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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afrânio Peixoto

RESPOSTA DO SR. AFRÂNIO PEIXOTO

PERMITI-ME, senhor Alcântara Machado, para vos tranqüilizar logo às primeiras palavras, do emocional transe de neófito, que vos faça uma confidência pessoal. Há trinta anos, ai de nós... conheci um rapaz, que admirava a outro rapaz. Mas não sabia que este o era, também. Meu mestre, Nina Rodrigues, dera-me a ler uma de vossas memórias sábias e dela saí com a convicção que éreis um sábio médico provecto, tanto era a sabedoria, o juízo, a erudição, a segurança, a experiência, todas a deporem contra o bacharel bisonho que, na realidade, a subscrevia. Neste longo lapso de tempo, mais que bastante para que se mudem impressões, mantenho a que tive, de vossos primeiros trabalhos, que os outros engrandeceram, mas não melhoraram.

Não seria possível. Aparecestes já definitivo. A vossa musa é a da perfeição. Para que um fato público confirme este depoimento, lembrarei que as cátedras de Medicina Legal, tanto nas Faculdades de Medicina, como nas de Direito, sempre foram providas por médicos, vós constituís singular e honrosíssima exceção; sois o único bacharel professor de Medicina Legal de uma Faculdade Superior, após concurso público de provas que vos deram renome; sois hoje o príncipe dessa Medicina Legal no Brasil. Vossas memórias, escritos, lições, tratados, instruem minhas afirmações, que não serão contestadas. Por elas estaríeis bem aqui, como os grandes médicos ou jurisconsultos que se assentaram na Academia Francesa. Também foram dos nossos Osvaldo Cruz e Pedro Lessa.

O “ROUGE” DE MINERVA

Minerva é a sabedoria, e não apenas o enfeite dela, as letras.
Tranqüilizai-vos: não trairei o vosso anonimato, e pseudo-anonimato literário, mas devo e posso afirmar que, por esses enfeites da sabedoria, – o rouge de Minerva, que é a literatura, – bem podíeis estar entre nós... Vossa Medicina Legal, se fora preciso, me ajudaria a identificar “Álvaro Álvares”. Por mais avaro que sejais de vossos tesouros, que selados relatam vossos secretos flirts com a Musa, sempre os indiscretos aparecem, que antecedem ao vale de Josafá, onde tantas surpresas nos aguardam. Aí, saberemos que sois poeta, e os que vos conheceram, nos havemos de perguntar: mas se foi assim, e tão bem, por que o escondeu? Há pudores inexplicáveis: o vosso vive em perpétuo combate com o vosso merecimento.

Há um poeta morto, já o disse outro poeta, em cada homem que amadurece, e já estáveis de vez, quando a idade apenas vos enverdecia. O poeta cedeu o passo ao professor, mas aqui, sem o perigo das notas, bem é que ouçamos o poeta. Era na moda do parnasianismo, de Heredia e de Alberto de Oliveira, moda que não passará, será reinventada, quando a esquecerem, porque poesia é sentimento na forma e a forma presume do sentimento. É o “Arroio”:

Chorando, desce o arroio entre calhaus a fralda
Da colina, e a chorar pelo convale afora,
Sonha que longe, longe, onde refulge a aurora
Há abismos de safira e pegos de esmeralda.

Sonha... A actínia, a rodália, a fabulosa flora
Cujo estranho esplendor na solidão se balda...
A pérola doentia e pálida... a grinalda
De parcéis, que o coral entrelaça e decora...

Sonhando, o arroio chora, entre calhaus. Sorrindo
Às lágrimas, piedoso, o sol para contê-las,
De seus raios envia o mais loiro e mais lindo.
E no humilde cristal, efêmero tesoiro,
Ardem jóias de luz, estilhaços de estrelas,
Hieróglifos de prata e labaredas de oiro!...

De passagem, mostrastes, perdão, mostrou Álvaro Álvares, que podia galhardamente traduzir certo soneto intraduzível de Heredia, mas podia pôr na ânfora de cristal da forma herediana uma idéia piedosa e consoladora. Não prolongarei o vosso pejo, de vos afrontar, num salão de festa, com belos filhos vossos, que não legitimastes... Mas sempre quisera que ouvíssemos, depois de um som à Bilac, outro som, à Raimundo Correia. É o “Velho Tema”:

O homem, de gozo e de prazer sedento,
Pede à vida as delícias que imagina;
E ela, sorrindo, as ânforas inclina,
Que vertem a volúpia e o esquecimento.

Qual a ardente ambição, que te alucina
Alma ou sentidos? O poder violento,
O ouro invencível, o deslumbramento
E a doçura da carne feminina?

Todos os vinhos que provares, todos,
Hão de amargar-te os lábios imprudentes,
E verás, triste vítima de engodos,

Que, escarnecendo do desejo humano,
Serve a Fortuna em taças diferentes
O mesmo vinho e o mesmo desengano.

Sede benigno com o poeta, que o merece. Por que trancá-lo a sete chaves, sob o ilusório juízo que pode prejudicar ao jurista, ao professor, ao sábio, ao homem público? “Não fazem dano às Musas os doutores”, disse Antônio Ferreira, doutor e professor como vós, que teve desembargo, e tão bem arrazoou autos como poemas. Não há muito, para os nossos confrades do Instituto Histórico, escrevestes um exaustivo ensaio sobre Gonçalves de Magalhães: ainda é história, mas já é poesia. Já foi tentação. Batestes à nossa porta, que se vos abriu prontamente. Terá a Academia amavio bastante para vos convencer que, aqui, os sábios podem namorar as Musas, – e alguns são ousados... – e não deparam os versos de Aloísio de Castro entre as suas receitas, nem os contos de Roquette-Pinto contradizem a sua antropologia?

O AVÔ BANDEIRANTE

Foi como homem público que vos impusestes à consideração e à admiração de vossos contemporâneos e qualquer quinhão que escolhêsseis, tão pródiga e generosa foi convosco a vossa natureza, que seria a melhor parte, partem optimam elegit, como se diz nas Escrituras. O difícil em vossa geração é escolher. E como é digna de vós, a vossa geração!
O orgulho não será pecado vosso, tão discreto sois, mas há confissões do inconsciente, que não mentem. Vimos que o pseudônimo do poeta era Álvaro Álvares, isto é, Álvaro, filho de Álvaro. Prosas esparsas nos jornais assináveis: “Pero Peres”, isto é, Pedro, filho de Pedro: o filho se ufana do pai. Vos confessastes, sem o querer. Mas tendes razão: Alcântara Machado é filho de Brasílio Machado. E não será precisamente Pedro, senão mais antigo, Pero: Brasílio Machado é filho de José Joaquim Machado d’Oliveira.

Foi um varão ilustre, esforçado e douto. Foi soldado, batalhou nas campanhas do Sul contra Montevidéu e Buenos Aires, em 1812, herói em São Borja e Passo do Uruguai em 16, em Arapeí e Catalão em 17, Taquarembó em 20, chegando a brigadeiro em 44. Com a glória militar, tão prezada na América Latina, a imediata, a política, membro do Governo Provisório do Rio Grande, deputado por essa província na primeira legislatura geral, presidente do Pará, das Alagoas, do Espírito Santo, de Santa Catarina, deputado ainda por várias províncias, e pela sua, de São Paulo. Com a ação pública, o culto das Musas... o da história, o da geografia, memórias sobre índios, sobre estradas de penetração, sobre navegação de rios interiores, limites do Brasil com o Montevidéu, sobre o Paraguai... Machado d’Oliveira foi um bandeirante retardado, heróico e ilustrado. Dessa ilustração, além dos escritos, ficaram provas nas sessões do Instituto Histórico. Não é ele, em 1847, um dos signatários de uma proposta, aí, para fundar-se uma Academia de Letras? O sonho de Machado d’Oliveira é o neto, Alcântara Machado, quem o realiza, membro dessa Academia, entrevista pelo avô. Se grande obra é um pensamento de moço que realiza a maturidade, uma grande raça se reproduz nos seus elos de tradição e esperança, uns repetindo, ou alcançando, o ideal dos outros.

No melhor de vossa obra, Vida e Morte do Bandeirante, em que sentistes e dissestes a obra formidável dos que, devassando o Brasil, lhe fizeram a periferia regional dilatada, há, debruçado sobre o vosso ombro de escritor, a sombra ancestral de Machado d’Oliveira, bandeirante moderno que, pela ação, vos daria os hereditários acentos de evocação comovida... Esse livro vos conduz à Academia, que vosso ilustre avô imaginou, para vós...

Sabemos agora, Sr. Alcântara Machado, porque a vossa obra tanto faz bater o coração da gente. A impressão só é comunicativa porque foi sentida, e só a sentistes, porque um bandeirante a viveu para vós. Uma obra de arte é apenas uma confissão involuntária, um depoimento fidedigno, e tanto maior, quanto mais fiel. A vossa fidelidade vos está no sangue, indelével, irretratável, exata.
É a vossa maneira de ser, sendo o que foram para vós os vossos maiores. Aquele culto dos “meus mortos”, a tradição do passado, que foi a raiz do “egotismo” de Barrès, um adventício, vós é que o poderíeis celebrar... Em vós fala o passado, e de vós já fala o futuro... Não é que um jovem prosador modernista, de vosso lar, já é consagrado historiador, de Anchieta, de São Vicente, de Piratininga? Vossa fé, longínqua ainda, continua por diante...

DE TAL PAI, TAL FILHO...

Mas não antecipemos. De Machado d’Oliveira, veio Brasílio Machado. Não satisfeito com servir e amar ao Brasil, inventava um nome para tê-lo no lar e no coração: Brasílio foi o primeiro de uma série de brasileiros assim chamados. Este foi poeta, orador, grande advogado dos pretórios, abolicionistas, leader católico, universitário. Vinha daquela geração de Castro Alves, de quem fora amigo, sonhando a Abolição e a República, e “por mais de quarenta anos deslumbrou as escolas e os tribunais, servindo a verdade e criando a beleza”. Acabaria na ordem e na autoridade, da direção pública do ensino. Definiu Catão o orador, como uma investidura: o homem de bem que sabe falar. A ação moral de todos teve, neste, a floração externa da eloqüência, o que explica em vós tantos belos discursos, que estão nas vossas Alocuções, e não estão ainda todos em livros, mas ainda estão no coração dos paulistas. Não é o maior dos êxitos da eloqüência, sem ver o orador, sem lhe participar da ambiência, ouvir no meio da noite, à distância, pelo rádio, e aplaudi-lo, com veemência e comoção, como vos aplaudi, ainda o ano passado? É que vosso discurso, com a eloqüência de Brasílio Machado, tinha a ação de Machado d’Oliveira, e, na terra bandeirante, eram os avós todos que, pelo seu medium de eleição, sintonizavam em vosso gênio, no vosso coração, Sr. Alcântara Machado, exprimindo as angústias e as aspirações de São Paulo.

Voz da terra da gente no grande momento, os acentos eram desacostumados ao sábio, ao professor, ao jurista, ao escritor, que na vida pareceis, tolhido pelo vosso merecimento, “preferindo, à ilusão trabalhosa de fazer a história, o prazer positivo de contá-la...” Quando chegou porém a hora do dever, essa voz se elevou, como uma ação, à altura das ações épicas, também implícitas, na Vida e Morte do Bandeirante.

“VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE”

É vosso grande livro. Desde o título, desde o ofertório, à primeira página, que já diz tudo. É a epopéia evocada pelo termo mesmo da existência e seu trânsito. Poderíeis invocar ascedência lusitana: há linhagistas, e há orgulho justo em não trair aos maiores. Um dos vossos ascendentes se entronca com a família de um grande sábio francês, João Batista Say. Outro, com Dom Marcos de Portugal, o genial compositor português. Não importa. É a Antônio de Oliveira “chegado a S. Vicente em 1532”, que invocais. Não é ele que recebe Anchieta no natal de 53, como loco-tenente donatário, abrindo a porta de São Paulo à civilização cristã do Brasil? É o primeiro momento de vossa terra e de vossa gente. Essa terra, essa gente, é que vos preocupam. Não algumas datas e alguns nomes, sejam embora de heróis. “Como poderemos atingi-lo, – o objetivo essencial da história – se concentrarmos toda a atenção em meia dúzia de figuras, esquecendo o esforço permanente dos humildes, a silenciosa colaboração dos anônimos, as idéias e os sentimentos das multidões?” E São Paulo todo que evocais.

E vos debruçais, piedoso e interessado, sobre vinte e sete tomos publicados dos autos, exumados dos cartórios e dos arquivos, que relatam, na morte, a vida dos bandeirantes... São inventários, são testamentos, mas, por entre as fórmulas tabelioas, lá vem o espírito do tempo, neles “descarregam a consciência”, dão conta da vida e dos haveres, humildes que sejam, mas exatos, retratos fiéis de almas que se preparam para o justo juízo. “À luz que se irradia dessas laudas amarelecidas pelos anos e rendadas pela traça, dizeis vós comovido, vemo-las, a essas almas, surgirem vagarosamente do fundo indeciso do passado e fixarem-se, nas encostas vermelhas da colina fundamental, as casas primitivas de taipa de mão e de pilão. Recompõe-se por encanto o mobiliário que as guarnece. Sobre as mesas se dispõem as baixelas de prata suntuosa ou de estanho plebeu. Mãos invisíveis abrem as arcas e arejam as alfaias domésticas e o fato de vestir. As paredes se enfeitam de espelhos, armas ou painéis. Logo, porém, as cores empalidecem, as linhas se dissolvem, a miragem se desmancha; e no horizonte alargado, outro cenário emerge pouco a pouco e ganha forma e colorido. É o sítio da roça que aparece, com o casarão solarengo, posto a meia encosta, protegido do vento sul; as palhoças de agregados e escravos; os algodoais pintalgados de branco; o verde anêmico dos canaviais em contraste com o verde robusto e lustroso da mata circunvizinha; e arranhando o silêncio, a cantiga monótona de um moinho moente e corrente.” “Pelas vielas do povoado, através das lavouras, deslizam sombras. Rebanhos trágicos de negros, da terra, ou da Guiné. Mamelucos madraços e atrevidos. Potentados de grandes séquitos, cheios de rudeza e gravidade, que passam e de repente desaparecem tragados pelo sertão...” e lá vão... lá vão os Bandeirantes.

SERTÃO E LITORAL

A História, assim, como a quisera Michelet, é uma ressurreição... Vosso amor aos vossos, Sr. Alcântara Machado, é tamanho, que fez para nós o milagre, a evocação vivida de vosso grande livro, empolgante, como um romance de aventuras, a grande aventura nacional das Bandeiras, que devassaram o Brasil, e o fizeram, na sua comprida periferia regional, como na sua larga posse continental. Exato, entretanto, como um inventário, que minucia a vida, inexoravelmente. Dá-se conta de tudo, até de pobres pobrezas, e um testamento testemunha  da fé como o último credo. Muito depois vieram os testamentos vaidosos que exibiam os legados, a invejar e admirar. Mais tarde, agora, não há mais testamentos, há o medo do fisco, há a vã glória de dar a impressão do que se poderia ter feito não dizendo o que se fez... Os vossos Bandeirantes confessavam-se ao mundo, mas para Deus.

Esse livro é trecho de história do Brasil, o melhor da nossa história colonial, a que não se aprende nos tratados formais, escumadeira do que sobrenada, por leve ou visível, mas que não diz da vida que ferve e tumultua obscura, ignorada, aos que não sabem sentir e observar. No vosso livro é que se sente nascer e vagir o Brasil infante. O Brasil que ia ser e seria, e será o Brasil, porque nasceu e cresceu forte e digno. Tanto, que não conseguimos acabar com ele, nós, desse Brasil, leviano e tonto, o Brasil superficial.
Porque o verdadeiro Brasil é o sertão. Nós, do litoral, somos a ponta extrema da Europa, neste continente.

A ganância do negro, para o trabalho, a escravidão africana, fez ao Padre Antônio Vieira dizer: “o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”. Agora, já sem escravos, à Europa, os do litoral, nos recolonizamos... Vivemos aqui a vida estrangeira, que nos importam modas e imitações. Temos a face voltada para o mar, para o Velho Mundo, que ainda não deixamos.
O Bandeirante fez o Brasil, porque tinha a face voltada para o sertão. “Sem ele, dizeis, não se concebe a vida: por os moradores não poderem viver sem o sertão, proclamam-no os oficiais da Câmara, numa vereação de mil e seiscentos e quarenta anos.”

Largado de Deus e do mundo, o colono tinha aqui a alternativa ou de viver a vida mesquinha, “arranhando as praias como caranguejos”, na frase de Frei Vicente do Salvador, e foi o que fizeram os mofinos, embarcadiços, traficantes, gente mole e saudosa, ou haviam, os fortes, de afrontar a floresta, o deserto, as feras, os índios, sertão adentro, “cabo do mundo”, para a conquista. Estes é que fizeram o Brasil.

Os do litoral vivemos desse Brasil, do outro Brasil, trocando-o por pouco mais de nada, que nos trazem os europeus. Disse desses e de nós, aquele Padre Vieira: “Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era, não tem gasto: e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacudidela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos com dívidas de um ano para outro ano e de  uma safra para outra safra, e lá vai a vida.”

Essa é a história do Brasil, a do litoral e a do sertão, Esaú e Jacó. Dois irmãos, um contra o outro. A arte contra o trabalho, o supérfluo contra o necessário. Jacó, vaidoso e desperdiçado, contra Esaú, modesto e laborioso. A indústria do litoral contra a lavoura do sertão. Uma tradicional, a outra adventícia. Uma vivendo à custa da outra. Um produz, o outro consome; um paga impostos e mais impostos, de exportação e importação, de consumo, o outro constrói avenidas, jardins, teatros, dá festas, emite papel-moeda, impede a exportação, prende o câmbio, imposições de sua vida de perdulário. E, por isso, um explora e vende o outro. Na fraude bíblica da venda dos direitos de primogenitura, houve um prato de lentilhas: aqui é Jacó brasileiro quem troca e quem come: decide pelo outro; impede-o de exportar, estabiliza a moeda, impõem-lhe o pouco que deve receber, do muito por que vendeu e, além de explorá-lo, ainda o afronta com a sua farra. O Esaú nacional sofre e assiste de longe, porque se votou a essa piedade, que é o seu martírio e a sua glória: fazer o Brasil, a despeito de nós, brasileiros...

BRASIL NASCENTE

Esse Brasil, o sertão, começou-o a fazer o vosso Bandeirante. Piratininga, o vosso, o nosso São Paulo, foi a sementeira, o posto avançado que a civilização pôs à ourela do deserto, já no sertão, para devassá-lo. “O paulista se interna em parte e desertos de sertões mais prolongados. Embrenha-se até o reino de Camã e nas partes do Peru. Não se pode prever quando virá de torna-volta. Passam-se às vezes seis, sete e até dezoito anos, sem que na vila se saibam partes dos que um dia se foram... Só depois de muito tempo, é que lhe chega a notícia de ser o expedicionário falecido no decurso de sete anos, conforme o afirmam e juram número de testemunhas de experiência, que bem sabem o risco e perigo do sertão...” A morte é o menos. As calamidades, pestes, soalheiras, torrentes, traições, índios, feras, sofrimentos sem conta... Com a ambição dos “negros” a descer ou das minas a achar, vai-se talando o solo da pátria, lavouras se plantam, semeiam-se cidades, e lá vai o Brasil se estendendo até as lindes recuadas da América espanhola. Quando eles acordaram, esses espanhóis, o Bandeirante estava na escarpa dos Andes... O Brasil estava feito!

É esse Brasil nascente, – com a piedade de descendente de um Antônio de Oliveira, chegado em 1532 par fazê-lo, – quase em 1932, que um José de Alcântara Machado d’Oliveira, engrandecido o nome pelas façanhas e pelos méritos interpostos, “paulista de quatrocentos anos”, nos vem contar, num livro que há de contar, na nossa literatura histórica, livro de ciência, porque informa, e livro de arte, porque comove e exalta.

FELIZ ANTECESSOR DE TAL SUCESSOR

O vosso discurso, agora aqui recitado, prova à Academia que bem se houve, enfeitando-se convosco, gema literária, que sois, do mais puro lavor, do mais raro quilate: página mestra de crítica é o vosso discurso.

Feliz Silva Ramos que vos teve por sucessor, pois que o devíeis louvar. Em França os acadêmicos têm metade da incógnita revelada, se conseguem fazer coincidir o trespasse com o acesso de um amigo ao posto da presidência: será este quem receba o neófito e, de amigo, será menos incerto o louvor, pois até na imortalidade já existem herdeiros ingratos, que nem o nome pronunciam de quem os beneficiou com a vaga. O parco sucessor de Anatole France subtraiu-o da posteridade de seu discurso... Por isso, os vaidosos, e que temem, pelo menos, a represália de um afrontoso esquecimento, ajeitam-se com a morte, em fúnebre humorismo. Moribundo, o dicaz Alexandre Dumas Filho teve medo de alguma seta envenenada, réplica às tantas que disparara, sem mais poder revidá-la, quando soube que, enfim, o Duque d’Aumale chegara à presidência dos Quarenta. Que bom, dizia a Claretie, morrer agora! é um príncipe-herói, e de tal nobreza e bravura só há a esperar a generosidade... Nós ignoramos o recipiendário e o recipiente dele, incerteza completa, tão inseguros andam os tempos, que faz bem precária a nossa imortalidade... A sombra de Alcindo Guanabara teve aqui o seu dia de juízo, não lhe valendo sequer a piedade de quem lhe sucedeu... E se um Paul Valéry coincide com um Carlos de Laet! Há que pensar em um seguro da imortalidade, contra os danos póstumos, da Academia, a que nos sujeitamos, tão inocente, tão imprevidentemente... Jurisconsulto, deixo ao vosso senso do direito, esse de não sermos incomodados, num dia de festa, exatamente porque demos ocasião a dois discursos e a um tema literário.

Silva Ramos, que passou discretamente na vida, teve a compensação de vosso elogio. Não bastando evocá-lo, evocastes a Coimbra, que é como a lembrança juvenil de nossa nacionalidade. O Brasil foi aí estudante. Todos temos o encanto das tontices de adolescentes, que se passam nas benignas academias das faculdades. Coimbra é a escola simbólica onde adolesceram Portugal e Brasil. Silva Ramos foi aí o nosso último aluno, entre brasileiros e portugueses, João Penha, Guerra Junqueiro, Gonçalves Crespo. Deles guardou, tornando à terra natal, a impregnação juvenil da poesia.

GONÇALVES CRESPO E GONZAGA

Conservou a ternura de seus colegas. Quando um dia o fizeram acadêmico, porque não teria ênfase para fazer-se, e todos buscavam um ascendente espiritual para patrono das suas cadeiras, foi a um condiscípulo que ele buscou, e propôs o seu fosse: Gonçalves Crespo. Não são os acadêmicos obrigados sequer a exame de literatura, podem licitamente ignorá-la, e os colegas de Silva Ramos na Academia ignoravam a Gonçalves Crespo, nato poeta brasileiro, para se lembrarem apenas que se naturalizará português, para ser eleito deputado das Índias... Por uma conveniência política do homem, cuja vida Portugal assim dignificava, ingratamente letrados brasileiros rejeitavam um grande, grande poeta nacional. Nascido no Rio de Janeiro, em cujos arredores tinha uma roça o pai português, foi a saúde delicada que o levou a Portugal, onde se conservou na pouca vida que teve. Não dissimulou Gonçalves Crespo seu meio sangue. Seus versos falam de negros e escravos, sem vexame. Em carta a Machado de Assis, que sofria de ser mestiço, dize-lhe: “A V. Ex.ª já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era... de cor, como eu. Será?” Apesar da mortificação, Machado de Assis guardou a carta, que está nos nossos arquivos. O nosso José Veríssimo ouviu, da boca dele, as confissões de sua saudade, traduzida já em tantos belos poemas brasileiros:

Ah! quem pode esquecer o seu país natal!

Ele o escreveu. São os poemas da mais terna “brasilidade”, (perdoem-me este substantivo da moda, tão cheio de presunções), que já se escreveram: “A sesta”, “Na roça”, “Ao meio-dia”, “Canção”, “A Negra”...

O vento que passe tranqüilo, de leve,
Nas folhas do ingá;
As aves que abafem seu canto sentido!
As rodas do engenho não façam ruído,
Que dorme a Sinhá!

O Brasil onde tanta gente escreve versos, mas há tão poucos poetas, não pode perder a Gonçalves Crespo que Silva Ramos nos reivindicou. Mas, polido, à renúncia dos outros, socorreu-se da ironia, e propôs a Tomás Antônio Gonzaga... Este era filho de brasileiro e portuguesa, o contrário de Gonçalves Crespo, mas nascera em Portugal vivendo no Brasil. Elas por elas; compensação em tudo. Seria também rejeitado. Engano. Será que a Academia é mulher, e por isso desdenha a lógica? O pretendente Gonzaga foi aceito, naturalmente por menos brasileiro do que o outro recusado.

Com efeito, aqui veio ter e aqui ficou porque obrigado: era magistrado, de seu ofício, e exercia a judicatura. É exato que o meteram numa conspiração e padeceu o martírio em África, por nós, pela Independência do Brasil. Não há no processo da Conjuração Mineira prova de sua conivência: sempre depôs que não se envolvera na conspiração; seu nome se pronunciava para dar emulação a outros, hesitantes; do Tiradentes tinha juízo “que era homem que lhe aborrecia” e “um homem daqueles podia fazer muito mal à gente, pelo seu fanatismo”. O que há nos autos contra ele é a leviandade da inconfidência. Para aliciar prosélitos propalavam-se os nomes dos conspiradores; a posição de Gonzaga, vulto influente, poeta e magistrado, facilitava para os fins da causa, que o desejassem entre eles, e o dissessem uns aos outros, e logo lhe davam função de fazer leis da nova república. Todos sabemos do corpo que tomam os boatos no Brasil. Gonzaga não será o único condenado político, por essa pródiga imaginação, em voz baixa.

Magistrado português em Minas, acabava de ser promovido a desembargador na Bahia, ia casar com Marília, como se meter numa revolução? Apesar de poeta, teria juízo. Sempre depôs assim, e os outros, conformes, o depuseram. Isto o homem; o poeta, esse é exclusivamente europeu. É arcádico, como no tempo. Em Minas poetando, só pensa em olivedos e azeite, em vinho e vinhedos, rebanhos, pastores, ficções da moda literária, ele zagal burguês, bem instalado na vida, que procura convencer a sua zagala tem o futuro garantido:

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro
Que viva de guardar alheio gado,
De tosco trato, de expressões grosseiro,
De frios gelos e de sóis queimado...

Tenho próprio casal e nele assisto.
Das brancas ovelhinhas tiro o leite
E mais a fina lã de que me visto...

Tinha o que perder. Não o perderia pelo Brasil, o próvido Gonzaga. A diferença entre os dois poetas, pois que os dois homens se equivalem, o brasileiro vivendo em Portugal, o português no Brasil, é que um, Gonzaga, é só poeta português e que Gonçalves Crespo também é poeta brasileiro. A Academia repeliu o nacional e ficou com o reinol. Silva Ramos sorriu e exultou nele o muito que nele havia de português, coimbrão, a mocidade, sonetos do Penha, alexandrinos do Junqueiro, a bela forma pura dos clássicos e até sotaque persistente, que o denunciava por toda a parte.

GRAMÁTICO LIBERAL

Aqui, quase exilado, tratou da língua portuguesa. Foi professor. Foi gramático e filólogo. Mas com a liberdade carinhosa de amante, e não como nós, que temos obrigações devotas de filhos. Nós brasileiros não transigimos com os clássicos portugueses: um pronome mal colocado desconceitua um escritor... Há nos jornais tendas de concerto às erronias, “como se deve” e “como não se deve dizer”. Silva Ramos português sabia a língua como própria e era por isso livre, liberal, e nos ensinava que a prosódia, e não a sintaxe, governa a colocação dos tais pronomes. Porque vivemos em outro meio, clima e gentes, colocamos as idéias de modo diferente, e, como a fala, dispomos diferentemente as tais partículas. É inútil e ridículo, aqui e agora, querermos imitar os autores clássicos do século XVI, que falavam e escreviam naturalmente para o seu tempo, e hoje, com um tento que não temos, falariam e escreveriam para o nosso tempo. Foi Silva Ramos uma lição desse juízo, professando e escrevendo: vós lhe acentuais, devidamente, este mérito.

Seu ensino teve largo proselitismo. Ensino da língua, das letras, portanto, da arte substancial de escrever. Lá fora, nos colégios, era a mocidade. Ágil, bondoso, um cravo na lapela e uma indulgência nas notas, ela, a gramática, por ele, perdia a imposição e ganhava familiaridade; aqui, na Academia, era uma lição tácita de compostura e serenidade. Não se metia nas competições gramaticais. Passava longe do dicionário. Só o vimos zangar-se com as nossas loucuras ortográficas. Também era de mais, tanta caprichosa reforma. E exatamente quando morreu, foi que tornamos de um radicalismo que iria fazer, pela indumentária gráfica das vozes, uma cisão dialetal. A razão do vosso antecessor venceu, por fim. Fez-se a paz ortográfica, a entente cordial dos lingüistas: creio afastado o perigo de intervenção da polícia nas nossas sessões de linguagem. A tolerância de sábio do nosso bom Silva Ramos inspirará, aos exigentes puristas nacionais, que fazem aqui política, em assunto de língua portuguesa...

CADEIRA DA TRADIÇÃO

A meiga sombra de Silva Ramos se ajuntará bem, na cadeira de ambos, à vossa amena presença, sob a invocação de um poeta lírico, que transcende do Brasil e vai às nossas origens. Será a Cadeira da tradição a vossa, a de Silva Ramos, a de Gonzaga.

Este viveu aqui, aqui amou, e pelo Brasil sofreu o martírio: nós lhe devemos a compensação de o lembrar sempre, entre os nossos ascendentes espirituais, que são os nossos patronos.
Silva Ramos, poeta na mocidade como vós, trouxe com a castidade da língua a saudade da musa portuguesa, reivindicando, depois do brasileiro Gonçalves Crespo, o lusitano cantor de Marília, juntos na tradicional indistinção de sangue e de alma, no mesmo culto ufano de nossas riquezas patrimoniais, de aquém e de além mar.

Vós sois dignos deles, Sr. Alcântara Machado, se não os excedeis ainda, pois não só a Portugal, a língua e as letras, amais devotamente; vós invocais, no vosso amor fiel e constante, a gente portuguesa no Brasil, vossos maiores, os maiores de nossa pátria, os Bandeirantes que fizeram o Brasil, e fizeram São Paulo, desde Antônio de Oliveira, chegado a São Vicente em 1532, no primeiro dia da colonização de Martim Afonso, a Machado d’Oliveira, último bandeirante cultural, disseminado pelo Brasil e pelos interesses nacionais. Até Brasílio Machado, até vós mesmo, que em São Paulo somais toda a pátria, servindo-a, evocando-a aumentando-lhe as glórias, ressaltando-lhe o passado heróico e tradicional, para uma lição de civismo e de benemerência.

SÃO PAULO!

Como vós amais a esse Brasil, Sr. Alcântara Machado, no vosso amar a São Paulo! Tanto, que sois um retrato de vossa terra, um resumo de vossa gente. Laborioso, esforçado, inteligente, civil, polido, reservado, – sois também incansável, múltiplo, disciplinado, tradicionalista, destemido, idealista, como a vossa terra, a vossa gente. Não fostes quem a definiu? “O culto do passado, o orgulho da raça, a fidelidade aos compromissos, a aversão à desordem e à indisciplina, a coragem desassombrada na afirmação dos próprios ideais, são traços característicos do espírito paulista”. “Mas em São Paulo, continuais, não vicejam as preocupações subalternas do exclusivismo regional. Herdeiros daqueles soberbos “violadores de sertões e semeadores de cidades”, cujo pé, “como o de um Deus, fecundava o deserto”, e que, investindo heroicamente contra o desconhecido, definiram os contornos do nosso território; descendentes dos Andradas e de Feijó, a quem se deve a formação da consciência nacional, não nos esquecemos dos deveres que decorrem das nossas responsabilidades na construção da pátria comum”. Já era há vinte anos, em 1913, e não agora, que dizíeis isto: “São Paulo não é apenas uma terra de fartura e de prosperidade: é para todos aqueles que trabalham conosco, pela grandeza do Brasil, uma terra de hospitalidade e de justiça.”

É que São Paulo é o melhor do Brasil. Cala-se a emulação de irmãos menores que o cercam, é o primeiro, e a ele cabe devidamente guiar a família. Porque em São Paulo começou o Brasil, civilizado e civil.
Não foi ali, na colina sagrada, que Nóbrega e Anchieta e seus companheiros fundaram o primeiro colégio jesuíta e puseram a tabuada e a cartilha da civilização nas mãos e na alma de índios, de mamelucos, de reinóis, e de seus filhos, os primeiros brasileiros?

Não foi dali que os Bandeirantes partiram para Minas, para Bahia, para Mato Grosso, para o Pará, o Amazonas, para os Andes, a Bolívia, o Paraguai, para Paraná, Rio Grande, Uruguai, a balizar o solo sagrado da Pátria com as ossadas brancas dadas ao deserto, mártires da nacionalidade, vítimas de uma ambição que nos conquistou uma autonomia e nos deu um patrimônio? O Brasil, di-lo a História, fê-lo São Paulo.

Donde nos veio José Bonifácio, o sábio que nos libertando, com a conivência de um príncipe, manteve sob um cetro a unidade nacional e com a dinastia nos privou, por esse século, do caudilhismo que campeava solto na América Espanhola, fracionada, e, ainda agora, em guerras consigo mesma?
E onde foi esse príncipe declarar livre o Brasil? Não no Amazonas, ou no São Francisco, senão no Ipiranga. Porque é na frente da casa que se arrostam os adversários e se fazem as proclamações. São Paulo é a frente e fronte do Brasil.

Não foi de São Paulo, esse grande Feijó, que disse, de sua terra, “eu me orgulho de ser de uma província, célebre pelo seu distintivo de honra e pundonor, e onde se faz timbre de cumprir o que se promete?” E que prometeu esse Feijó, e esse São Paulo, ao Brasil independente? Uma consciência nacional. Teve-a, desde a Regência. De Feijó, começa o Brasil em casa própria, e vivendo por si.
Não foi a liberdade dos negros fugidos nas serras do Cubatão que desmoralizou a posse escrava, e permitiu o 13 de Maio à Princesa Redentora? São Paulo, que o promovia com um braço, com o outro preparava o trabalho livre, que seria a riqueza nacional.

A República, com a propaganda dos Prudentes, dos Campos Sales, dos Glicérios, de tantos iguais, não desponta em Campinas, antes de nascer para o resto do Brasil?
Onde o baiano Rui Barbosa deletreou as tábuas da lei, para nos ensinar o culto do direito e o sacerdócio da justiça? Nessa alma mater de vossa Faculdade de Direito, onde o mineiro Pedro Lessa lecionou a estudantes, antes de vir pregar no Supremo Tribunal.

Dessa Faculdade, desse São Paulo, desse Brasil, a que honrais como mestre, como escritor, como grande homem, – grande homem de bem, Sr. Alcântara Machado – é apenas justo que, cumprindo conosco e pelo Brasil, nós vos glorifiquemos. Sede bem-vindo!