização. Assim, uma visão que se estende desde Gândavo até Hélio Viana, proporcionastes aos estudiosos o perfeito conhecimento das fontes a que devem recorrer de acordo com os objetivos a que se proponham. Não poderíeis, portanto, contribuir com trabalho de maior valia do que este com que acabais de enriquecer a bibliografia da História, já tão presente nesta Casa pelos trabalhos do nosso eminente Confrade José Honório Rodrigues. Em verdade, sem favor e sem lisonja, fizestes obra útil tanto aos doutos quanto aos principiantes, uns e outros podendo encontrar nela à mão, facilmente, a carta de marcar para singrar os mares da História. Ilustre crítico, o Sr. Antonio Carlos Villaça, assim se refere a esse vosso trabalho:
O que logo nos subjuga neste livro, editado pela Coleção Brasiliana, é a sua opulência, o seu aparato de erudição. Note-se a lista de livros de memórias publicados no Brasil. Ou, por exemplo, as biografias e coleções biográficas. Trata-se de uma fonte de informações indispensável. Museus, bibliotecas, arquivos, genealogia, tudo ele compulsou e nos traz sob a forma de iniciação, com roteiro, itinerário da História do Brasil. Livro fundamental, livro ameno e envolvente. Nada de crespo, nem fastidioso... Lacombe sabe a sua história, que é a nossa História, e sabe também escrevê-la. Porque tem o dom do escritor, que é dom da síntese.
Mas, se por vários títulos conquistastes a Cadeira em que hoje vos empossais, e de alguns vos falei, dizendo-vos da nossa admiração, ainda há um a lembrar com especial louvor. Já estais a adivinhar que me refiro ao de ruísta, certamente muito caro à Academia, orgulhosa do seu fundador e presidente, patrono da nossa Cultura. Sois um cardeal, senão o Papa, na fraternidade dos devotos de Rui Barbosa.
Dados os vínculos de parentesco, e possivelmente mais que isso, a funda amizade que uniu Rui Barbosa ao vosso avô Antônio de Araújo Ferreira Jacobina, amigo das horas amargas e dos momentos perigosos, ainda na infância começastes a ouvir falar do grande homem e a frequentar-lhe o lar, que D. Maria Augusta, “flor de uma civilização, resplandecendo no seu encanto, na sua cortesia, na sua elegância, na sua formosura”, conforme a evocou João Mangabeira, “perfumava com a sua bondade e a sua graça”.
Não podia, entretanto, a criança, que corria entre as aléas de roseiras cultivadas pelo glorioso e acolhedor jardineiro, imaginar que viria a ser o eminente diretor da casa que pelo tempo a fora lembra e cultua a memória do maior dos brasileiros.
Aí vos conheci, estabelecendo amizade que os anos apenas tornam mais antiga já que não a podem fazer maior. Foi pelos idos de 1939 que, de Secretário do Conselho Nacional de Educação, função que desempenhastes a partir de 1931, passastes a diretor da “Casa de Rui Barbosa”, iniciando gestão de eficiência excepcional, e logo assinalada pela decisão do Ministro Gustavo Capanema de editar as Obras Completas de Rui Barbosa, iniciativa cultural sem paralelo na vida brasileira. A ela vos tendes dedicado por mais de três décadas, e com tal dedicação e competência que a vossa existência acabou por se confundir com a daquelas Obras.
Não necessito dizer o que representa para a Cultura nacional essa publicação, que se estenderá por 168 volumes, e já ultrapassou o centésimo. O certo, porém, é que somente graças a ela teremos a visão total da imensa produção de Rui Barbosa como jurista, orador, jornalista, e parlamentar. Nem há outra maneira de difundir e perpetuar o que produziram espíritos generosos e privilegiados como o dele. Tanto mais que, advertiu Batista Pereira, em 1929, “o maior da sua obra se acha disperso em escritos ditados pelas circunstâncias. Reunir, concatenar, seriar, cronologicamente, livros, folhetos, artigos, notas, discursos, manifestos, entrevistas, telegramas e cartas”, seria portanto tarefa primacial, “indispensável como um levantamento topográfico antes da construção de uma estrada”.
Representam elas não somente o mais alto e duradouro monumento levantado à glória de Rui Barbosa, mas também extraordinário repositório de conhecimentos enriquecidos pelos estudos, notas, e observações acrescidos a cada volume. E, assim como o Padre Antônio Vieira encontrou no seu modesto irmão José Soares quem fizesse chegar até nós a eloquência do incomparável jesuíta, Rui Barbosa teria em vós o competente coordenador da sua produção ciclópica. Não exagero ao insistir na importância e benemerência do trabalho que realizastes. Que seria das obras de Voltaire, o mais fecundo dos escritores no século XVIII, sem a dedicação de Beaumarchais, que levantou em Kehl, no Reno, uma editora exclusivamente voltada para a publicação do acervo voltaireano? Também a ação parlamentar de Cavour permaneceria desconhecida das novas gerações se a Itália não a publicasse em compactos e numerosos volumes que lhe imortalizam a bravura e a oratória.
A propósito da leviana opinião de um comentarista surpreso ante a demora das publicações, que julgava apenas reclamarem se “tirar os livros da estante e mandar para a tipografia”, lembrastes, pouco após aparecerem os primeiros volumes, que “ninguém pode imaginar o que há de inédito ou de esparso na produção de Rui”. Sabem-no, realmente, quantos acompanham, ao longo de mais de três décadas, a diligência e a competência com que lograstes transpor obstáculos de toda a ordem, e que vão desde a busca de inéditos até aos aspectos materiais das edições, hoje na sua maior parte esgotadas, num testemunho do interesse com que o País recebeu iniciativa não “somente de grandes proporções, mas ainda de significação transcendental”.
Não basta, porém, reunir, reproduzir e divulgar. O fundamental, nas edições integrais de autores famosos, são as anotações e críticas que lhes multiplicam a valia, tornando-as acessíveis ao conhecimento e à compreensão do público. Precisarei encarecer o que representa para Cervantes a magistral anotação de Dom Quixote pelo douto Rodrigues Marin? De Balzac, tornou-se Marcel Bouteron o mais prestimoso dos anotadores da Comédia Humana, que adquire novas belezas e claridades quando tocada pelas observações do erudito anotador. Stendhal encontraria em Henri Martineau, cujo trabalho seria continuado por Victor del Litto, o mais lúcido dos seus comentadores, permitindo-nos desvendar novos aspectos, novas faces na obra admirável do romancista da Cartucha de Parma. A vós cabe a honra de haver sido o idealizador e realizador das Obras Completas de Rui Barbosa. Tarefa que efetuastes com invulgar capacidade, reunindo e ordenando uma das mais amplas e variadas produções de que há memória. Desde a identificação de textos até a revisão de provas, de tudo participastes. Fostes não apenas o diretor da Instituição, mas o líder, o comandante de uma vasta e admirável ação intelectual.
Sois eminentemente gregário (Aristóteles talvez dissesse político), e como tal convocastes numerosos conhecedores de Rui Barbosa, para tarefa ingente e benemérita. Procurastes selecionar os melhores, circunstância essencial para a alta qualidade das publicações realizadas. Da própria Academia em que ora vos integrais viestes buscar Levi Carneiro, Hermes Lima, Austregésilo de Athayde, Pedro Calmon, Cândido Mota. Mas, não apenas estes, pois, no esforço de dar ao Brasil a medida exata possível da personalidade e da obra de Rui Barbosa, reunistes juristas, jornalistas, historiadores, filólogos, financistas, educadores, internacionalistas, homens de letras, e políticos, que, sob a vossa feliz orientação, carrearam pedras valiosas para o grandioso monumento. Mas além de chamar os apóstolos do ruísmo, destes contribuição pessoal das mais importantes, prefaciando e anotando vários volumes, nos quais imprimistes a marca do vosso profundo e minucioso conhecimento. Estão nesse caso os prefácios que escrevestes para os volumes relativos à Constituição de 1891, e ao Parecer sobre a Reforma do Ensino Primário, e que vos permitiram valiosos estudos sobre a ação parlamentar de Rui Barbosa, na Monarquia e na República. Do mesmo modo que enriquecestes com oportunas observações críticas o volume da sua produção poética, fruto de uma época em que os estudantes raramente logravam fugir da sedução das musas.
Não vos ativestes, porém, a essa tarefa, no campo dos estudos ruianos. Brindaste-nos com trabalhos outros dentre os quais ressaltarei, pela sua alta significação, Mocidade e Exílio de Rui Barbosa, Pensamento Vivo de Rui Barbosa, Formação Literária de Rui Barbosa, Genealogia dos Barbosa de Oliveira e Rio Branco e Rui Barbosa. Em cada um deles esgotastes proficientemente o assunto, ao qual emprestais não apenas um completo conhecimento, mas também penetrante espírito de crítica. Nem há excesso em dizer-se ser impossível estudar Rui Barbosa sem recorrer aos vossos trabalhos.
Mais que isso, quando se fez necessário saístes a campo para repor a verdade na vida gloriosa de Rui Barbosa. Passo no qual, como se quisesse provar o bom propósito de conosco colaborar na realização dos ideais dos fundadores, bem seguistes o exemplo de um dos nossos maiores, o Conselheiro Lafaiete, que a si tomou rebater críticas a Machado de Assis. Era, aliás, o vosso dever. Melhor diria o nosso dever, e dele não desertastes, pois tão límpido quanto a vossa inteligência é o vosso caráter.
Ao iniciar estas breves palavras em nome dos companheiros disse-vos ser suave e ameno o anjo que nos acolhe à porta desta Casa. Espero que não leveis demasiadamente a sério o devaneio, pois correríamos o risco de repetir-se episódio contado por Jean Cocteau e lembrado por Maurois na posse daquele na Academia Francesa. Os pais de um seu sobrinho anunciaram-lhe que um anjo acabara de trazer-lhe um irmão: “Queres ver teu irmão?”, perguntou-lhe o pai. Ao que logo redargüiu o vivaz e curioso garoto: “Não, eu quero ver o anjo.” Infelizmente, não há qualquer anjo para franquear a porta da Academia. Esta quem vos abre são os vossos confrades, que o fazem de coração alegre, pedindo-vos que vos sintais em vossa casa, para prosseguir na busca do ideal comum de servir à Pátria, servindo à Cultura.
2/7/1974