Sei que esta Casa tem sabido escolher, tem procurado acolher, personalidades referenciais da vida e da cultura nacionais. Não sei, não me lembro de momento, se alguma vez escolheu um intelectual do Renascimento. Mas um sábio e severo cidadão da Renascença que, contrariando as indicações predominantes naqueles dias ensolarados e renascentes, se fizesse acompanhar de Deus, e mantivesse com Ele as melhores relações. Se isto não aconteceu, como suponho, está acontecendo agora, com a chegada de Alfredo Bosi à Casa do seu amigo, do seu autor preferido, Machado de Assis. Aquele mesmo que soube conciliar as condições aparentemente inconciliáveis de sábio e bruxo. São coisas dos renascentistas e dos seus descendentes diretos ou indiretos.
O Renascimento pressupõe e implica um nascimento que o antecede e apóia. Até mesmo um lugar trepidante e vital de onde ele retira energias insólitas, e ao qual ele confere vida nova. Por isso todo renascimento constitui uma releitura do acervo pretérito, que lhe oferece um mapa e uma bússola. Os demais instrumentos de navegação já se acham nas mãos do navegador, apto e desejoso de encontros previsíveis ou imprevisíveis.
O reconhecimento jubiloso dos predecessores, o vigor expressivo da palavra, o destaque da retórica como disciplina nuclear, estão inscritos nesse horizonte de possibilidades da Renascença. É o modelo humanista antropocêntrico em ação. E na mesma linha de força do humanismo vazado de espiritualidade, a que não faltou a cobertura argumentativa do pensamento florentino. Muito distante destes nossos dias de baixa modernidade, onde o messianismo e a filantropia se mascaram de solidariedade.
I
Hoje já se anuncia o pós-humanismo. Porque o desconstrucionismo, em uma das suas vozes mais inventivas, que foi Michel Foucault, já decretara a “morte do homem”. Como Friedrich Nietzsche o fizera ao proclamar a “morte de Deus”. Creio que ambos, Deus e o homem, o primeiro mais do que o segundo, embora operando em zonas de turbulência, mostram-se saudavelmente resistentes.
Aliás, resistência é o termo-chave do trabalho crítico do pensador católico Alfredo Bosi. Resistência, convém insistir, e não dissidência. A dissidência cultiva o gosto separatista, não raro excludente. A resistência é confluente, e toda voltada para a inclusão. Ele próprio, o autor de Literatura e Resistência, é um resistente, de palavra e de ação. A palavra se encontra nos seus escritos, na sua vasta e consistente obra. A segunda vertente pode ser emblematizada na Vila Yolanda, em Osasco, nas reuniões da casa paroquial assistida pelos padres operários franceses. A essas inflexões se junta a sua exemplar docência universitária. O resistente, no caso, se vê animado, o tempo todo, pelo valor da compreensão. “Não nos cabe senão compreender resistindo e resistir compreendendo”, diz ele. E para resistir compreendendo, dizemos nós, é preciso estar em permanente estado de alerta, de acolhimento, de hospitalidade, imune ao pré-conceito, à indisposição ideológica, aos reducionismos de todo tipo. Este é o primeiro compromisso de Alfredo Bosi, todo debruçado, e nunca curvado, sobre o marco de referências que lhe oferecem as letras e a cultura do seu país e do mundo. Certo de que a depuração ideológica, qualquer que seja ela, nunca apaga nem anistia a injustiça social, logo se desfez “daquela mistura ideológica e datada de mitologia e tecnicismo”, a que se refere no seu Céu, Inferno.
Ele começa por valorizar a genealogia distante e a mais próxima, até chegar à modernidade e à contra-modernidade da contemporaneidade nacional.
II
O Estado redentor da era tridentina, soldado pela aliança de fé e império, é submetido a um esforço de avaliação que, embora isenta, vem a ser menos risonha e mais franca. A crueldade do processo colonizador nunca foi poupada pela sua pontaria crítica. O percurso da cultura brasileira registra, desde cedo, uma série de combinações ou de entrecruzamentos, sintomáticos da diversidade. E deixa ver a rede de contradições, contrastes e confrontos, que a envolve e modela: o contraponto de ação e revelação.
A sua dialética emancipada o ajuda a compreender as contradições do período, e a negatividade, “a boa negatividade”, possibilita contornar as armadilhas da própria dialética. Com o que ele alcança sínteses exemplares. “A ação – colonizadora – diz na sua excepcional Dialética da Colonização – reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do culto e da cultura.” A previsível, porém difícil, complementaridade das camadas constitutivas da vida cotidiana, adquire inesperada transparência graças às condições interpretativas. O que é particularmente apreciável em um momento de pouca pluralidade hermenêutica.
A crítica tem sido uma atividade sedentária, talvez mesmo preguiçosa, por mais assídua que seja. Tanto mais sedentária, quanto mais assídua, e tanto mais assídua, quanto mais sedentária. Ela se repete o tempo todo, aprisionada sem resistência a um repertório entrópico. Os críticos dedicados ao regime de exclusividade, que emitem sentenças no singular, infensos às diferenças que os rodeiam, que ignoram a pluralidade do continente literário, terminam sendo apenas observadores insulares. Uma grande literatura são várias literaturas. E rara é a crítica militante que sabe renascer, diante de cada novo sinal da linguagem. Ela parece preferir a repetição inócua e opaca, e habitar, sem o menor constrangimento, o reino das idéias prontas. O oposto do que faz Alfredo Bosi. Ele constrói na outra margem do rio ou, se me permitir o meu saudoso amigo João Guimarães Rosa, na “terceira margem do rio”.
Literatura e Resistência vem a ser, reforçando talvez o que disse antes, a literatura vista jamais do ângulo da acomodação, do registro neutro, da fotografia incolor, porém da perspectiva da insatisfação, do inconformismo, da recusa radical à violência. Bosi sabe que a realização poética, sendo prática estética aliada à compostura verbal – o que não significa, de modo algum, passividade estilística –, é também desempenho ético. A composição ético-estética do Memorial de Aires, que ele define como o testamento moral e literário de Machado de Assis. E é a ética que alimenta e confere sentido à conseqüência política.
III
Olhando mais atentamente o retrovisor da História, vamos perceber que essa solidez teórica tem um longo itinerário. Vem do cristianismo longínquo e acompanha todas as suas mutações ou os seus acréscimos. Passa pela Idade Média, debate em profundidade a Reforma e a Contra-Reforma, estaciona detidamente no Renascimento e nos antecipa visões do maneirismo e do barroco. Benedetto Croce reprograma a compreensão histórico-estética. Lukács, Gramsci, Dilthey, Weber, Simmel, não estão e nem poderiam estar ausentes. Ao longe se pode notar a silhueta inconfundível de Giambattista Vico. Não creio que se pudesse saltar da duração temporal bersoniana, do neo-esteticismo croceano, do culturalismo, da hermenêutica, do raciovitalismo, do existencialismo, para chegar pressurosamente à Escola de Frankfurt. A própria Escola de Frankfurt configura uma discussão interminável sobre os legados de Hegel, Marx, Freud e Heidegger. Que o digam Jürgen Habermas e Sergio Paulo Rouanet. Ou se quisermos precisar um pouco mais o roteiro de Croce a Adorno, tão grato a Bosi, e retomar “a dialética dos instintos”. Compreende-se ainda a importância que confere a Albert Camus na “formação da sua ética de resistência”. Certa ascendência camusiana reacende a flama estilística, que já fora assegurada pelos seus confrades italianos, e bloqueia e anula o corte prescritivo da ética tradicional. O revigoramento sisifiano do recomeço, ou do renascimento, algumas ressonâncias da “estética da revolta”, confirmam significativas afinidades eletivas. O vigor teórico, tão raro hoje, se encarrega de pôr cada coisa no seu devido lugar.
A herança historicista, e em alguns casos a evolucionista, perturbaram insistentemente o desdobramento da nossa historiografia literária. Do mesmo modo o dualismo indissociável do nosso sociologismo de cátedra. Por isso Bosi se considera no dever de predicar por um “historicismo renovado”. O protocolo assinado, com extrema coerência, entre a poesia e a história, entre a crítica literária e a crítica da cultura, mostra-se altamente fecundo e fecundante – a historicidade sem a reclusão historicista.
Mesmo levando em conta a contribuição valiosa de predecessores respeitáveis, é com Alfredo Bosi que “toma forma uma nova historiografia – e aqui recolho palavras do próprio Bosi, dirigidas a outros destinatários ilustres –, para a qual a história das expressões simbólicas se abre para dimensões existenciais e culturais múltiplas que não se reduzem à condição de alegorias ideológicas”. Em vez da historiografia transcendentalista, sem muita vontade argumentativa, mas estimulada por todo um cortejo de empreendimentos essencialistas, Bosi coloca a história com a cabeça no mundo e os pés no chão. Com o que ele igualmente consegue o aproveitamento transideológico do capital simbólico. Se é que capital simbólico, expressão tão do agrado de Pierre Bourdieu, não traduz simplesmente a contradição em termos de que fala Immanuel Kant.
IV
O regime de coabitação entre o crítico e o historiador é perfeito. Nos dois casos, ampliado pelo ensaísta, pelo inventor da linguagem, pelo criador de um estilo vertical, sem estilizações e sem concessões ao ornamento ou ao supérfluo, sem arrogância e sem estridência. Como convém aos servidores da linguagem que eclode dos e cria os – caminhos do mundo.
Quando o texto do observador se distancia qualitativamente do texto do observado rompe-se a rede da co-naturalidade. O observador passa a falar da poesia de fora da poesia, exteriormente, longe da sua tensão constitutiva. E nesse caso os resultados argumentativos deixam muito a desejar.
Diante da intensidade poética da prosa exemplar de Alfredo Bosi, confirmo uma velha suspeita que venho propalando pelos quatro cantos do mundo: a poesia não é propriedade nem privada nem privativa do poema. Ela habita as mais diversas geografias, e os tempos mais presentes, mais passados, mais futuros. Às vezes pode ser encontrada no assombro da prosa e desaparecida no desterro do poema. A poesia é o poema menos a sua limitação expressiva. Pude revisitá-la agora, depois de tantas andanças infrutíferas, na criação ensaística de Alfredo Bosi.
É essa agudeza que assegura a especial mobilidade do discurso de Alfredo Bosi, sempre propenso a absorver, com inusual propriedade, choques expressivos, deslocamentos semânticos, alterações sintáticas, percepções várias, subversões temporais e espaciais. O ensaísta que pensa, que sabe utilizar afinadamente os seus instrumentos de reflexão. Nunca o escritor tagarela, porém o parcimonioso gestor da palavra. Ou, como diz Bosi, ainda no marco da historiografia: “o historiador das produções imaginárias familiarizado com a multiplicidade dos processos simbólicos”.
Entre as tarefas relevantes levadas a efeito pelo trabalho do pensador Alfredo Bosi, convém apontar a flexibilização, a desconstrução do conceito de identidade. O conluio desenvolvido pela metafísica objetiva e a dialética idealista enrijeceu os movimentos do corpo identitário. Tudo isso aconteceu, coincidentemente, nos instantes matinais das formações nacionais modernas. A serviço dessas construções territoriais, ela recorreu à proteção ideológica, na certeza de se fortalecer e se proteger da dispersão e da cobiça alheia. A ideologia identitária passou a ser uma fortaleza, movida por uma lógica de guerra. Assim, a identidade, nos termos absolutos que a sua genealogia exprime, além de ser uma contrafação teórica, termina sendo o caminho mais próximo para a condução ou o instrumento mais adequado para a produção dos dogmas fundamentalistas.
Já as identidades afins, ou afinadas por dentro e por fora, tendem a construir lugares de convivência altamente criativos. Não é o que acontece com a identidade fabricada nos laboratórios da metafísica hegemônica. Esta é antes a ilusão de ótica ou a quimera arrogante. A identidade iludida e eludida pela metafísica foi se afunilando sob o patrocínio da modernidade unanimista. Para se recuperar e saltar o muro por ela mesmo edificado, terá de se desfazer desse fardo analítico, pensando o ainda não pensado. Do mesmo modo que, para decretar o “fim da história”, seria necessário sair da história. O que não é possível pela consagração da mais-valia historiográfica, no espaço supostamente privilegiado do paraíso neoliberal.
Diante deste dilema, a identidade teria de regressar à fonte, e avançar sobre o horizonte do possível. Criar, portanto, referências argumentativas outras. Sempre tendo em vista que nada é idêntico a si mesmo. Nem o mesmo, que vem a ser o mesmo do outro, em cenário em que a recíproca é verdadeira. O mais constante, e idêntico em nós, é esse modo de ser múltiplo e diverso. Ou os instantes em que nos afastamos da identidade como aquisição natural ou apropriação cultural.
São lições que vamos retirando do ensaio, tão revelador, de Alfredo Bosi.
V
Sob o signo do pluralismo, certamente com a ajuda da filosofia e da literatura, e resistente às dicotomias das ciências sociais, Alfredo Bosi conduz criteriosamente o seu projeto interpretativo da “nossa produção simbólica, quer ideológica, quer contra-ideológica; produção – segue ele no Posfácio 2001 à Dialética da Colonização – que vem revelando desde os tempos coloniais aspectos contraditórios de nossa vida em sociedade e, portanto, de nossa história cultural. Contradição – é ainda Bosi quem acrescenta – implica multiplicidade e simultaneidade das tendências divergentes”. A concepção plural da cultura e do texto preserva a sólida aliança. Mesmo que em certas passagens do exercício interpretativo possa destacar-se o pano de fundo sociológico, psicológico, Alfredo Bosi nunca subestima os intercâmbios simbólicos que calibraram proporcionalmente as jornadas do desejo que se infiltram nas jornadas do trabalho, sobretudo na cultura do “múltiplo e mestiço”, como identificara adequadamente. Este “país tupi-barroco-surreal” (são palavras de Bosi), sensível às ordens do homo ludens.
Dos tempos da colonização à era da comunicação, da “Galáxia Gutemberg” à “Galáxia Internet”, o percurso é longo e acidentado. E Alfredo Bosi o acompanha, compreende e o faz renascer, com sedimentada acuidade. Combinando filosofia, cultura, história, antropologia, literatura, fortalecendo interfaces que o Renascimento tanto valorizou.
O sistema colonizador opera, o tempo todo, com argumentos de autoridade, sob a égide do Império e da Fé, por vezes se chocando com o humanismo da Paidéia.
O sistema midiático não é menos autoritário. Nem menos veloz e voraz. E não tardou muito o salto para a cultura da publicidade, orientado pelo vademecum do consumo. Logo, um salto para trás.
O controle midiático das relações societárias gangrena o convívio interpessoal, e encurta ou denega as situações livremente intersubjetivas. O entretenimento puro, os fait-divers, a notícia, nivelam por baixo. Os atores sociais são submetidos a um drástico esquema de manipulações, sobretudo advindos do controle publicitário. “O cinema fabrica a rememoração e a televisão, o esquecimento”, distingue o cineasta Jean-Luc Godard. E é porque há diferença que há discussão, diálogo, encaminhamento proveitoso desse debate que já vai ficando ocioso. Em meio à derrocada de todo um conjunto de referências até há pouco vigentes. “Quanto à poesia – afirma Alfredo Bosi, no texto-manifesto ‘Poesia-Resistência’, incluído no seu Ser e Tempo da Poesia – parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender.” Mas como é preciso resistir, devemos explorar as muitas faces da resistência. Bosi se movimenta entre a compreensão e a resistência. É porque compreende que resiste. E porque resiste, compreende mais.
Alfredo Bosi, que desmitificara o processo colonizador, sem apelar à lamúria, ou ao ressentimento, afirma com a simplificidade dos não-enfáticos, a verdade serena do observador cuidadoso: “A libido do conquistador teria sido antes falocrática do que democrática na medida em que se exercicia quase sempre em uma só dimensão, a do contato físico.” O produto dessas uniões mais ou menos fugazes nunca eram os herdeiros, porém as extensões demográficas. Naquela época o DNA não decidia o rumo legal das coisas.
Na baixa modernidade, na era dos sem abrigo intelectual, do niilismo que sucede à “grande literatura”, Alfredo Bosi volta a Machado de Assis e nos oferece esta obra visceral, que é O Enigma do Olhar. Às vezes temos a impressão de que, a propósito de Capitu, ele está escrevendo uma poética despretensiosa, porém extremamente instigante e veraz. O olhar da literatura é como o de Capitu. Oblíquo porque não se conecta com a realidade em linha direta, linearmente. Dissimulado porque o seu discurso, ao mesmo tempo em que expõe, oculta. O que significa dizer, inventa o real. Com o real. Vive dessa crença esquiva, desse segredo instigante, dessa eclosão cifrada. Mas a hermenêutica bosiana não tem a preocupação de expor à visitação pública a análise laboratorial do enigma. Capitu é a literatura. Decifrar o enigma corresponde a matar a ambigüidade – no caso estruturante –, que é um dos mais vigorosos recursos da linguagem literária.
Cláudio Magris, no seu belo livro Os Anéis de Clarisse, identifica no niilismo moderno o sucedâneo inevitável do perecimento do “grande estilo”. Resta, nesse nevoeiro cerrado, a tese mais cara ao resistente Alfredo Bosi – “a resistência da poesia como uma possibilidade histórica”, entre a emergência e a insolência do novo, e que faz do escritor moderno o estrangeiro, o errante, o expatriado, defendendo, menos do que os seus interesses, a sua liberdade, no mercado comum da indiscriminação vazia ou da homogeneidade esterilizante. Ambas, suicidas.
VI
E agora, para terminar, e levando em consideração que falar de Alfredo Bosi é um empreendimento interminável, vamos encontrá-lo, ele, o crítico moderno, cosmopolita diante do movimento modernista de São Paulo. A modernidade se erguia sob a égide da razão e da universalidade. O nosso Modernismo, vez por outra, sentia enormes saudades do Brasil profundo. E a pergunta retorna, cada vez mais ansiosa: até que ponto os modernistas foram modernos? Bosi nos entrega a excepcional compreensão da Semana de Arte Moderna de 22. Nem apologética, nem difamatória – apenas criticamente sensata. Ela foi modernista e moderna. É o que nos ensina este intérprete das culturas brasileiras, do Brasil.
Tenho certeza de que Machado de Assis, se aqui estivesse, teria dito, parodiando o poeta Manuel Bandeira, no poema em que São Pedro recebe a preta Irene: entre, Alfredo Bosi, você não precisa pedir licença.