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Álvaro Moreyra

DO OUTONO E DO SILÊNCIO

Ah! como eu sinto o Outono

nesses crepúsculos dispersos,

de solidão e de abandono...

nessas nuvens longínquas, agoureiras,

que têm a cor que um dia houve em meus versos

e nas tuas olheiras...

 

Tomba uma sombra roxa sobre a Terra...

A mesma nuança, em torno, tudo encerra

nuns tons fanados de ametista...

Paisagem morta, evocativa, doce...

como se o Ocaso fosse

um pintor simbolista...

 

Caem violetas...

 

Canta uma voz, distante...

 

E a luz vai a fugir, esfacelando

em trêmulas silhuetas

os troncos da alameda agonizante...

 

O Outono é uma elegia

que as folhas plangem, pelo vento, em bando...

E o Outono me endolora e anestesia

com a saudade remota do silêncio...

Silêncio vesperal das ressonâncias

esquecidas

que o Ângelus lento deixa sempre no ar...

Silêncio

irmão das covas, das ermidas...

incenso das distâncias...

onde a memória fica a ouvir perdidas

palavras que morreram sem falar...

 

E do silêncio em névoas esgarçado,

a cuja extrema sugestão me abrigo,

tu te evolas, dolente,

tal uma hora feliz de tempo alado

que às vezes brota de repente

de um velho aroma ou de acorde antigo...

                                                             (Legenda da luz e da vida, 1911.)

PEQUENAS CONSTATAÇÕES

Os maus exemplos, dos quais tanto se queixam as pessoas sérias, não vêm da gente sem juízo da gente desequilibrada, como lhe chamam. Não. Os maus exemplos são espalhados precisamente pelas pessoas sérias. O que elas dizem, o que elas fazem, a gravidade das suas atitudes, a veemência das suas opiniões, tudo que constitui o modo e a razão de existir dos “homens de caráter”, das “senhoras impolutas’, tudo isso desperta a mania da contradição, muito espalhada entre os mortais. Se há vícios neste mundo, a culpa é dos que se manifestam contra eles. Se não escrevessem nos jornais coisas alarmantes sobre a cocaína, se a polícia não perseguisse os vendedores da poudre folle, pensam que a cidade estaria cheia, tal qual está, de cocainômanos?... Não estava. Eu, por exemplo, até aos vinte anos, não fumei. Mas, num inverno, adoeci da garganta e o médico a quem fui procurar, proibiu-me o fumo... Desandei a fumar, desde aí. E não tenho motivos de queixa... Também não me arrependo de pensar ao invés de numerosos moralistas... A moral comum parece-se muito com os provérbios... Ai de quem se fia nos provérbios...

A dor é útil! assegurou-me, há dias, um filósofo, que foi dentista e enriqueceu...

As mulheres feias acham sempre as modas exageradas...

O meu jardineiro teima em chamar os lírios de “copos-de-leite”. Tentei, várias vezes, revelar-lhe, incutir-lhe a verdade, a pequena verdade. Ele respondeu que toda a gente diz que é “copo-de-leite” o nome daquela flor. Aí está a razão por que não há lírios neste país...

Não convém contrariar ninguém...

Artista! Esta palavra é a que mais nobremente qualifica um homem. Artista! E logo todas as honras lhe são concedidas, e logo se cria em torno dele um ambiente de admiração e respeito. Entretanto, num certo meio, artista é sinônimo aproximado de inútil, quando não é de coisa pior... Ora, isso me entristece um pouco. Não pelos artistas. Mas, pelos que lhes julgam os trabalhos com uma espécie de superioridade sardônica, que é, em silêncio, a forma viva e visível de um relincho...

Os cretinos são insuportáveis às segundas-feiras...

A verdadeira capital do Brasil fica entre a Rua São José e a Rua do Ouvidor... E ali, à sombra dos palácios e das árvores, o agitado mostruário da população carioca. A política, a literatura; a elegância, a inteligência, a tolice, a riqueza, a miséria e outros substantivos mais ou menos femininos passam sobre aquelas pedras miúdas das três quadras fatais, todos os dias... Passam... Só ficam os guardas-civis ensinando a andar na mão...

Confia em ti. Mas, antes, trata de saber se podes. Se não puderes e confiares, ficas aborrecido para o resto da existência...

Só as pessoas que não gostam de nós sabem, na verdade, como somos. As outras andam sempre a descobrir defeitos que ainda não temos...

A felicidade assemelha-se a um bilhete de loteria, antes de andar a roda...

Quando uma mulher que tu conheces há muito tempo, sem outras intimidades, de repente, um dia, conversando contigo, endireita a tua gravata podes fazer dela o que quiseres...

Ainda se discute a propósito da utilidade dos críticos. Os escritores louvados são a favor. Os outros são contra. O público, felizmente, não se interessa pela discussão.

Parece-me que os críticos não deixam de ser úteis. A alguns, eu, por exemplo, devo a ampliação dos meus conhecimentos literários. Se eles não houvessem constatado a profunda influência exercida sobre mim por certos autores, com certeza eu nunca leria esses autores...

Já Jesus Cristo dizia, e a sociedade republicana provou: somos todos iguais. Agora, principalmente depois da guerra, com a integral democracia realizada, não há mais diferenças. A sem-cerimônia passou por cima da multidão uma plaina afiada e rápida... Somos todos semelhantes... Isto, por displicência sentimental, não deixa de ser bonito. Mas, para os encontros da vida quotidiana, é terrível.

É costume afirmar-se que o Brasil tem poetas demais. E é um mau costume. Os poetas nunca são demais. Eles descansam dos aturdimentos quotidianos, dão a ingenuidade e dão o sorriso, tornando melhores quem os encontra, numa hora de fadiga, num instante de pesar. Irmãos daqueles que, outrora, sob o sol novo, na chama das alvoradas e no fumo dos ocasos, falavam de amor e de sabedoria, os poeta são, dentro do tempo, as vozes do silêncio, vozes que sobem, eternas, ensinando aos homens desencantados um desejo mais perfeito, uma bondade mais universal...

No outro tempo, quando os rapazes não davam mesmo para nada, os pais, que haviam tentado fazer deles homens notáveis, desesperavam-se diante de tanta incompreensão e resolviam mandá-los para o comércio.

Hoje, o jornalismo absorve todos esses rapazes. Lucrou o comércio, que se encheu de gente atilada. Os negócios, de uns anos para cá, segundo ouvi dizer, exigem inteligência e noção das coisas...

O bem supremo é o bom humor.. Demócrito tinha razão. Mas no tempo dele, o bom humor era fácil. O mundo andava no encanto de uma raça contente. A vida bela sorria em tudo, desde o céu, que não punha terrores nas ideias, até as fontes, onde a imagem de Narciso refletia. Hoje, a água das fontes é triste. Narciso morreu... E para além das nuvens, está o Deus da nossa infância, o Deus que castiga...

Uma das mais teimosas preocupações da Humanidade moderna é a fotografia em jornais e revistas: o retrato, espalhado, visto por muita gente, no bonde, nos cafés, dentro de casa... Mulheres, homens, velhos e crianças, todos querem aparecer... Há quem se mate para realizar, assim, o desejo da vida inteira... Inúmeras pessoas só casam para isso... Agora mesmo, acabo de ver, numa folha diária, o cliché de um cavalheiro, ferido pela amante, com cinco tiros ferozes. Deitado na maca da Assistência, ele já tem um dos olhos fechados pela morte; mas, com o outro, ainda vagamente aberto fixa, enternecido, um ponto no espaço, posando para o fotógrafo...

Pensar não é, decerto, um hábito dos nossos poetas. Se aquele príncipe da comédia de Shakespeare ressuscitasse no Brasil, ficaria contente por ter voltado à vida, ele que, na sua biblioteca, queria apenas livros bem encadernados e falando de amor... Mandaria fazer as encadernações na Europa, e os livros, achá-los-ia aos milhares aqui, sob o Cruzeiro do Sul... Raro será o livro brasileiro que não fale de amor...

Pierre Nozière, que é um disfarce amável de Anatole France, conta de certa criada, vinda para o seu serviço, do fundo ingênuo da Bretanha, com o mar nos olhos, um voo de gaivota preso nos cabelos e a puríssima simplicidade na alma. Como a rapariga nunca saíra, Pierre Nozière deu-lhe férias, um dia: que ela fosse visitar Paris... E ela foi. Voltou, à tarde, maravilhada. A grande capital não lhe parecera feia, mas tinha visto, numa quitanda, uns rabanetes sublimes...

Ignoro se essa criada de Pierre Nozière casou. Mas, sei que deixou uma enorme descendência...

Para as mulheres, pentear é um verbo importante, tão importante que o substantivo vindo dele faz parte das vitórias femininas... O penteado, na ofensiva da paixão, ficou sendo a grande arma irresistível. É o penteado que dá à fisionomia aquele não sei quê logo transformado pelos homens em sentimento, nas suas almas sempre abertas... A imagem que os homens guardam das mulheres é a imagem de um penteado...

O que aborrecia, nos versos das nossas poetisas de antes da guerra, era a masculinização dos seus sentimentos, a forma rija de que os vestiam, impecáveis... Versos de fraque... Agora, nas musas novas reveladas e nas que vão aparecendo, as mulheres andam bem presentes, e dizem da vida com aquela sabedoria ingênua e a mesma graça deliciosa que têm quando não escrevem.

Toda felicidade que faz falar é sempre vinda de uma grande tolice...

O meu maior prazer é mudar de opiniões. Mudando-as, evito tê-las. E assim consigo a maneira mais alegre de não envelhecer...

Eu gosto de adiar. Deixo sempre para amanhã o que posso fazer hoje. Enquanto não faço, ensaio. Enquanto ensaio, divirto os que estão ao meu lado. O grande público que espere...

                                                                         (A cidade mulher, 1923.)

 

D. PEDRO I

Aquele homem irrequieto, impulsivo, que, ao receber, na colina do Ipiranga, das mãos do sargento-mor de milícias Antônio Ramos Cordeiro e do oficial da secretaria do Supremo Tribunal Militar, Paulo Emílio Bregaro, as cartas escritas pela princesa Dona Leopoldina e pelo ministro José Bonifácio, com os quatro decretos, malcriados e célebres, das Cortes de Lisboa, arrancou da espada, num gesto largo e num grande grito; cortando a ligação do Reino de Portugal, Brasil e Algarves; aquele homem de alta estirpe, nascido em Portugal, educado por mestres e exemplos portugueses, cioso das nobres origens, aristocrata dos que mais o fossem, aparece, entretanto, aos olhos de quem lhe segue os passos durante a vida, como o tipo completo, integral, do brasileiro.

Nós somos assim como ele foi, nas suas qualidades e nos seus defeitos. O primeiro imperador fixou o modelo da raça. De uma atividade desenfreada, pouco difícil de transformar-se na mais deliciosa e prolongada inércia; ao mesmo tempo esperto e ingênuo; orgulhoso até à antipatia, e logo simples, humilde quase; dizendo desaforos pelo prazer de pedir desculpas; dissimulado às vezes; outras vezes de uma franqueza escandalosamente aberta; procurando parecer mau para mostrar que era forte; e, na verdade, compadecido, enternecido, comovido; amoroso de todas as mulheres e amando uma só; adivinhando pela inteligência o que os outros sabiam por estudarem; ajuizado e doido, livre e obediente, meio-termo de tudo... Aí está Pedro I... Aí estamos nós...

Eu, por exemplo, nunca pude cometer uma frase que me não lembrasse dele... Ele tinha, na contínua representação em que andou, o gosto, o vício das frases... Imortalizou-se a bradar, a murmurar, a escrever palavras rápidas... Quantas!... Tantas!...

A José Clemente Pereira, que lhe entregou a representação assinada pelos oito mil patriotas do dia 9 de janeiro de 1822, respondeu:

- Como é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, diga ao povo que fico.

Depois, a 7 de setembro, o desafio dramático, junto “das margens plácidas”...

Outras frases proferiu, desde então, menos notáveis do que as últimas, enquanto interpretou as cenas finais do seu papel de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil. Quando, às oito horas da noite, de 6 de abril de 1831, três juízes de paz, em nome do povo, reunido no campo de Santana, foram a São Cristóvão rogar a demissão do ministério da véspera e a volta do demitido, D. Pedro ouviu-os de mau humor, e retrucou-lhes: “Tudo farei para o povo; nada pelo povo.” A revolução cresceu. Os batalhões aderiram. A própria artilharia ligeira, chamada para defender o palácio, em seguida ao abandono da guarda permanente, obteve licença para retirar-se.

- Ide, balbuciou o Imperador. Não quero sacrifício de pessoa alguma.

O Major Frias surgiu aterrado. A multidão só acalmaria se Sua Majestade consentisse no retorno do ministério anterior.

- Não! Nunca! É contra a minha honra e contra a Constituição. Antes abdicar! Antes a morte!

Contudo, passados uns instantes, ordenou que procurassem o Senador Vergueiro. Enquanto o procuravam, d. Pedro, nervoso, indagou de um criado:

- Não há mais um soldado no paço?

- Há poucos, mas fiéis e leais.

- Estes não são como muitos a quem enchi de benefícios e que estão agora no campo a apregoar-se de patriotas!

Não encontraram o Senador Vergueiro. Serenou, de repente, o filho de dona Carlota Joaquina. Dirigiu-se ao gabinete, e de lá veio com um papel na mão. Deu-o ao Major Frias, soluçando:

- Aqui tem a minha abdicação. Estimarei que sejam felizes. Eu me retiro para a Europa. Deixo um país que muito amei e amo ainda.

Caiu o pano. A rentrée foi na Europa...

                                                                          (A cidade mulher, 1923.)

 

LITERATURAZINHA...

Entre os documentos da nossa história sentimental, nenhum é mais interessante do que a carta de adeus, escrita pela segunda imperatriz ao seu enteado, que ficava dono de um trono, sem saber ainda o que fazer dele. Dona Amélia, antes de ir para bordo da nau Werspite, na qual saiu do Brasil, deixou estas palavras a D. Pedro II:

“Adeus, menino querido, delícias de minha alma, alegria de meus olhos, filho que meu coração tinha adotado! Adeus, para sempre, adeus! Quanto és formoso neste teu repouso! Meus olhos chorosos não se podem fartar de te contemplar! A majestade de uma coroa, a debilidade da infância, a inocência dos anjos cingem tua engraçadíssima fronte de um resplendor misterioso que fascina a mente. Eis o espetáculo mais tocante que a terra pode oferecer! Quanta grandeza e quanta fraqueza a humanidade encerra, representadas em uma criança! Uma coroa e um brinco, um trono e um berço! A púrpura ainda não serve senão de estofo, e aquele que comanda exércitos e rege um império carece de todos os desvelos de uma mãe! Ah! querido menino, se eu fosse tua verdadeira mãe; se minhas entranhas te tivessem concebido, nenhum poder conseguiria separar-me de ti! Nenhuma força te arrancaria de meus braços. Prostrada aos pés daqueles mesmos que abandonaram meu esposo, eu lhes diria entre lágrimas: ‘Não vedes mais em mim a Imperatriz; mas uma mãe desesperada! Permiti que eu vigie o nosso tesouro! Vós o quereis seguro e bem tratado; e quem o haveria de guardar e cuidar com maior devoção? Se não posso ficar a título de mãe, eu serei a sua criada ou a sua escrava!’ Mas tu, anjo de inocência e de formosura, não me pertences senão pelo amor que dediquei a teu augusto pai; um dever sagrado me obriga a acompanhá-lo em seu exílio, através dos mares, a terras estranhas! Adeus, pois, para sempre, adeus! Mães brasileiras, vós que sois meigas e afagadoras dos vossos filhinhos, a par das rolas dos bosques e dos beija-flores das campinas floridas, supri minhas vezes; adotai o órfão coroado; dai-lhe todas um lugar na vossa família e no vosso coração. Ornai o seu leito com as folhas do arbusto constitucional; embalsamai-o com as mais ricas flores de vossa eterna primavera; entrançai o jasmim, a baunilha, a rosa, a angélica, o cinamomo, para coroar a mimosa testa quando o diadema de ouro a tiver machucado! Alimentai-o com a ambrosia das mais saborosas frutas: a ata, o ananás, a cana melíflua; acalentai-o à suave toada das vossas maviosas modinhas! Afugentai para longe de seu berço as aves de rapina, as sutis víboras, as cruéis jararacas, e também os vis aduladores, que envenenam o ar que se respira nas cortes. Se a maldade e a traição lhe prepararem ciladas, vós mesmas armai em sua defesa vossos esposos com as espadas, os mosquetes e as baionetas. Ensinai à sua voz terna as palavras de misericórdia que consolam o infortúnio, as palavras de patriotismo que exaltam as almas generosas, e, de vez em quando, sussurrai ao seu ouvido o nome de sua mãe de adoção!

Mães brasileiras, eu vos confio este preciosíssimo penhor da felicidade de vosso país e de vosso povo. Ei-lo, tão belo e puro como o primogênito de Eva no paraíso. Eu vo-lo entrego. Agora sinto minhas lágrimas correr com menos amargura. Ei-lo adormecido. Brasileiros! Eu vos suplico que não o acordeis antes que me retire. A boquinha molhada de meu pranto ri, à semelhança do botão de rosa ensopado do orvalho matutino. Ele sorri, e o pai e a mãe o abandonam para sempre! Adeus, órfão imperador, vítima de tua grandeza antes que a saibas conhecer! Adeus, anjo de inocência e de formosura! Adeus! Toma este beijo! e este... e este último! Adeus! Adeus, para sempre, adeus!...”

Isso foi em 7 de abril de 1831.

A literatura da época, menos talvez do que a bondade ingênua daquela doce e excepcional criatura, guiou-lhe a mão sobre o papel, com certeza manchado de lágrimas, as saudosas lágrimas românticas...

Dona Amélia!... Tão linda, tão branca! Estou a imaginá-la agora, no instante da partida, conhecendo bem a triste verdade de nunca mais voltar... Vejo-a daqui, de um recanto da cidade que ela quis com todo o coração, a escutar os gritos de prazer do povo aglomerado, desenfreado, de alegria por ter vencido o Imperador... Companheira incompreendida, dona Amélia nem pensa que está imitando o esposo... E está... A carta ao filho da sua antecessora é um monólogo para as plateias do presente e do futuro... Literaturazinha para comover as almas enternecidas... Mas, Deus te perdoou, senhora, porque não fizeste de propósito...

                                                                         (A cidade mulher, 1923.)