Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Álvaro Lins > Álvaro Lins

Discurso de recepção

Discurso de recepção por João Neves da Fontoura

I

ACADÊMICOS E NÃO-ACADÊMICOS

Com a solenidade desta noite, Sr. Álvaro Lins, entrais a participar vitaliciamente dos trabalhos, honras e responsabilidades da Casa de Machado de Assis. A par com as Academias de todas as épocas, situa-se a nossa no paralelo próprio da geografia do espírito. Assim todas constituídas, na idade contemporânea, pelo modelo da francesa, em fechados círculos das boas letras,em almenaras e por vezes refúgios da inteligência criadora, guardas avançadas do pensamento e dos idiomas nacionais.

Desde logo, nenhuma das Academias deixou de fixar o número de seus componentes. No Brasil, como em França, seremos apenas os quarenta segundo o texto e o símbolo.

E ninguém até agora ousou uma reforma, mesmo de superfície, no pergaminho da fundação, amarelecido por bem mais de meio século.

Já por essa razão, numericamente restritiva, não se encontram aqui hoje, todos quantos gostaríamos de ver ocupando estas Poltronas.

A força da Academia, porém, como a de todas as ortodoxias, reside na sua unicidade e na condição inamovível e categórica: não sai ao encontro seja de quem for, embora com as portas hospitaleiramente abertas aos que lhe peçam entrada e mereçam transpor estes umbrais.

Lançando os olhos sobre o passado, poucos são os ilustres que aqui não lograram entrar, quando candidatos. Não se veja, pois, nem mesmo um dissídio entre homens de pensamento. Marcam-se apenas posições incidentemente diversas, inclusive em face da Academia.

Mas o erro irreparável estaria em julgar-se a Academia tão somente pelo seu conteúdo pessoal sempre, como a vida humana, variável e provisório. Tanto os membros da Companhia quantos os que a ela não pertencem. tomados isoladamente, são donos de seus próprios méritos. E estes não crescem nem mínguam porque seus titulares sejam ou não sejam acadêmicos.

Thibaudet, que considerava a Academia Francesa o parlamento da República das Letras, não parecia substancial que le Parlement des Lettres soit composé des quarante meilleurs écrivains.

II

O SENTIDO DA ACADEMIA

De todos os pontos de vista, o que imparcialmente se deve considerar não são os acadêmicos. Mas a Academia. A instituição é que conta. Na sua origem, no seu significado, na ordenação e prestígio que imprime à área nacional das boas letras e do bom gosto pelas coisas do espírito. Sendo uma espécie de governo constitucional, no plano da inteligência, um órgão reconhecido pelas outras Academias do mundo, como sede natural da cultura do País, com os caracteres ideais de um poder executivo, com todas as semelhanças à personalidade de direito público, desfruta autoridade para falar, em nome do Brasil, num vasto e luminoso âmbito da vida de relação entre os povos. É isso a Academia. Os acadêmicos simbolizam o efêmero, como as folhas das árvores roladas pelos ventos do inverno renovadas em cada primavera, segundo a alegoria de Homero. Quando morrem, outras expressões rebrotam do tronco imperecível. Nossa imortalidade é esta: a de termos tido, um dia, a glória, justa ou injusta, de um lugar entre seus ramos igualmente passageiros.

A era em que vivemos, talvez mais do que as precedentes, indica – aos que amam as virtudes da cultura da inteligência – a necessidade de resguardar- se o prestígio destes luzeiros acesos em meio à montante escuridão, ao caos e sombras do materialismo dialético, hipocritamente hoje recoberto com as alvas lãs do Cordeiro da Paz.

Nem se impõe retrocedermos ao absolutismo individualista, que levou o segundo Geral da Companhia de Jesus a exclamar perante o Concílio de Trento: “A multidão sempre me aterra, mesmo a multidão dos bispos.” Nesta crise universal, o que importa é garantir o poder da pessoa humana, suas regalias espirituais, sua expressão, suas intocáveis liberdades. Nem o homem isolado dos problemas da comunidade; nem esta relegando seus componentes à condição de seres numéricos.

Daí por que as sátiras anti-acadêmicas, as antigas desavenças entre acadêmimos e não-acadêmicos, não passam de reminiscências distantes de outras eras mais simples, mais desocupadas; por isso mesmo – quem sabe? – mais felizes. De igual altura devem ser vistas as lutas e contradições entre clássicos e modernos, em todas as províncias da Literatura ou das Artes. Ainda agora, correndo os olhos por estas Poltronas, achareis muitos dos que combateram a Instituição, e até alguns que carregaram, nos braços afoitos e juvenis, o glorioso e sedicioso Graça Aranha quando desencadeou contra a Academia, aqui neste recinto, seus ímpetos luteranos, sua revolta, suas tempestades renovadoras, apaziguadas depois por um longo armistício, que os ânimos e os cabelos brancos de vários dos novos beligerantes transformaram num tratado de paz com cláusulas honrosas para os dois campos, sem vencedores nem vencidos.

Bem andastes, pois, Sr. Álvaro Lins, apresentando democraticamente vossa candidatura, sem outros oragos além dos vossos diplomas intelectuais, à sucessão de Roquette-Pinto, logo que a morte fechou os olhos a um dos maiores brasileiros de todas as épocas, a um dos homens cuja fama não viverá da nossa convencional imortalidade, mas da que ele mesmo conquistou com sua obra imperecível nos variados campos da Literatura, da Ciência, do magistério.

III

UMA ELEIÇÃO UNÂNIME

A Academia era claramente vosso objetivo. Quem vos acompanhou, de perto ou de longe, tinha a certeza de que ela estava no vosso itinerário. Também vossa eleição, por unanimidade, prova que a Academia vos esperava e desejava, como deseja e espera tantos outros valores ausentes do seu quadro e que ainda hesitam no absenteísmo, entre a ambição de a ela pertencer e o inexplicável temor da refrega eleitoral, esquecidos de que, em França, alguns dos mais notáveis homens de letras colecionaram, sem desistir, como Victor Hugo, memoráveis derrotas.

Não é, porém, habitual em País nenhum o que vos aconteceu: esse perfeito encontro de vontades, esse casamento venturoso entre o aspirante e a Academia, sob as bênçãos de todos os sufrágios e mais os aplausos da opinião nacional.

Creio que, assinalando as duas circunstâncias, vosso elogio estaria feito, e esta enorme e notável assistência dispensada do castigo de escutar-me, depois de ter aplaudido como devia vosso primoroso discurso.

A solenidade, entretanto, não ficaria completa dentro do ritual acadêmico; e, quanto a mim, não me indenizaria, com o simples silêncio, da possibilidade de haver empreendido colocar, na moldura pobre das minhas palavras, vossa obra que amadureceu quando quase todos começam apenas a semear as primeiras esperanças de celebridade. Nem me perdoariam a omissão os laços de camaradagem, que fizemos lá fora, vai para mais de um decênio, quando vos convoquei para comigo colaborar, em 1946, na obra cultural do Itamaraty. Escolha espontânea sem outras indicações além da vossa consagrada autoridade literária. Sempre me repugnou considerar que meu partido devesse desfrutar o monopólio dos homens capazes, e até enciclopedicamente capazes, a ponto que se devessem tirar de suas fileiras os ocupantes de todas as funções públicas, inclusive as mais especializadas. Foi sempre meu rumo e meu gosto escolher livremente os colaboradores não legalmente obrigatórios, mesmo no campo adverso, desde que nele se encontrassem os melhores.

Além disso, há, entre a solenidade desta noite e o dom de fácil profecia, um documento com a minha assinatura, preconstituindo a certeza de vossa eleição e insinuando-me, como alvíssaras, o direito de ser vosso padrinho, nesta solenidade.

Lá pelos começos de novembro de 1950, respondendo à carta em que o recipiendário de hoje me desejava o regresso à Pasta das Relações Exteriores, no Governo que se ia inaugurar, assim conclui: “Esta vai em papel com timbre da Academia, como espécie de aperitivo. O que eu desejo não é voltar à Rua Larga, mas ter vida e saúde para receber a Você, na Casa de Machado de Assis”.

Foi assim considerando que meu direito a saudar-vos, em nome da Companhia, estava irrevogavelmente adquirido com a antecipação mais de cinco anos. Devo, aliás, dizer que a Academia é supersticiosa, e não lhe agrada ouvir falar em vagas, quando não existem; no fundo, também, não simpatiza com aspirantes ostensivos, enquanto vivem os quarenta, porque qualquer destes receia que o pretendente lhe seja portador de alguma nuvem agoureira. Se não temi candidatar-vos sem vaga, Sr. Álvaro Lins, foi porque uma vez, querendo instruir-me quanto à possibilidade de conciliar meu fundo supersticioso com a sincera condição de crente nos dogmas da Igreja Católica, da qual sou o pior dos filhos, procurei esclarecer minhas dúvidas de consciência junto do Mestre Alceu de Amoroso Lima, em quem sobram predicados para ser, inclusive, confessor leigo dos seus confrades. Respondeu-me ele, com aquela sua luminosa e, não raro, docemente irônica maneira de explicar a verdade:“Olhe meu caro, meu Mestre Jackson de Figueiredo costumava dizer – Sou católico, apostólico, romano e... supersticioso.”

Ainda bem que não havia a temida incompatibilidade. Deus, que tanto me tem dado, com Sua Mão misericordiosa, sem olhar-me as falhas, permitiu que vossa eleição se cumprisse em breve prazo, e, ainda, me concedeu a oportunidade de abrir-vos oficialmente, esta noite, as portas da Academia.

IV

O DISCURSO DE RESPOSTA

Não é normalmente um gênero fácil o dos discursos de saudação aos acadêmicos que tomam posse. A tradição reclama que o louvor não se teça total, mas que, aqui ou ali as pontas de alguns alfinetes resvalem, de leve, sobre a epiderme do recipiendário. A glória tem sempre, como o corpo do herói, algum ponto vulnerável.

Neste particular há de tudo nos fastos acadêmicos.

Aqui, refere-se que um grande escritor não se considerou bastante elogiado na solenidade de sua posse, e disse a um confidente: “Espero que meu sucessor me fará justiça.”

Em França, algumas vezes essa denegação de justiça foi ultrapassada, chegando-se até a recursos de efeito cômico despropositado, para obrigar o noviço a descer das nuvens da ilusão ao plano da humildade.

Quando Villemain recebeu Scribe, medíocre autor de comédias, colocou, na oração, estas palavras equivalentes ao maior louvor a um autor de peças de teatro: On vous a comparé à Molière. Scribe, que, como é da regra, lera o texto, deve ter sentido as antecipadas delícias do sétimo céu. Pois, na hora de proferir a saudação, Villemain – conta o cronista –, “Quando chegou àquela frase, depôs as folhas do discurso sobre o rebordo da tribuna, limpou pacientemente os cristais do lorgnon, e, erguendo os braços aos céus, para que fossem testemunha da monstruosidade que ia proferir, exclamou numa voz dolorosa: On vous a comparé à Molière!.

Estas normas e as exceções nada valem para arrebatar, a quem recebe a homenagem e a quem profere a saudação, o sério e malicioso prazer dos discursos. No mínimo os oradores se pagam com a filosofia de Machado de Assis: “Mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memória os grava em bronze; se são ruins, deixam tal ou qual amargor, que dura muito. O melhor dos remédios, no segundo caso, é supô-los excelentes e, se a razão não aceita essa imaginação, consultar pessoas que a aceitam, e crer nelas. A opinião é um velho óleo incorruptível.”

V

PRIMEIROS FRUTOS

Para o vosso elogio, Sr. Álvaro Lins, o custoso não é descobrir vossos títulos e méritos à sucessão de Roquette-Pinto, mas, ao contrário, dissociá-los e demarcá-los – tão numerosos são e variados – para apresentá-los, cada um por sua vez, numa tentativa de fixar e isolar as diversas cores espirituais do vosso espectro solar.

Nem o pesquisador avisado das vossas mais remotas inclinações literárias se contentaria de fazer escavações nos volumes do Jornal de Caruaru ou de seu êmulo – o Cinco de Novembro – entre os anos de 1929 e 1930, ao tempo em que o aluno interno do Ginásio do Recife cometia sonetos, poemas, acrósticos e artigos, vazados naqueles padrões de subliteratura, que, depois, o crítico veio a perseguir tão implacavelmente. Aqui, como por toda a parte, os maiores escritores não escaparam ao tateio juvenil pelas adjacências do jardim das Musas, na ânsia de achar o caminho da verdadeira vocação.

Não obstante, esssas primeiras erupções do espírito são quase sempre carregadas de sentido e influem, em certa medida, na composição das forças que vão imprimir um caráter e um destino à personalidade literária.

Os vossos feitos menineiros, na maravilhosa aventura das ruas de Caruaru, não andavam dando à família suficientes garantias sobre vossa seriedade de propósitos, como ela desejava. Ai de nós, quando meditamos hoje, a decênios de distância, acerca da inoportuna austeridade que os pais do nosso tempo exigiam precocemente dos filhões varões!

Se os cronistas não se enganaram, numa certa noite do princípio deste século, Caruaru esteve sob a ameaça de ficar às escuras, quebradas todas as lâmpadas da iluminação pública. Diante do clamor popular (e nós os filhos das cidades pequenas bem conhecemos sua perigosa densidade), o prefeito em exercício – Pedro Alexandrino Lins –, mandou abrir o que ainda hoje se chama “o competente inquérito”. No fim da diligência policial, o chefe do executivo chegou à espantosa evidência de que as depredações tinham sido praticadas por um bando de garotos, sob vossa belicosa liderança. Ou, mais propriamente, a liderança do filho do Prefeito! Aquela pequena blitzkrieg, levada a cabo com o primitivismo dos bodoques de pedra, custou-vos a deportação para o Recife e a internação no Colégio dos Salesianos. Por ser primário o criminoso, a pena foi suspensa sob a forma de um sursis conventual. Vossa professora de primeiras letras, que devia possuir provas concretas da vossa capacidade combativa, já lá andava murmurando nos seus serões e confidências ao ouvido da vizinhança: “Este menino acabará na Marinha”, maneira imponente e alegórica de mencionar a Escola de Grumetes, espécie de reformatório, para onde eram remetidos, então, os meninos terríveis!

Entretanto, a lei das compensações não deixava de equilibrar, no outro prato da balança, a revelação primaveril do vosso engenho nascente, com as mostras de uma surpreendente espontaneidade no que a minha e a vossa geração denominava “composição”: um ensaio de redação sobre determinado tema. No período ginasial, o aluno Álvaro Lins não raro desperdiçava tempo conversando com os vizinhos mais próximos. Numa dessas ocasiões, o velho professor Júlio Pires tentou apanhar-vos num flagrante de descuido chamando-vos à leitura do vosso trabalho. Ao primeiro impacto, sofrestes pequena vacilação. Mas, logo depois, abrindo o caderno, bem próximo dos olhos, lestes, durante dez minutos, uma bela página, precursora de tantas outras que depois ganharam foros de celebridade. Apenas as laudas estavam em branco, e o vosso texto fora improvisado, no momento do aperto. O mestre compreendeu tudo num relance. Espírito justo, não desconheceu vosso poder criador, também não omitiu a punição pela falta. E a sentença foi esta: Álvaro Lins: português – dez; comportamento – zero! Os dois extremos no prêmio e no castigo.

VI

O COMEÇO DO MAGISTÉRIO

O Ginásio do Recife foi vosso fiat na carreira do Magistério. Nem despontara a maioridade civil, e já vosso antigo mestre, o Padre Félix Barreto, cuja bela vida soube acumular as responsabilidades da cátedra de humanidades com a presidência da Assembleia Estadual e até, episodicamente, a governadoria de Pernambuco, vos convocara para lecionar História da Civilização. Das vossas aulas não vos adveio somente a primeira notoriedade didática. Um dia, entre as vossas alunas, encontrastes, aliando aos encantos da beleza física os dotes espirituais, aquela que havia de ser a melhor parte do vosso coração, a meeira da vossa vida, inspiradora e colaboradora da vossa obra. A ela dedicastes o estudo sobre Rio Branco, em singelas e altas palavras, que retratam a persistência daquelas “afeições tenazes” a que se referiu Rui Barbosa: “A Heloísa, minha mulher, como lembrança dos dias em que juntos trabalhamos neste livro.”

Enquanto o professor lecionava, o estudante de Direito aprendia as disciplinas jurídicas na velha Escola, que se honrou com os nomes de Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua, Laurindo Leão, José Higino, Paula Batista, Aprígio Guimarães, Artur Orlando, Coelho Rodrigues, Martins Júnior, para só falar dos mortos.

VII

O DEMÔNIO DA POLÍTICA

Mas, parede-meia com a vocação do homem de letras e do professor, há, escondido no vosso peito, o demônio da Política, que vos persegue desde a adolescência. Vossas primeiras incursões nessa perigosa seara datam dos bancos universitários. Atravessávamos os anos de 1931 e 1932. O Governo de 30 sofria os abalos da tremenda transformação iniciada. A Revolução soubera destruir, com rapidez e perícia, o edifício da República Velha; no entanto, os vencedores não atinavam ou não queriam atinar com o caminho da construção, vacilando, tergiversando, adiando o encontro com o povo perante as urnas. São Paulo conspirava à luz do sol, para reconquistar o direito de prover a escolha de seus dirigentes, emancipando-se da condição castrense a que o haviam reduzido os triunfadores de Outubro. Toda a Nação seguia, atenta e solidária, o drama bandeirante. Pernambuco não lhe poderia faltar. Muito menos os estudantes, que receberam, gravado pelos compromissos de toda uma tradição liberal, o legado da velha Casa em que se professava a ciência do Direito. São Paulo e Recife, nesse aspecto, são dois berços gêmeos, fraternalmente unidos pela efeméride da fundação dos cursos jurídicos do Brasil. Não havia como reagir diversamente, ante a ameaça de perpetuar-se um governo discricionário, quando o ato da sua investidura, pela armas de Outubro, estava selado com a garantia de demolir o que era a negação da pureza democrática, substituindo-o sem subterfúgios, por outro regime que trouxesse inscrito no frontispício o dualismo da fórmula de Assis Brasil – “Representação e Justiça”.

O segundanista Álvaro Lins produziu, à época, seu primeiro trabalho, já de largo fôlego: a conferência “A Universidade como Escola de Homens Públicos”. Naquela altura de 1932, vossos vinte anos de idade contrastavam com madureza do vosso espírito. Enquanto os estudantes do Recife davam espiritualmente a mão aos rapazes de São Paulo começava vossa carreira de imprensa, num jornal que não é só dos mais notáveis do Brasil, senão também o mais antigo de toda a América Latina – o Diário de Pernambuco.

O jornalismo passou a ser, com assiduidade, a terceira revelação da vossa capacidade.

Mas a Política já se vinha aproximando, com aqueles meneios ofídicos, que lhe asseguram o predomínio, quase sempre eterno, sobre a vítima escolhida. A Carlos Lima Cavalcanti, em cuja maneira de ser renascem as elegantes linhas dos antigos senhores de engenho e se repetem as tradições do seu patronímico, não passou despercebida vossa atuação no mundo estudantil. Muito menos vossos artigos na imprensa; e ei-lo a atrair-vos, sem conhecervos, primeiro para redator do Diário da Manhã, depois para o lugar de Secretário do Governo do Estado de Pernambuco. Começavam a cumprir-se os receios daquela que vos deu o ser. Tendo acompanhado o marido, que viveu durante dezoito anos do obscuro cargo de Secretário da Prefeitura de Caruaru, com as limitações orçamentárias dos ordenados da modesta função pública, na singeleza preocupada de mãe de família, que aspira a situações melhores para o filho, ela teve um dia esta significativa exclamação : “Eu só peço a Deus que este menino não dê para Secretário”.

Parece que a divina misericórdia se acha afinal inclinada a escutar a prece materna, Sr. Álvaro Lins, permitindo que se abram ao vosso futuro próximo os novos e altos caminho da chefia de uma das nossas mais importantes Missões Diplomáticas.

O curso jurídico estava terminado; o Bacharel Álvaro Lins o concluiu, cum laude, em 1935. Os caminhos do foro não seriam, contudo, os que ele iria trilhar. Até ali, os alunos do Ginásio do Recife e do Colégio Nóbrega ouviram vossas acuradas lições sobre a História da Civilização, enquanto, com o pé firmado no jornalismo, breve ascendestes de redator a diretor do Diário da Manhã, que fora em 1929 o baluarte pernambucano da Aliança Liberal. Quando, ao alvorecer de 1930, visitei o Recife, à frente da Caravana Liberal, o Diário da Manhã era o clarim da campanha que lançáramos no ano anterior, para derrotar a chapa oficial à sucessão do Presidente Washington Luís.

Absorvido pela Política, vosso nome já se encontrava em chapa para a Câmara dos Deputados, apesar dos vossos verdes 25 anos de idade. No tocante ao futuro de vossa vida e no que deveria ser o desempenho do papel que vos estava reservado no mundo das Letras, o golpe de 1937, impedindo vossa eleição ao Parlamento, vos reteve na província natal, por mais um fecundo triênio de trabalho, de estudo, de meditação. Não tenho dúvida em que uma cadeira no recinto do Palácio Tiradentes não significa apenas a honra de representar o povo, mas a melhor oportunidade que possa ter o eleito para criar uma reputação e apresentar-se no centro do palco político, de onde, quem dispõe de predicados de verdadeiro homem público, se acha habilitado a partir para os mais altos destinos. Vossa retenção no Recife não foi, pois, uma pausa nem um mal, mas uma dádiva da Providência, que ia marcar vosso rumo principal no exercício da crítica literária E foi assim que a Política serviu à Literatura. Envolvido, corpo-e-alma, no maquis de resistência ao Estado Novo, procurastes aperfeiçoar-vos no estudo da mordacidade da sátira e da aguda crítica social. Eça de Queirós havia sido o caricaturista dos tipos frustrados de estadistas, dos políticos incapazes, dos ridículos da sociedade portuguesa do seu tempo. As cenas dos seus romances, os dramas que surpreendeu na alma humana, os sentimentos que aprofundou, segundo os métodos da escola naturalista então na moda, não esgotam os aspectos maravilhosos de sua obra. Como se disse de Balzac, Eça fez concorrência ao estado civil, criando um mundo rico, palpitante, gotejando todos os caracteres de verdadeiros seres humanos. Com eles, com suas paixões, suas grandezas, deficiências, misérias e contrastes, povoou seus romances.

VIII

O LIVRO SOBRE EÇA DE QUEIRÓS

Caminhastes direito a Eça de Queirós, como quem procura modelos e situações para zurzir vossos adversários. Eis que o garimpeiro estacou às margens do luminoso rio, deslumbrado pela quantidade de diamantes que ia encontrando.

Os personagens de Eça tinham tamanho tonus vital, tanta presença física que Ramalho Ortigão, o amigo fraterno do romancista, quando se inaugurou ali na Rua do Alecrim o monumento de Teixeira Lopes, disse no seu discurso:

As personalidades de Eça de Queirós, que ele arrancou da banalidade da carne para as imortalizar, tornando-as típicas pela auréola da Arte, vivem em nossa imaginação mais poderosamente e mais intensamente do que se fizessem parte material do nosso mundo objetivo. Fradique Mendes, Carlos da Maia, Gonçalo Ramires, o primo Basílio, o Padre Amaro, o Cônego Dias, João da Ega, o Raposão, o Dr. Margaride, o Libaninho, o conselheiro Acácio, e outros muitos, são outros tantos autênticos atuantes, ponderosos moradores de Lisboa, que, neste momento, talvez nos estão ouvindo, ou cujas opiniões, teoria, modos, gestos, expressões fisionomicas e estados d’alma iremos encontrar hoje mesmo na Havanesa, no Terreiro do Paço, na Central, no Tavares ou no Augusto, descendo o Chiado às 4 da tarde, passeando ao crepúsculo na Avenida ou, à noite, no teatro, exibindo-se, pontificando discursando, flirtando ou aborrecendo-se, juntamente com as mulheres, os filhos, as tias, os namoros, e as próprias criadas: a alucinante e fatal Maria Eduarda, a desgraçada e trágica Luíza, a Condessa de Gouvarinho, a Maria Monforte, a Leopoldina, a desordenada Lola, a sentimental e efêmera Carmen Puebla, a abominável Juliana, a tia Patrocínio das Neves, a hedionda senhora.”

IX

A CAMINHO DA METRÓPOLE

Com eles construístes dois grandes artigos de crítica literária, um pouco como Mr. Jourdain, quase sem saber que havíeis encontrado o gênero que, sem demora, vos faria ilustre. E a revelação veio natural, inesperada, como as coisas boas que não se encomendam, até porque as que a gente encomenda não chegam nunca ou não chegam na medida desejada.

O que seria, depois, vosso grande amigo e editor José Olímpio, leu os trabalhos. Com o admirável flair tantas vezes comprovado de descobridor e animador de jovens talentos, pressentiu vosso êxito futuro, e não tardou a mandar-vos este bilhete: “Li os artigos sobre Eça de Queirós. Você gostaria de escrever um livro sobre ele, para a nossa casa editar?”

Era o convite à valsa; e vos jogastes, corpo inteiro, ao livro que se fez estreia espetacular, aquém e além-mar.

Vossa vida política, naquele tempo, prosseguia sob o signo da inquietação. Na forma do primitivismo, que ainda dominava a taba, o adversário era o vencido romano, quase sem direitos. Muito menos com regalias. Inscrevendovos para um concurso de professor no Ginásio Oficial, as provas foram indefinidamente adiadas. O livro sobre Eça não foi apenas mensageiro de notoriedade e glória. Também vos custou o cancelamento da Cadeira no Colégio Nórega. Sitiado, assim, de vários lados, vossos olhos se voltaram naturalmente para a barra do Recife. O remédio estava em partir, buscar o grande centro, abordar a aventura, que é uma espécie de porta misteriosa para todos os triunfadores. O Rio passou a ser o pólo magnético do vosso destino.

Não fostes o primeiro nem sereis o último entre os que emigraram da província para a metrópole. Outrora, para a Corte. Hoje, para a um tanto desfiguarada Cidade Maravilhosa. É o que, aliás, sucede nos outros países. Para intelectuais, a grande cidade é o chamamento, que pode levá-los à verdadeira altura dos seus merecimentos, ou calcá-los à mediocridade e até à miséria mesmo.

X

O PAPEL DA PROVÍNCIA

Mas todo o vosso capital, juntado vintém a vintém nos valores monetários do espírito, é a Pernambuco que o deveis. Quem não nasceu na província ou nela não teve sua formação desconhece o que ela marca de benéfico, de construtivo, de apaziguador de impaciências. A província ainda é e continuará sendo o Brasil, na sua genuinidade, no seu indeformável caráter, na sua incontaminada sensibilidade nacional. A não ser Machado de Assis e poucos mais, foi da província que chegaram, alguns já feitos, os maiores escritores do Brasil de todos os tempos, trazendo cada qual, destacados do meio físico onde cresceram, os componentes tão diversamente telúricos, climáticos e espirituais das várias porções da Pátria. Não só os poetas e homens de letras; os de ciência, os construtores da Nação, quase todos os homens públicos mais representativos, os estadistas que, em dois regimes, deram ao País algumas das melhores molduras para os quadros do nosso desenvolvimento material, para o aperfeiçoamento dos problemas do espírito, sem esquecermos que todos os Presidentes da República e seus eventuais sucessores também os forneceu o interior do País. Não seria nesta agitada altura dos nossos acontecimentos que um observador, com a dura experiência dos anos e a sabedoria dos desenganos, haveria de opor umas regiões a outras ou desmerecer a metrópole do País. Para engrandecer esta última, basta lembrar que aqui viram a luz Machado de Assis e o Barão do Rio Branco, falando apenas dos astros magnos, sem exclusão dos astros menores e satélites. O que estou a dizer é que as capitais em geral se descaracterizam pela afluência dos que vêm de outros países, com o espírito povoado de outros problemas, de outros impulsos, de outras lendas, e sem a misteriosa força das ligações estritamente vernáculas. No tumulto dos grandes centros urbanos, cada coisa se desordena, uma parece – conforme a hora – mais importante do que outra, desde o tráfego até a concorrência no insaciável mundo dos empregos e dos negócios, desde as questões que se alternam vertiginosamente na ordem do dia até o ambiente artificial da vida noturna, le monde où l’on s’énnuie. Nesse jardim, de luzes coloridas e comprometedoras penumbras, há infinitamente menos Brasil do que na tranquila periferia, que conhece as madrugadas para o trabalho e as noites para o repouso. É lá que se guarda, como entre as páginas do livro de cabeceira, a flor das afeições duradouras, senão eternas. É lá, em qualquer de suas áreas, que o matuto, o seringueiro, o caipira, o capiau, o tropeiro, o peão, o camarada, o jangadeiro, o gaúcho, o que empunha a rabiça do arado, o que conduz as canoas a remo, o que colhe o café, o arroz, o trigo, o algodão, o cacau, a cana-de-açúcar, o minerador paciente, o fazendeiro, o senhor de vastas plantações, a dona de casa à moda antiga, o negociante, grande e pequeno compõem uma forma desinteressada de opinião pública, inacessível ao cansaço, à ambição às infidelidades, ao convencionalismo. Esse, o papel catalisador das províncias no sistema brasileiro. Existiam desde a colônia, sob a denominação de capitanias, que foram o berço do nosso federalismo. Continuaram na Monarquia, não mudaram na República, cada qual com as peculiaridades do seu caráter, todas essencialmente brasileiras, sem risco de secessão. Por isso, o que aqui por vezes parece um pensamento nacional não o é. É só um pensamento metropolitano, que não está no cérebro do Brasil. Nem no coração.

O mesmo acontece, não raro, com todas as capitais, pelo fenômeno da descentralização política, econômica, social e literária. 1930 foi uma prova de quanto pode a periferia quando o centro não responde aos seus anseios, aspirações e urgências.

XI

A FEDERAÇÃO LITERÁRIA

Falando no ato inaugural da Academia, Machado de Assis atribuiu a esta Casa o papel de “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”.

A experiência de mais de meio século demonstrou que, até por ação de presença, a Academia soube manter não só a unidade literária no seio da federação política, mas também simbolizar a unidade nacional no seio da federação literária. Porque é bem este o lugar de ressaltar que, se a federação política, instituída pela República, foi sempre, por imposições naturais, condição da nossa sobrevivência, com a integridade do território herdado de Portugal, a federação literária – talvez mais do que a política – nunca cessou de existir, ainda quando o País se mantinha, de jure, sob a forma unitária.

No Brasil, a criação literária não foi um ditado do centro para a periferia. Talvez quase inteiramente o oposto.

Não há senão olhar o mapa da nossa agitada formação, desde as origens, ainda as mais remotas. No século XVI, já o Padre José de Anchieta, na capitania de São Vicente, aliava ao apostolado da Fé o da Poesia. Depois foram se sucedendo as escolas: a baiana já ostentava vivos traços de brasilidade nascente, com a sátira do leguleio Gregório de Matos, esse bem com o cheiro e jeito da terra: a mineira, com os árcades, com Basílio da Gama, com o Padre Durão, com os poetas da Inconfidência, com o lirismo de Gonzaga; o Romantismo, em todos seus aspectos, na Poesia e na prosa, inclusive o indianismo; e com o maranhense Gonçalves Dias, com o carioca Gonçalves de Magalhães, com o cearense José de Alencar, com os paulista Álvares de Azevedo e José Bonifácio, Moço, os fluminenses Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, os gaúchos Araújo Porto Alegre, Félix da Cunha e Laurindo Rabelo, o catarinense Luís Delfino, o carioca Francisco Otaviano e tantos mais: o condoreirismo, que se alça de Pernambuco a São Paulo, com a lira de Castro Alves, o maior de todos, seguido da enorme, ardente e rumorosa plêiade dos seus contemporâneos, dos seus discípulos, dos seus imitadores, sem falar nos que enriqueceram o Brasil com a Poesia popular, com a sertaneja, com os trovadores do Norte e do Sul, trazendo inspiração no fundo das nossas lendas; finalmente, com o Modernismo, que, igual à independência, teve seu berço em São Paulo e é hoje representado nesta Academia por alguns dos seus mais altos poetas, criticos, escritores e romancistas.

XII

NO DOMÍNIO NACIONAL DA CRÍTICA

Terminado à perfeição vosso ensaio geral de Pernambuco, lá ficou ele distante, na bruma das melhores lembranças. Agora, é o Rio; é 1940. Vossa luta, Sr. Álvaro Lins, começou quase no dia seguinte ao desembarque. O livro sobre Eça fora a chave do renome e o princípio do vosso novo mundo. Teríeis de confirmar sua mensagem, ou perder a batalha. O grande jornal de Edmundo Bittencourt será, no rodapé de crítica literária, a banca do vosso exame vestibular perante os confrades, sentados no hemiciclo, à espera de julgar-vos. São passos decisivos esses primeiros, para quem traz a perigosa etiqueta de celebridade da província. A tendência darwiniana é para inabilitar o recém-chegado. Nisso, há nas metrópoles algo de selvagem, pela inconsciente maldade dos que já venceram ou supõem ter vencido, instalados como senhores infalíveis do alheio valor. Pois foi esse justamente o princípio do vosso triunfo. Semana sobre semana, fostes construindo os volumes que depois se denominaram Jornal de Crítica.

Poderíeis ter entrado na liça, modestamente, pedindo desculpas aos leitores pela tomada de lugar no julgamento da produção literária. Sobretudo, aos confrades. Estes são muito semelhantes aos clássicos chers confrères, que ireis conhecer em breve, na diplomacia, pela sua malícia na apreciação dos seus pares. Seria hábil, mas não somaria com o vosso amor-próprio nem com vosso temperamento individualista, polêmico, afirmativo. Em vez de penetrar na arena, devagar, pelo lado da sombra, ganhando o centro sem as definições sempre perigosas, enfrentastes o problema da crítica e dos críticos, com uma espécie de plataforma categórica. Com razão sustentastes, no vosso “Itinerário”, que “o ato de tudo aceitar, como o ato de tudo negar, não é um ato de crítica. É um ato de positiva ou negativa apologia, e só”. Nem a crítica dita científica, nem a dogmática, ou a didática, segundo antigas classificações, vos seduzem. “É uma crítica, segundo considerais, falida e desacreditada”.

XIII

O SENTIDO DA CRÍTICA

A que vos propusestes, então, assumindo no Correio da Manhã uma cátedra que tantos nomes eminentes já haviam ilustrado? A fazer a crítica “como uma diretiva da personalidade, como uma Arte, como um novo gênero literário de criação – eis como concebemos nosso ofício”.

Sob este signo, fostes levado, talvez um pouco sumariarnente, a sustentar no mesmo artigo que “os melhores críticos do nosso tempo não são os profissionais exclusivos do gênero, mas, ao contrário, poetas e romancistas – um André Gide, um Paul Valéry, um Paul Claudel”.

Negastes, assim, que a crítica fosse, como escreveu Humberto de Campos, vosso direto antecessor no Correio da Manhã, uma espécie de magistratura literária. Ora, o magistrado não cria lei, senão que a aplica.

Um dos autorizados louvores, que alcançastes não faz muito, proveio de Otto Maria Carpeaux, brasileiro por oportuna adesão ao Brasil, a que está servindo excelentemente no mundo das Letras. Determinando o étimo da palavra crítica, Carpeaux afirma ser grega a origem dela, descendendo do substantivo Krisis e do verbo Krinein. Enquanto o substantivo designa a situação, a crise, o verbo significa “julgar”.

Segundo Carpeaux, exerceis, Sr. Álvaro Lins, uma “crítica predicativa”, ao passo que ele preferia que vos inclinásseis pelos processos interpretativos. Entretanto, ninguém ultrapassou, em louvores, a crítica que do crítico Álvaro Lins fez o crítico Otto Maria Carpeaux, colocando-o acima de todo o doutrinarismo, a ponto de parecer-lhe que vossa crítica é a crítica impressionista.

Se bem captei, em margens e a fundo, vosso expresso pensamento, tenho que simpatizais com um estilo de crítica por sobre o enquadramento de escolas, sistemas e preconceitos – tão compactos que dela fazem uma nova categoria literária, inteiramente dissociada das outras.

Rejeitando, de algum modo, que a crítica se restrinja à apreciação da obra alheia, alvitrais que ela disponha e provenha de capacidade criadora, isto é, que traga ao debate, “ao lado e além das obras dos outros, ideias novas, direções insuspeitadas, novos elementos literários e estéticos”. Donde: “Crítica num tríplice aspecto – interpretação, sugestão, julgamento”– concluís.

Não é bem esta a oportunidade de aclararmos até onde a crítica, exercida por mestres, como sois, apesar de vossa relativa juventude, pudesse acumular as funções de explicar, aprofundar e julgar a produção literária ou artística e, ao mesmo tempo, fazer concorrência aos criticados, no aspecto da criação de iguais ou semelhantes valores do espírito. É possível ser um poeta e um crítico, um romancista e um crítico; mas quem, como Gide, Valéry ou Claudel (a citação é vossa e a lista poderia ser enormemente acrescida), seja capaz de escrever um poema, um romance e um volume de crítica não escreve o poema ou romance como crítico, nem crítica como poeta ou romancista. Esses privilegiados seres, como aquelas pessoas mencionadas no direito romano, equivalem ao homo plures personas sustinet. O próprio Sainte-Beuve, invocado no vosso texto, será exatamente a melhor prova de como aqueles múltiplos caminhos são apenas paralelas geométricas. Quando escreveu seus versos, saiu um poeta extremamente artificial. Quando compôs o romance Volupté, disse Jacques Bainville que o fez avec un tel effort qu’il n’a plus recommencé cet exercice.

Bainville, que prefaciou a edição de alguns dos esplêndidos retratos históricos devidos a Sainte-Beuve, considera com propósito que ele não era nem um poeta nem um romancista. Fez versos que ne sont pas négligeables, mas não era poeta; escreveu um romance sem ser romancista.

O que lhe havia de conceder inexcedível lugar na galeria espiritual da França era o seu talento de crítico literário e de intérprete das figura e segredos da história, com sua vastíssima cultura seu poder de penetração na prosa e na Poesia dos verdadeiros poetas e prosadores.

Cada vez mais a crítica assume os contornos de uma cátedra, para cujo exercício se requerem atributos tão variados e tão profundos conhecimentos, tão apurado bom gosto, que não é fácil regê-la sem uma especializacão vitalícia, um senso excepcional das proporções e uma honestidade espiritual, difíceis de serem desempenhados juntamente com outros gêneros da invenção literária.

E vede como o próprio Sainte-Beuve, quando se retirou do jardim da Poesia e do Romance (o dele, de flores artificiais), definiu exatamente a crítica como um gênero e o crítico como um executor impessoal da crítica. As palavras do Mestre não comportam equívocos: “L’une des conditions du genre critique dans sa plenitude est de n’avoir par d’art à soi, ni de style.”

Palavras e definições levam não raro a trilhas impraticáveis. Por isso, a apreciação de um homem e de uma obra convém seja feita objetivamente através do homem e da obra. E é bem o vosso caso, como crítico literário, Sr. Álvaro Lins. Para fixar vossos méritos, é ainda de Sainte-Beuve que me vou socorrer: entendia ele que a crítica sobre um escritor deve apoiar-se no conhecimento do homem para descobrir-se “le lien du moral au talent”.

É aí mesmo que vossa autoridade se afirmou, desde saída, quando escrevestes no vosso primeiro folhetim do Correio da Manhã: “O crítico só tem um partido: o partido da Literatura.” E, a essa luz é que vossa reputacão ganhou altura, somando a capacidade do intérprete com a dignidade moral do crítico.

XIV

O JUIZ E O CRÍTICO

Aliás, é curioso marcar o drama do crítico, quando se compara sua missão com a do juiz. A semelhança entre ambas tem muito de superficial. Ao suceder a Brunetière, na Academia Francesa, Henry Barboux, que não era um crítico, mas um advogado, observou com finesse: “Les juges qui sont assis sur les tribunaux se décident par des lois, qu’ils n’on pas faites et qui sont fixes.Les juges des ouvrages de l’esprit jouissent d’une entière liberté, ils n’ont pas de lois que celles qu’ils se font à eux-mêmes.”

A Brunetière, que também considerava a crítica como equivalente a uma judicatura, sempre pareceu necessário que ela se exercesse sob a disciplina de um código de regras genéricas com a impessoalidade, a seriedade dos fins da obra de Arte, o bom gosto, a correção.

Nesse aspecto, entretanto, ninguém vos excedeu, Sr. Álvaro Lins, na correção e exata medida com que situastes o problema em vosso capítulo “O Ato de Julgar”, definindo com insuperável segurança esse dever do crítico: “Sem a coragem de julgar, sem a capacidade de emitir juízos, o crítico pode ser um artista da interpretação ou um comentarista de fatos e livros, mas já estará em outro plano que não é mais o da sua missão dentro da Literatura”.

Com o tempo, foram-se distanciando algumas das vossas primeiras perspectivas um tanto prevenidas contra a concepção da crítica como categoria autônoma no quadro das Letras, a crítica especializada, com sua metodologia própria, sua função social entre o escritor e o público. Em suma, a crítica exercida com exclusividade, com nobre profissionalismo, se me permitirdes dizê-lo; não a crítica como fugaz expressão de diletantismo literário, porém a crítica dotada dos predicados, que lhe exige e se exige, com grandeza, o nosso Alceu de Amoroso Lima: “A independência, o bom gosto, a pertinácia e a cultura.” Foram justamente esses os predicados que Amoroso Lima desde logo divisou nas vossas obras de iniciação, e, em nome dos quais, vos apontaria mais tarde como “o maior dos nossos críticos vivos”.

XV

SINCERIDADE

A esse louvor, que a qualquer outro supera, por partir de quem parte, ouso acrescentar que, escrevendo acerca dos fatos literários e sociais, por anos a fio, e sobre as obras, durante eles publicadas, tendes efetuado, com altura, a perigosa travessia sobre o julgamento dos contemporâneos, la critique des vivants, que Sainte-Beuve entendia ser a parte mais difícil e a mais nobre da tarefa.

Exercendo a crítica com a compenetração de um oficio literário, não sois apenas “o crítico da coragem”, como disse de vós o Sr. Otto Maria Carpeaux. A meu juízo, uma outra qualidade é inseparável dos vossos ensaios: a da sinceridade, com que procurais encontrar e pôr em relevo os valores do mundo espiritual, com seus contrastes entre luzes e sombras, sem paixões para louvar a quem não merece; muito menos para ocultar deficiências e erros.

E a sinceridade é ainda a virtude teologal da crítica, como da vida. Mesmo os diplomatas, quando iludem conscientemente, por dever de cargo, os negociadores da outra parte contratante, não deixam de ser sinceros; sinceros em relação ao Governo e aos interesses de sua Pátria.

A predominância, nesta era, da parcialidade, do espírito de facção, da hipocrisia, como razão de Estado, no jogo da política entre as Nações, por obra da doutrina e das aspirações marxistas, tornou arriscadas as posições dos homens ou dos grupos sociais que sejam sinceros. Refere o anedotário que ao grande pintor Degas uma dama apresentou o filho com apenas quinze anos de idade, dizendo-lhe: “Il peint déjá, si vous saviez comme c’est sincère.” E Degas a responder: “Si jeune et déjà sincère! Il est perdu.”

Quando falo da sinceridade com que vos comportais na análise da realização literária e das ideias políticas e filosóficas, estou evidentemente me referindo à retidão interior dos vossos julgamentos. Como bem assinalou René Dumesnil, estudando o Realismo e o Naturalismo na Literatura francesa: “l’objectivité totale, absolue, dans le domaine littéraire, est sans doute un leurre. On ne peut pas se retirer de soi au moment d’écrire et le style ne peut pas être autre chose que l’homme même.” E concluindo, sem falha: “Tout art est un choix et tout choix est obligatoiremente subjectif.”

XVI

O CRÍTICO JULGADO PELOS CRÍTICOS

Digno de registro, Sr. Álvaro Lins, é que os mais acentuados elogios os tendes recebido dos vossos pares da crítica literária. Depois de Amoroso Lima, o Sr. Antonio Candido, tão altamente destacado no quadro atual da crítica, certificou, em vosso favor, “o justo equilíbrio e a imparcialidade entre o impressionismo estético, que ameaça os grandes individualistas, e a solicitação da atividade no mundo que arrasta o intelectual para o turbilhão dos acontecimentos e das paixões políticas”. Aliás, é a Antonio Candido que deveis, além do diploma de “maior crítico de ficção, que já apareceu no Brasil”, este outro louvor, denso de justeza e verdade: “Não quero dizer que o Sr. Álvaro Lins seja o “melhor” crítico brasileiro, porque estas questões não têm sentido. Não há dúvida que ele é o “mais” crítico, o único que não interrompe a atividade, que não a cultiva incidentalmente, que não se cansa de criticar.”

A influência, que exercestes no meio intelectual, se tornou em breve considerável. Vossas opiniões e juízos acerca das obras literárias mais em voga passaram, por sua vez, a ser objeto de debates, tão fundamente alguns deles haviam vincado autores e livros. Vosso estudo, por exemplo, acerca dos poetas que dominam a atualida brasileira, contribuiu de maneira singular para uma compreensão mais profunda dos segredos e belezas da que foi chamada “a Poesia moderna”. O que se está oxidando, pela ação do tempo, é o qualificativo moderno. Os primeiros arrepios contra a escola inovadora, seus métodos, a ausência das antigas regras da metrificação e das rimas, a aparente morte do soneto e seus fechos de ouro, desde Camões até o Parnasianismo, os estalidos revolucionários de 1922 perdem-se, hoje, na familiaridade espiritual entre os grandes astros da que foi há mais de trinta anos apelidada Poesia moderna e os que, sem quebra de antigas devoções, queimam agora no altar recente o incenso da adesão, se não aos novos padrões da poética, pelo menos ao engenho dos seus poetas.

Também o Romance e o Teatro nacionais receberm vossos atentos cuidados sobre a sorte de ambos, e ajudastes a esclarecer muitos equívocos na consideração dos dois gêneros literários e a realçar muitas belezas ocultas a olhos menos afeitos a discerni-las, entre paisagens por vezes pouco atrativas. Fizestes, a este respeito, um feliz contraste entre o leitor, “ser abstrato e indefinível, impossível de controlar pelo autor da obra”, e o espectador, que é “um ser presente, concreto, atuante, com uma repercussão direta sobre o destino do espetáculo”.

Assumindo a defesa do público, que frequenta as plateias, evidenciastes que, ao lado daqueles que se comprazem apenas com a chanchada, há “um outro público consciente e de bom gosto, um autêntico público teatral, cujo paladar não se satisfaz com o simples divertimento só para rir”. E é para aquela assistência cultivada e de bom gosto, que advogais a participação do Estado com auxílio financeiro às boas companhias, pelo menos libertando-as dos pesados ônus fiscais. Na campanha em favor do teatro brasileiro, tendes antecessores ilustres – e entre os mais ilustres que passaram pela Academia –, dos quais destaco o glorioso fundador e primeiro ocupante da Cadeira em que o substituí sem suceder – Coelho Neto, patrono da Escola Dramática, autor de tantas peças que ficaram nas nossas Letras, deputado maranhense que, na Câmara, defendeu tantas vezes o teatro nacional e seus artistas.

Foi por essa qualidade de Mestre da Crítica Literária, mais do que por qualquer outro dos vossos múltiplos diplomas intelectuais, que a Academia vos abriu, por unanimidade, as portas. Conta-se que certa vez, quando um dos membros da Academia Francesa incitava Barbey d’Aurevilly a candidatar-se a uma vaga na Casa de Richelieu, recebeu do crítico, com sua habitual mordacidade, a seguinte resposta: “Qui donc vous jugerait?”.

XVII

A ACADEMIA E OS CRÍTICOS

A Academia Brasileira contou com a presença e o lustre dos críticos desde a fundação. Não me refiro aos críticos episódicos, mas aos que concentraram, nesse gênero, a vida quase inteira. Os nomes deles respondem pela importância das suas obras, pela influência que exerceram e exercem, pelo que de alto trouxeram ao Brasil: Sílvio Romero, vosso predecessor direto, o titã da crítica e da polêmica; José Veríssimo, do qual compusestes o retrato com os vossos próprios traços; João Ribeiro, cuja obra magistral o nosso insigne Múcio Leão, também crítico de justo e alto renome, reconstrói e classifica para a leitura das gerações que estão amanhecendo; Lafayette Rodrigues Pereira, que escrevia Literatura e Direito com a diafaneidade de um clássico; Xavier Marques, sob certos aspectos incomparável na perfeição dos seus métodos de julgamento literário; Carlos de Laet, professor, como vós, crítico e panfletário que discutiu com Camilo; Araripe Júnior, cujos processos não o fazem santo da vossa devoção; o erudito Osório Duque Estrada, vosso destacado antecessor na Cadeira 17 e no rodapé do Correio da Manhã; Alceu Amoroso Lima, que pertence não só à teoria dos mais completos dos nossos críticos, como principalmente ao Brasil, que dele se orgulha como de um líder, um orientador, um grande homem de pensamento e coração. A lista de nomes encheria algumas páginas, se os outros acadêmicos, que fizeram também a crítica, não se houvessem celebrizado, a partir do próprio Machado de Assis, como romancistas, poetas, oradores, escritores de teatro, de Política, de Arte, de Ciência.

Tendo revelado pela imprensa vossas primícias literárias, nela é que haveríeis de ingressar bem cedo, na plenitude profissional. Logo depois de chegado ao Rio, a redação do Correio da Manhã passou a contar com vossa pena, mesmo fora do rodapé de crítica. Vosso estilo ágil, vivo, sóbrio, vossa cultura multiforme, o golpe de vista com que lobrigais e captais a substância dos acontecimentos político-sociais, vosso gosto pelo jornal, breve vos dariam um lugar de destaque entre os homens de imprensa.

O jornalista, o crítico literário não conseguiram, no entanto, absorver vossa atividade nem sufocar vosso pendor pelo professorado, que iniciastes no Ginásio do Recife. Vossas agulhas espirituais não se cansavam de apontarnos o caminho da cátedra, como um dos vossos destinos.

XVIII

DA TÉCNICA DO ROMANCE EM MARCEL PROUST

O Instituto da Educação, desta capital, contava já com vossa cooperação como lente de História Geral e do Brasil. Mas o alvo de vossas aspirações, na política do magistério, era o Colégio Pedro II, que o imperador se comprazia em frequentar, e do qual dizia: “Eu só governo duas coisas no Brasil: minha Casa e o Colégio Pedro II.” O Pedro II foi sempre, mesmo nas épocas de decadência do ensino, um modelo no curso de humanidades. Por ele passaram, lecionando e aprendendo, muitos dos que depois se tornariam autênticos grandes homens, alguns dos quais a História já os coroou com as láureas da posteridade. Os concursos para cáledra do Pedro II ainda guardam o prestígio de autênticos duelos entre excepcionais valores de cultura. Para o mundo dos professores e estudantes, eles constituem hoje o mesmo nobre espetáculo  de inteligência e controvérsia, como ao tempo do velho monarca, que os honrava com sua presidência.

Inscrito para catedrático de Literatura, vossa peleja foi árdua, enfrentando quatro contendores altamente capazes. Tanto mais de destacar-se vossa vitória, com a conquista do primeiro lugar à base de 196 pontos num máximo de 200. Não só isso merece relevo, senão também o tema de vossa tese: "Da técnica do romance em Marcel Proust."

Ora, se a bibliografia proustiana é imensa e variada em todas as línguas, até agora aquele aspecto não fora objeto de qualquer estudo especial.

Proust, seus romances, sua crônica pessoal, seus dramas íntimos, sua formação espiritual, o enigma de suas afeições, seu lado salonnard da juventude na casa da princesa Mathilde ou da princesa de Polignac, a hostilidade que lhe moveu a rive gauche, suas torturantes insônias, seu final isolamento e até as angústias da asma se tornaram o centro de um profundo inquérito, por parte da crítica e de exegetas sutis, para surpreender e revelar o segredo do seu universo e as tendências mais recatadas de sua psicologia.

Em toda a sua obra, o romancista não suscitou apenas o conflito de paixões – como a ambição, o amor, o ciúme, temas eternos da vida e da criação literária. Possivelmente, ele mesmo se terá autenticamente interpretado na célebre entrevista que deu a Le Temps: “Il y a une géométrie plane, et une géométrie dans l’espace; eh bien, pour moi, le roman c’est n’est pas seulement de la psychologie plane, mais de la psychologie dans le temps. Cette substance invisible du temps, j’ai tâché de l’isoler”.

Talvez seja definitivo o conceito de Henri Massis:

“Avec Balzac et Proust, nous tenons les deux bouts de la chaine. Le génie de Balzac a enfanté cette société dont Proust a été, cent ans plus tard, l’Hamlet et le fossoyeur; et l’éffondrement de cette société confère à l’oeuvre de Proust une dimension historique et sociale qui en intensifie la portée et lui donne un surcroît de pathétique.”

Estudando com admirável profundidade a construção proustiana, sustentastes, Sr. Álvaro Lins, que ela constitui uma epopeia cômico-heroica e destes novos aspectos de interpretação ao casamento de Gilberte Swann com o conde Saint-Loup.

XIX

CADEIRA DE ESTUDOS BRASILEIROS EM LISBOA

Mas vossa carreira no magistério não se esgotaria dentro do Brasil. Coube-me contribuir para que ela se estendesse a Portugal. Convencido de que o interesse do nosso País está em difundir-se espiritualmente no mundo, apontando os contribuintes da sua formação histórica e política as bases da sua cultura, já multiforme, os pontos altos dos poetas, escritores, romancistas, homens de ciência, de Estado de pensamento, de imprensa, pude realizar, tanto quanto me permitiram os nossos problemas financeiros, a ideia de enviar para várias universidades estrangeiras, da América e da Europa, alguns dos nossos melhores intelectuais, entre os quais o Benjamim da Academia, Josué Montello, que professaram, naqueles centros, cadeiras de Estudos Brasileiros. A experiência foi amplamente vitoriosa. Como era natural, volteime, em primeira mão, para Portugal, que logo transmitiu ao Itamaraty, o placet da Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras funcionaria o novo curso. E para regê-lo o professor, o jornalista, o crítico literário Álvaro Lins.

A aula inaugural teve a presidi-la o eminente Ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal, Professor Paulo Cunha, presente toda a Lisboa mais notável no mundo das Letras, além do elemento estudantil, “rapazes e raparigas”, como lá se diz, que aplaudiram a dissertação do mestre, com afeição e calor.

Era a segunda vez que, na direção do Itamaraty, me utilizava dos vossos talentos ao serviço da cultura nacional, colhendo, para o Brasil, os frutos da vossa preciosa ajuda, como a de outros ilustres escritores que também se incumbiram de levar a várias universidades do mundo uma exata noção do Brasil, do que ele foi, do que é, do que pode vir a ser ao preço do nosso esforço, da nossa capacidade de saber servir seu desenvolvimento atual, já prodigioso, embora atacado de paralisias parciais na infraestrutura. A obra que, juntos, então empreendemos, Sr. Álvaro Lins, estará apenas interrompida mas terá de ser retomada, mais cedo ou mais tarde.

XX

O INTÉRPRETE DE RIO BRANCO

Quando se aproximava a data centenária do nascimento do Barão do Rio Branco, o chanceler Oswaldo Aranha acertou em confiar-vos uma grande missão: a de escrever um livro sobre a vida, a obra e a influência do glorioso brasileiro nos destinos do nosso País e na política do continente. Sem embargo da honra da escolha, condicionastes a execução à ausência de caráter oficial, assegurando-se ao autor “completa autonomia de trabalho e pensamento”.

O sentimento da crítica, exercida com isenção, esteve presente nessa cláusula preliminar. A confissão está no prefácio: “Aproximei-me da figura de Rio Branco com espírito crítico, com um quase profissional espírito crítico.” Não deixastes, porém, de acrescentar logo ao pé com verdade e nobreza: “Depois, senti-me humilde em face da sua grandeza. E não seria processo de crítica, mas de mesquinharia, deixar de reconhecer o que há de extraordinário e desproporcional nesse autêntico grande homem.”

Bom começo para o escultor literário, que se propõe talhar, no mármore da apreciação imparcial, a figura do que foi e é o maior dos brasileiros – perdão para o lugar-comum! – por um harmonioso conjunto de virtudes e qualidades, inclusive as negativas; por um militante patriotismo; menos por ter aumentado o território da Pátria do que por ter fortalecido seu prestígio no hemisfério e no mundo; por ter sabido prover, à frente da chancelaria, as necessidades nacionais além da sua época; por ter dado à diplomacia republicana o sentido do regime, restituindo-lhe aquela autoridade e competência que caracterizaram a diplomacia do Império, quando nos coube liquidar, por vezes em pugnas sangrentas com os vizinhos de ascendência espanhola, a parte que nos tocava, nas lutas seculares, travadas entre Portugal e Castela.

Fácil não era o desempenho da incumbência. Teríeís de jogar, não com um homem, movendo-se no cenário de uma vida de fases diferentes e até contraditórias, mas reunir em torno dele os antecedentes e antecessores dos acontecimentos que lhe deram o espantoso relevo histórico, que íamos celebrar em 1945. Havia, desde logo, uma tentação em vossa frente, a da biografia romanceada, que estava fazendo furor entre intelectuais e subintelectuais, e deliciando, ademais, os serões domésticos com as tragédias de Maria Stuart ou os amores de Luís XIV, e popularizando-se até entre os iletrados.

O romance de Rio Branco não se conformaria, porém, com as dimensões morais e políticas do retratado. Tudo, na grandeza do homem, pedia a análise do historiador forrado do sentimento imparcial de crítica. O que se desejava era um explicador do chanceler, para a Nação, que o venerava por vezes sem compreendê-lo nos lances mais arriscados da sua política, afinal consagrada pela posteridade. Nem a banalidade do louvor, nem a fantasia tecendo coincidências não raro anacrônicas, ou deformando intencionalmente a fisionomia moral dos atores e dos fatos.

O segredo do vosso êxito esteve em cravar os pés na terra firme dos documentos, estudá-los com profundeza, interpretá-los com verdade e segurança. Mergulhando nos arquivos, deles trouxestes Rio Branco à luz da compreensão pública, podendo filiar suas atitudes e seus feitos da maturidade e da velhice aos antecedentes de sua formação, à influência paterna, ao meio físico, político e moral, que contribuiu para desenvolver os dons naturais, de que já era dotado o moço Juca Paranhos, através da vida boêmia, da passagem pelo jornalismo e pela Câmara, do impacto que lhe causara a guerra com o Paraguai, das decepções sofridas pela demissão do pai da chefia da Missão Diplomática no Prata, a que fora de tanto êxito, mas perturbada pelos atritos com Tamandaré. O futuro vencedor do juízo arbitral acerca doTerritório das Missões lá estava, uma tarde, no antigo Palácio do Conde dos Arcos escutando o pai – está na crônica de Machado de Assis. “O velho Senado” – lúcido e infatigável na tribuna até nove da noite, transformando, a propósito de sua demissão, a injusta derrota em esplêndida vitória! Machado, que não gostava da ênfase, e que assistiu à imprevista reviravolta, legou-nos este raro depoimento: “Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloquência parlamentar.”

Enquanto o pai assumia a direção dos acontecimentos, o filho fazia seu batismo com a Europa, viajando, estudando, aprendendo.

Se não escrevestes o romance de Rio Brancos também não vos contentastes de ser o biógrafo do grande brasileiro. Era tarefa para amanuense aplicado, não para um evocador com as vossas disponibilidades intelectuais. Descendo ao fundo dos fatos, deles extraindo a verdadeira influência exercida pelo Barão na vida do nosso País, vosso livro, Sr. Álvaro Lins, tornou-se, através do estudo do estadista e do diplomata, a crestomatia do regime monárquico e do republicano, sob o ângulo da política externa. Não lhe posso – nem seria preciso – acrescentar outra apologia. E o que ele tem, além disso, de sedutor, de íntimo, quase de crônica de família, é que, pela leitura, nos dá a sensação de termos andado convivendo com Rio Branco, na sua banca de jornalista, nos corredores da Câmara, aluno e professor do Pedro II, anotando a obra de Schneider, frequentando os cafés e os teatros, casando por amor acima dos preconceitos, conquistando afinal, contra a vontade do imperador, o modesto consulado de Liverpool. Depois, é a República que o mantém na carreira, que o promove, que o enche – à revelia e a contragosto dele – de distinções e de encargos, e afinal o eleva por dez anos bem contados à chefia quase discricionária da nossa política exterior, de que se tornou o Mestre que ainda hoje rege seus sucessores, pela clara antevisão do nosso destino, apesar de duas guerras universais posteriores, ou, antes, principalmente por elas.

Vossa análise do homem e da obra não vos levaram ao incondicionalismo da admiração. Soubestes fazer as devidas reservas. Nem era possível que, em tudo e por tudo, não houvesse o que restringir. De outra forma, teríamos exorbitado das contingências da condição humana.

Nosso dever, o dever dos brasileiros, sobremodo o dos responsáveis pela vida pública, é manter estilizado e atualizado, dia por dia, perante as gerações, que se sucedem, o culto de Rio Branco, num bloco fundido com a doutrina e a realidade. Seus créditos são tamanhos, seus serviços à Pátria o fazem uma força da História, que não estaríamos servindo à comunidade se contemplássemos cada milímetro da sua vida ou cada cota da sua obra com a indiferente curiosidade de microscopista para apontar, aqui ou ali, uma sombra ou uma jaça.

XXI

POVOAR DE ÍDOLOS O JARDIM DA PÁTRIA

As nações, especialmente as jovens, precisam povoar de numes e semideuses os céus ainda relativamente desertos da sua crônica.

Em uma das vezes em que me tocou a honra de dirigir o Itamaraty, tive de fundar um Curso para a preparação obrigatória de quem quisesse ingressar nos quadros da carreira diplomática. E esse Curso aí está vitorioso, depois de mais de dez anos de fecunda experiência. Não deixava de ser uma inovação ousada a criação de uma Academia Diplomática. Quando fiz saber aos meus auxiliares que ia colocá-la sob a égide do Instituto Rio Branco, existente desde o ano anterior, sem destinação concreta – uma espécie de fachada privada de conteúdo real –, um dos meus mais próximos e brilhantes colaboradores sugeriu-me que não aumentasse o número já considerável de evocações nominais ao grande chanceler; já havia – disse ele – a Casa de Rio Branco, o gabinete de Rio Branco, o Instituto Rio Branco, até Avenida Rio Branco, o Território Rio Branco. Por que não Curso Joaquim Nabuco ou outra denominação? Minha resposta foi justamente fundada na conveniência de insistirmos na consagração do homem, não só por tudo quanto valia e representava, senão pela forma simbólica de uma insistente mitologia nacional.

Para que de todas as coisas se extraia uma filosofia, não esqueçamos que essa unanimidade não marcou a obra de Rio Branco, ao tempo em que viveu. Combateram-no da naneira mais agreste. Por vezes selvagem. No Parlamento como na imprensa. Sua própria posição no Governo, ao tempo do Tratado de Petrópolis, que o nosso Cassiano Ricardo colocou na moldura de um livro magistral, chegou parecer abalada e a caminho da perdição. Ele mesmo assim o escreveu a Gastão da Cunha, seu verdadeiro líder, na Câmara Federal: “Ando muito cheio de tristeza. Eu por cá já dei o meu cacho.” O recente livro do brilhante escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade, acerca de Rio Branco e Gastão da Cunha, é um repositório de revelações, inesperadas pelos contemporâneos.

Na época em que a paixão política disparava sobre o Tratado de Petrópolis suas granadas incendiárias, houve quem escrevesse que Rio Branco havia “retalhado o solo de sua Pátria para dar ao estrangeiro”.

Nem Rodrigues Alves nem Rio Branco cederam ao clamor artificial, e seguiram adiante, à espera da justiça da História, que não tardou a considerar a obra diplomática daquela época como das melhores do período republicano.

Graças a Deus, os céus carregados de ameaças e distorsões da verdade foram a tempo despejados, e Rio Branco pôde completar sua gigantesca missão, lutando até o derradeiro alento.

Esse foi o varão a que consagrastes um dos mais fecundos esforços do vosso talento, da vossa capacidade de aprofundar os problemas nacionais, de interpretar a criatura humana.

Entre tantos que enalteceram vosso livro, transcrevo o juízo de um só – pela sua autoridade em todos os sentidos, Gilberto Freyre:

“O livro do Sr. Álvaro Lins sobre o Barão do Rio Branco – ou sobre os dois Rio Branco? – é dos que, desde as primeiras páginas, nos dão o gosto raro do contato com uma obra monumental.”

XXII

O SENTIDO HUMANO DE RIO BRANCO

Se me permitis, vou acrescentar, à margem do vosso esplêndido retrato do chanceler, uma nota de predileção pessoal. É que, no grande homem, no consumado diplomata, no governante, o que infinitamente me seduz é o humano vinco da sua personalidade, aquele terra-a-terra que, sem quebra da dignidade da função pública, não lhe deixava nem tempo nem prazer para a morgue, para a armação, para a presença da glória ou a antecipação da posteridade. Rio Branco era o homo sum, de Terêncio, interessado em todas as coisas humanas, as mais altas quanto as mais contingentes. Despia o fraque, no Restaurante Rio-Minho, porque sentia calor e não julgava que, por ser ministro, fosse pecado ou proibido imitar os que, em mangas de camisa, saboreavam a peixada da célebre casa de pasto da Rua do Ouvidor. Se não lhe vinha o sono, depois de aprofundar o exame dos documentos ou o estudo dos mapas, de que precisava, lá se poderia surpreender, no gabinete da Rua Larga, caçando moscas e mosquitos com a vela, enquanto a cidade dormia, o aposentado boêmio da juventude, convertido no chanceler da República.

Entre os fatos pouco notórios da vida do barão há que me parece a mais perfeita das suas definições. Apurei bem sua veracidade, em contato com os últimos dos seus colaboradores ainda vivos. Como sabeis, naquele tempo o ingresso na carreira não dependia de concursos ou de provas. O Instituto Rio Branco, da época, era o próprio ministro, que se incumbia de averiguar por método direto, a capacidade dos postulantes. Nisto, também, o barão era exímio. O rapaz chegava, bem vestido, bem admoestado para guardar um aspecto, que chamaríamos pré-diplomático, e submetia-se ao interrogatório do ministro. Com seu jeito peculiar, Rio Branco devassava até o fundo as possibilidades do aspirante, não sem antes ter lido a inevitável carta de recomendação, trazida pelo moço e assinada por um dos astros políticos da República. Por vezes a auscultação se repetia e, conforme os resultados, lá vinha a nomeação para adido, que era, então, o posto inicial da carreira.

Certa vez, o Congresso criara cinco novos lugares de adido. As nomeações, feitas por portaria, não dependiam senão da assinatura do titular da pasta. Entre os candidatos, um havia a quem o barão declarou ser insuficiente seu preparo para a função. O rapaz, porém, não se conformou com a inabilitação ministerial. Conseguiu ser recebido pelo Presidente da República, o ilustre e austero Afonso Pena, ao qual recorreu com certa facilidade de acesso, por serem ambos mineiros. O presidente escutou-o atentamente, tirou depois da gaveta seu caderninho de notas e escreveu qualquer coisa, entre o agradecimento e a esperança do reclamante. Correm os dias; as nomeações precisam ser feitas. Rio Branco mandou que Pecegueiro do Amaral preparasse as portarias; mas, no fundo, excelente político, com experiências dos homens, desde a teimosia com que o imperador lhe negara o consulado de Liverpool, antes de assiná-las foi ao Catete. Recebido por Afonso Pena, disse-lhe que dispunha de cinco vagas de adido, a serem preenchidas, sem demora, por necessidade de serviço. “Vim pedir a Vossa Excelência a lista de seus candidatos.” “Espere, aí, barão”, respondeu Pena, “deixe-me ver uma nota, que tomei a respeito.” Abriu a gaveta tirou o caderninho e disse: “Tenho um só, o jovem Fulano.” Era exatamente aquele que o barão não considerava com suficiente preparo, na sua inspeção vestibular! E logo Rio Branco a responder: “Veja só, senhor Presidente, esse rapaz é o primeiro da minha lista.”

Tornando ao seu Gabinete, mandou refazer uma das portarias, substituindo o nome de um dos seus favoritos pelo favorito do Presidente. Diante do respeitoso espanto de Pecegueiro – o fidelíssimo Pecegueiro, celebrado no anedotário da época! – Rio Branco tapou-lhe a boca com esta frase, que é um retrato de sua grandeza: “Então você pensa que eu vou prejudicar a obra que estou realizando por causa da nomeação de um adido?“

Autêntico grande homem o Barão do Rio Branco! Quando a República foi proclamada, depôs nas mãos do Governo seu modesto consulado. Serviu ao novo regime, sem abdicar dos compromissos com a Monarquia. Foi ministro, lutando para não sê-lo. Quando Zeballos criou a intriga internacional do Telegrama n.º 9, esmagou a calúnia, com as provas na mão. Quando a Alemanha imperial mandava caçar um dos seus súditos, nas costas de Santa Catarina, violando a soberania brasileira, dispôs-se a meter no fundo do mar a conhoneira Panther pelos nossos couraçados, então esplêndidos de juventude e poder de fogo, se não recebesse do Governo do Kaiser as satisfações devidas. Não se amedrontou com a campanha parlamentar e jornalística contra a obra criadora do Tratado de Petrópolis. Administrou o Itamaraty para o Brasil, não para os partidos ou os líderes da época. Humano da cabeça aos pés, não criou um caso pessoal pela escolha de um adido, nem por tão débil razão interromperia sua obra em curso. Outro, de fraco entendimento e de dignidade postiça, sairia batendo com os pés e as portas. Mas esse ou esses teriam todos os predicados, menos um: ternura pelo sentido humano das pessoas e das coisas, aquele milk human kindness, da tragédia shakesperiana.

XXIII

ROQUETTE-PINTO

Sr. Álvaro Lins. Agora já vos pertence vitaliciamente – pela eleição e a posse – a Cadeira 17. Roquette a considerava, como acabais de recordar, a Cadeira dos professores. A Academia sancionou-lhe a denominação, elegendo-vos para substituí-lo. Do patrono até vós, nenhuma interrupção no critério. Um acaso? Uma coincidência? Uma intenção? Por que e para que aprofundar certa coisas de explicação difícil? Melhor é acreditar que uma harmonia secreta domina, não raro pela vontade divina, nossos pensamentos e ações.

À solidez e ao brilho da obra, que vos assegurou o vote unânime da Academia, acrescentais esta noite o estudo sobre o glorioso Roquette-Pinto, o mais completo de quantos até hoje se empreenderam acerca do homem de ciência e de Letras, o escritor, o pensador social, o educador o criador de valores espirituais, que foi vosso predecessor. Bastaria o discurso que acabamos de aplaudir, para alcançardes, renovados, todos os sufrágios dos vossos confrades. Do polígrafo, que foi Roquette, dizeis com o habitual acerto e acuidade: “Rondônia é o centro ígneo dos seus territórios culturais; é a capital do seu País de trabalhos não mais acabados, de iniciativas que se sucederam em ritmo de multiplicação.” “É o seu único livro oficial construído como obra inteira e fechada em si mesma”.

Ouvindo-lhe agora a leitura, apreciando a segurança com que fixastes Roquette-Pinto no quadro da apreciação e da crítica, cedendo ao natural encanto da perfeição, clareza e fluidez da vossa forma literária, bem compreendi como Georges Bernanos, quando viveu no Brasil durante a última guerra – ele que foi um dos maiores escritores do nosso tempo – houvesse deixado a vosso respeito este testemunho, que é um julgamento: “... os católicos agonizantes, de que falava outro dia o Sr. Álvaro Lins, em dois admiráveis artigos de frêmito pascaliano, de um estilo tão ágil e nervoso que me lembrou algumas das mais belas páginas da língua francesa.”

Não era a primeira vez que um intelectual estrangeiro vos situava entre os grandes da Literatura. Quando comentou vossas “Notas sobre um Diário de Crítica”, Roger Bastide escreveu que, “para traçar a genealogia do tipo do Diário de Crítica, seria preciso, depois de Montaigne e Gide, falar de Charles Dubos e Álvaro Lins”.

XXIV

UM TESTEMUNHO PESSOAL

Sob outra luz, um testemunho não poderia eu omitir, nesta solenidade, acerca do vosso gesto, tentando renunciar à cadeira de Estudos Brasileiros, em Lisboa, quando soubestes que os dramas da política interna me determinavam a renúncia, em junho de 1953, da pasta das Relações Exteriores, que vinha exercendo durante cerca de três anos. Não calo a vossa atitude, porque ela completa o vosso perfil. Minha resposta foi, porém, peremptória: “Meu caro Álvaro Lins – A sua carta do dia 23 encheu-me de justo orgulho. Outra coisa não poderia esperar da sua retidão pessoal, que é uma das características de sua personalidade não absorvida pelos deveres da Literatura, da crítica e do magistério superior. Mas eu seria o último dos brasileiros a votar pela sua renúncia à Cadeira, que lhe tocou – não por munificência minha – mas pelo seu proverbial valor. A sua escolha me deu força a mim, não a minha a você”.

Para muitos intelectuais a Academia é o fim da viagem, a que se chega com o peito estrelado de grã-cruzes reais ou simbólicas, e a fama consagrada pelo louvor da crítica ou ainda impugnada em apaixonados debates. Para falar verdade, nem se sabe quando a notoriedade é mais agradável: se com os aplausos tranquilos, embora um pouco insípidos da unanimidade ou da indiferença, ou quando, apesar dos anos, continua sobrando sobre o gladiador, entre os louvores a ventania das lutas, das negações, das injustiças que são talvez a melhor das coroas, porque trazem a certeza ou fabricam a ilusão da juventude, com o homem ainda de pé no cenário, esgrimindo sem pressa e sem pausa, como estrela goethiana. Vosso caso, Sr. Álvaro Lins, é dos raros. Entrais na Academia com as velas sem fadiga, abertas no rumo de novas travessias. A viagem continua. Mares, que ainda não navegastes, se encrespam à vossa espera. Pode ser que as sereias de outras tentações, como a Política, estejam aguardando a vossa passagem para desviar-vos da rota comprometida. Na era atômica, as precauções do prudente Ulisses já não bastam. Tereis de recorrer a nova defesas e sortilégios. O melhor de todos é a força de vontade, sob a graça de Deus.

XXV

O MUNDO DE HOJE E DE AMANHÃ

Obras há que tendes de começar e concluir. Apena de hoje em diante, dividireis com a Academia os vosso louros, segundo a jurisprudência da tradição.

Gide, no seu inconformismo, escreveu em Caractères a amarga sentença: L’on vient trop tard. Não; na insondável harmonia dos juízos divinos e das realidade humanas, todos chegam na sua hora. Pode ser que a vida revele desencontros nas afeições ou nas vocações. Ainda assim há um mundo de surpresas que sempre nos esperam seja qual for o tempo em que se nasce.

Vossa ascensão não chegou ao alto da montanha. Só não podeis é continuar prosseguindo como na metade deste século, com as mesmas ilusões da escola primária de Caruaru.

Até as crianças têm agora um ar de malícia ou de ingênua sabedoria.

Recebendo, não faz muito, Jean Cocteau na Academia Francesa, o Sr.André Maurois recordou que o poeta lhe contara, como apólogo, uma historieta de sabor irresistível. À noite em que nasceu um dos seus sobrinhos, o pai foi despertar o primogênito, para dizer-lhe que um anjo acabara de chegar, trazendo-lhe um irmãozinho. “Queres ver teu irmão?”, perguntou o pai. “Não”, respondeu o pequeno, “quero ver o anjo.”

Todos, Sr. Álvaro Lins, querem ver o anjo, devassar o que se oculta atrás da última prega do horizonte, compreender a universalidade dos segredos.

Os mares e as terras estão descobertos. Os conquistadores buscam agora os continentes celestes, as perturbadoras incógnitas não decifradas.Talvez indecifráveis.

Este é o nosso mundo. E continuará sendo o vosso, Sr. Álvaro Lins, por muitos anos, se Deus quiser, e, apesar de tudo, belo e ardente como os melhores sonhos.

7/7/1956