OS JURISTAS
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras no dia 22 de setembro de 1997, no ciclo "Cem Anos de Cultura Brasileira" comemorativa do 1º Centenário.
Ao assumir em 14 de abril de 1992 a Cadeira nº 25, sucedendo a meu mestre Afonso Arinos de Melo Franco, assim concluí o discurso de posse: “Não posso deixar de mencionar as ligações que aqui sempre existiram entre as letras jurídicas e as letras propriamente ditas.” Mencionei Lúcio de Mendonça, o fundador desta Casa, “homem de letras e jurista”, destaquei Rui Barbosa “culminância que constitui exceção à parte”, e apontei o quarteto de Clóvis Beviláqua, Lafayete, Pedro Lessa e Pontes de Miranda, “juristas que cultivaram com sabedoria as letras, o ensaio e a filosofia e que comprovam mais uma vez a exatidão do ditado de que o jurista que é apenas jurista é uma pobre coisa”.
Tratando hoje de tema tão amplo, irei me cingir aos quatro ilustres juristas, aos outros fundadores e à indicação de alguns outros, procurando apontar as relações que tiveram com a Academia e fixando-me nas obras jurídicas, com referência aos trabalhos literários.
Há que distinguir o bacharel, o advogado e o jurista. Até recentemente o curso de direito com o diploma de bacharel atraía o grupo dos indefinidos, dos que tinham horror à matemática, ou eram dados às letras, mas que não exerceriam a profissão. A distinção deve ser feita entre o advogado, que é sempre o homem comprometido com uma tese que lhe incumbe defender, fica adstrito aos interesses da causa, cujo desfecho resulta de uma decisão de terceiro, que é o juiz, e o obriga a uma forma de discussão persuasiva, de modo que muitas vezes a sedução dialética é mais decisiva que o valor intrínseco das razões jurídicas.
O jurista atua em terreno mais restrito, é o doutrinador que oferece soluções científicas para a interpretação do direito constituído. Cabe-lhe ajustar um desejado equilíbrio dos preceitos legais às contingências empíricas do fato em causa.
Afonso Arinos no livro de memórias A alma do tempo, distingue entre o bacharelismo, postura do advogado, e o juridicismo, atitude do jurista. “O juridicismo evolui para uma espécie de abstração científica, um certo gênero de clericalismo (no sentido de Julien Benda) que nos deu Teixeira de Freitas, Lafayette, Clóvis Beviláqua e mesmo Tobias Barreto ou Pedro Lessa, cujos temperamentos ferventes não eliminaram aquela irresistível tendência à formação teórica que os incompatibilizava com a vida pública. Os juristas-teóricos apolíticos amavam a filosofia todos eles, Freitas, Tobias, Lafayete, Clóvis e Lessa. Exemplares contemporâneos do tipo: Pontes de Miranda, Gilberto Amado e Francisco Campos.”
Ao contrário “o bacharelismo é a técnica jurídica aplicada especialmente à realidade pública. Não é teórico, sobretudo não é abstrato nem filosófico. Os bacharéis políticos nada tem de filósofos.” Apontava o conservadorismo dos bacharéis, em contraste com o espírito inovador, seja no sentido progressista, seja no reacionário dos juristas. “Por que isto? O jurista é homem de maior capacidade indutiva, tende a formular, a criar o direito, a extraí-lo das observações do complexo social. Já no bacharel, o traço do espírito é a agudeza dedutiva. Ele tende a aplicar e não a formular o direito, é homem mais da lei do que do direito.”
Ao fundar-se, em 1897, a Academia Brasileira de Letras, encontrava o país uma nova ordem jurídica que apenas se esboçava. A monarquia se findara em processo lento e gradual de declínio, avolumando-se as contestações e os desafios. A questão religiosa, a questão militar, a abolição, o crescimento do movimento republicano, e o desinteresse do país pela ascensão ao trono de uma princesa casada com nobre estrangeiro, tudo isto caracterizou o processo que o nosso confrade Oliveira Viana denominou “O ocaso do Império”.
A economia agrária e latifundiária dominou o país durante o século XIX com o crescimento da lavoura cafeeira, já decadente a estrutura agrária do Nordeste, e sofreu os primeiros abalos com a abolição do tráfico negreiro que atraiu para empreendimentos industriais os capitais que ficaram disponíveis: a era de Mauá, com as ferrovias, os melhoramentos urbanos e os primeiros empreendimentos industriais. Ao findar o Império uma política econômica emissionista conduzia ao florescimento fictício de empreendimentos, que prosseguiria com a República, e retratado por Visconde de Taunay, patrono da Cadeira no 40, sob o pseudônimo de Heitor Malheiros, conhecido como o Encilhamento, com reflexos sobre a ordem jurídica.
Nesse prisma, a avaliação do Império foi favorável. A Constituição de 1824 inspirou-se nos melhores princípios do constitucionalismo da época. Incluía a concepção do Poder Moderador sobre a qual escreveram dois livros clássicos Brás Florentino e Zacarias de Góis de Vasconcelos. A tarefa da codificação foi também significativa: o Código Criminal de 1832, de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos correspondia à melhor doutrina. É de 1850 o Código Comercial juntamente com o Regulamento 737, modelo de legislação processual. Infelizmente não se concretizou a elaboração do Código Civil, apesar dos esforços de Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, Felício dos Santos e Coelho Rodrigues.
Teixeira de Freitas é a grande figura do período, responsável pela Consolidação das Leis Civis. Esboço do Código Civil e vários outros trabalhos, inclusive a adaptação ao foro brasileiro de obras de praxistas brasileiros.
A doutrina é também expressiva: no campo do Direito Público, Uruguai e Pimenta Bueno; no Direito Civil, o próprio Teixeira de Freitas, Trigo de Loureiro e Ribas; no Processo Civil, Paula Batista e Ramalho; no Direito Comercial, no início do século, a figura exponencial de Cairu, a quem se adita Candido Mendes prefaciando Os princípios do Direito Mercantil. A Lei de Terras de 1850, a lei hipotecária de autoria de Nabuco de Araújo, a lei sobre casamento de não-católicos são algumas expressões da elaboração legislativa.
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A Academia Brasileira de Letras constituída nesse momento histórico, fundada por Lúcio de Mendonça, e tendo como primeiro presidente Machado de Assis, representou o congraçamento de intelectuais de várias correntes políticas e ideológicas, unidos pelo ideal literário.
Em país no qual a cultura jurídica tinha marcas tão profundas, não seria estranho que fossem chamados para dela participar ilustres advogados e juristas que, segundo o padrão da época, eram também homens de letras. No primeiro projeto da Academia, ainda como instituição oficial, dos dez acadêmicos a serem nomeados pelo Governo constavam Lúcio de Mendonça, Inglês de Sousa e Rodrigo Octavio. Entre os vinte eleitos pelos dez figurava Rui Barbosa, e dos dez restantes eleitos pelos trinta figurava Clóvis Beviláqua.
Na criação dos trinta nomes iniciais incluíam-se Lúcio de Mendonça, Inglês de Sousa, Rodrigo Octavio e Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua eleito entre os dez restantes com o menor número de votos, apenas onze.
Naquele instante era Clóvis Beviláqua modesto professor de província, ensinando legislação comparada na Faculdade do Recife, e não se conhece a origem da indicação. Publicara alguns livros de âmbito filosófico, como Emile Littré (1882), Esboço sintético do movimento romântico brasileiro (1882); Estudos de Direito e Economia Política (1883); Conceito antigo e moderno da Metafísica (1888); Lições de legislação comparada sobre o Direito Privado (1893); A concepção de sociologia de Gumplowicz (1895) e dois livros de direito: Direito das Obrigações (1896) e Direito da Família (1896).
É curioso que Clóvis Beviláqua tenha escolhido para patrono não um jurista mas um conterrâneo, o escritor Franklin Távora, autor de vários romances naturalistas. Respondendo ao inquérito de João do Rio, publicado em 1905 com o título de O Momento Literário, Clóvis Beviláqua demonstrava como a sua formação inicial fora de cunho predominantemente literário, pois “acompanhava com muito interesse as tentativas de romance histórico sob a excelente feição de um naturalismo tradicionalista que ia publicando Franklin Távora”.
E acrescentava: “Depois de concluído o meu curso de Direito foi que, por assim dizer, comecei a me interessar por essa bela ciência ao lado da qual passara cinco anos sem lhe perceber os encantos. Devo a Tobias esse inestimável serviço de me ter aberto a inteligência para ver o direito. Durante o curso acadêmico, estudei apenas para cumprir as minhas obrigações e transitar pelas solenidades escolares sem apoio estranho, mas não podia dedicar afeição profunda a uma ciência, na qual não descobria o influxo das idéias que me davam as explicações do mundo. Incitado pelo ensino de Tobias e guiado por Jhering vi o direito à luz da filosofia, da sociologia e da história.” Refere-se aos autores que lhe deram formação jurídica Savigny, Bluntschili, Roth, Glasson, Cimbali, D’Aguano, Cogliolo e Post; no campo do Direito Penal Tarde, Alimena e Lizt; e, no Direito pátrio, Coelho da Rocha, “o mais completo discípulo de Melo Freire” e Teixeira de Freitas, “o maior dos nossos jurisconsultos”.
Em 1899, na Presidência da República Campos Sales, o Ministro da Justiça Epitácio Pessoa convidou-o a elaborar o projeto do Código Civil. O ministro explicava na exposição de motivos as razões da escolha, não é apenas “um dos nossos maiores jurisconsultos como também por ser autor de assinaladas obras de doutrina – Direito de Família, Direito das Obrigações, Direito das Sucessões, em que desenvolvera quase todo o direito civil”. Críticas surgiram à escolha, inclusive dos acadêmicos Rui Barbosa e Inglês de Sousa, Rui Barbosa diria que a pressa iria produzir “obra tosca, indigesta, aleijada”, o jurista escolhido era noviço “não amadurecido para empresa de tal porte”. E acrescentava que a preferência por Beviláqua fora “um rasgo do coração, não da cabeça”. Alegou “faltar-lhe a ciência da sua língua, a vernaculidade, a casta correção no escrever”. Inglês de Sousa na crítica “não considerava conveniente a tarefa, não sendo azado o momento para traçar definitivamente o círculo em que hão de ficar as atividades sociais nas relações do direito privado”.
Clóvis chegou ao Rio em 27 de março de 1899, iniciou a elaboração do projeto, terminada em 6 de outubro. Em seis meses realizava a tarefa a que outros se dedicaram sem êxito.
O projeto foi analisado no âmbito do Poder Executivo por Comissão Revisora sob a presidência de Epitácio Pessoa e integrada por Olegário Herculano e Aquino e Castro, Joaquim da Costa Barradas, Anfilófio Botelho Freire de Carvalho, Francisco de Paula Lacerda de Almeida, e João Evangelista Bulhões de Carvalho. No Congresso Nacional sofreu longa tramitação, sendo objeto da polêmica sobre a linguagem entre Carneiro Ribeiro, defendendo o projeto, e Rui Barbosa contestando-o na Réplica.
Promulgado em 1o de janeiro de 1916 e entrando em vigência no ano seguinte, pode-se afirmar que a revisão em alguns casos trouxe melhoramentos, mas na maioria dos casos o projeto se encontrava com a melhor doutrina. Na discussão do Congresso cabe destacar a atuação de Andrade Figueira, defendendo posição conservadora.
Retorna a Recife e se transfere para o Rio, falecendo em 1944. Em 1906 foi nomeado consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, dentro da postura de Rio Branco de atrair as figuras mais eminentes da época. Nessa função deu numerosos pareceres, destacando-se os referentes ao mar territorial, ao direito de asilo, ao torpedeamento de vapor brasileiro por submarino alemão. Em 1920 integrou a Comissão de Juristas encarregada pelo Conselho da Liga das Nações de redigir o projeto da Corte Permanente de Justiça Internacional. E escreveria, em 1906, Os princípios elementares de Direito Internacional Privado e, dois anos depois, Teoria geral do Direito Civil. Em 1911 publica Direito Público Internacional, refletindo a preocupação com as atividades exercidas no Itamarati.
Em 1916 vigente o Código, inicia a publicação da obra que mais influenciaria a prática forense no Brasil, o Código Civil comentado. Afirma San Tiago Dantas: “Os Comentários de Clóvis alcançaram no foro brasileiro autoridade da Glosa, servindo para remover obscuridades e dúvidas, e contribuindo para a aplicação pronta do novo instrumento normativo. É esse porventura o livro em que o espírito de Beviláqua melhor revela sua nobre simplicidade, exprimindo sem aparelhamento dos conceitos técnicos, como se não tivesse outros propósitos se não o de explicar e divulgar.”
De 1927 é a História da Faculdade de Direito de Recife no centenário dos cursos jurídicos; Linhas e perfis jurídicos, de 1930; Opúsculos, de 1939, até que em 42 completa a obra doutrinária do direito com Direito das Coisas.
Falando de sua obra, diria Clóvis com modéstia:
Julgo todas imperfeitas, não simplesmente em relação ao que deviam ser, mas até em relação a que era lícito esperar que fossem.
Direi que Direito de Família e Criminologia e Direito me satisfazem um tanto mais do que as minhas outras produções; se me pedissem um trecho para coletânea, eu iria escolher de preferência nos Juristas filósofos. Falo somente das obras jurídicas, porque fiz do direito minha especialidade, e portanto são as obras produzidas nesse domínio que devem dar a medida do meu espírito, quaisquer que sejam as minhas predileções literárias ou filosóficas.
Pôde dizer San Tiago Dantas: “Clóvis Beviláqua manteve, do princípio ao fim, a firmeza de sua posição doutrinária. Formado quando o direito natural cedia lugar ao evolucionismo, adotou a nova posição e não a abandonou, quando outras lhe vieram disputar o posto. Manteve as convicções filosóficas que lhe permitiram tratar com inabalável confiança as questões científicas, e pode assim imprimir à cultura da época a sua marca pessoal, discreta e durável.” Analisou ainda San Tiago Dantas a grandeza moral de Clóvis que o colocava em posição ímpar no cenário jurídico:
Pode um jurisconsulto possuir as maiores reservas de conhecimentos, e ser dotado de excepcional poder de raciocínio, que suas conclusões ficam, ao menos em parte, frustradas, se não existir para sustentá-las a inteireza da consciência moral. A capacidade intelectual de jurisconsulto, quando não lança alicerces numa consciência moral límpida e isenta, assume muitas vezes um caráter perigoso, e alarma, em vez de tranqüilizar. O público não sabe até que ponto a habilidade do jurista nesses casos pode estar a serviço de uma deformação da realidade. Pois Clóvis Beviláqua era um dos juristas que tranqüilizam e não dos que alarmam. Sua consciência se mantinha indene, em meio a paixões, e não eram ameaçadas nem pelas seduções dos interesses materiais nem pelas competições da vaidade.
Em 1930, com a vaga de Alfredo Pujol à Cadeira no 23, apresentou inscrição a Senhora Amélia de Freitas Beviláqua, esposa de Clóvis Beviláqua. Na sessão de 19 de maio de 1930, o Presidente Aloísio de Castro comunicou o pedido de inscrição, e declarando não se achar autorizado a interpretar o Artigo 2o dos Estatutos - só podem ser membros da Academia Brasileira de Letras brasileiros - solicitou uma manifestação, de modo que futuramente se pudesse ter um critério seguro para aceitar ou rejeitar candidaturas de mulheres.
Falaram sobre o assunto Constâncio Alves, Augusto de Lima, Silva Ramos, Afonso Celso, Roquette-Pinto, Alberto de Oliveira e Coelho Neto, sendo afinal resolvido por maioria que na expressão brasileiro do Artigo 2º só se incluíam indivíduos do sexo masculino. Votaram contra a restrição Adelmar Tavares, Luís Carlos, Afonso Celso, Augusto de Lima, Fernando de Magalhães, João Ribeiro, Laudelino Freire. Félix Pacheco, dado como presente, não compareceu e fez declaração de voto favorável.
A matéria está examinada no livro A Academia Brasileira de Letras e Amélia de Freitas Beviláqua, publico em 1930, com dois pareceres de Clóvis Beviláqua, declarando no primeiro que, segundo lera nos jornais,
os acadêmicos reconhecem que a lei interna da Academia Brasileira de Letras não se opõe à entrada de senhoras nessa douta corporação. Realmente diante do dispositivo estatutário ninguém poderá pensar de outro modo.
Se os estatutos não proíbem, permitem.
Portanto, negar a admissão de senhoras no grêmio ilustre, que deve refletir as maiores expressões da literatura brasileira, seria contrário à própria lei fundamental da Academia.
Depois de afirmar que a Academia deve refletir a expressão da vida literária e se há mulher de talento e cultura, “a exclusão delas torna incompleta e falha a função representativa da Academia Brasileira de Letras. Diante dessas considerações perderia o valor outros argumentos, pois seriam contrários aos Estatutos e à finalidade da Academia”.
Em carta de 26 de agosto de 1930 a Laudelino Freire, Clóvis Beviláqua afirmava ser evidentemente injustificável a inteligência dada pela maioria dos acadêmicos, como inadmissível é supor que opinião nesse dia vencedora faça lei, não reunindo a maioria absoluta de membros da corporação”. Aditava: “Sinto que tenho de me alhear inteiramente desse caso. Fecharam rudemente as portas da Academia para Amélia. Não sofreu somente ela o golpe. Ambos nós o recebemos. E não parece bem a qualquer de nós praticar ato algum que possa ser interpretado como pedido de reconsideração da repulsa infringida.”
Em texto sem assinatura, publicado no volume, comenta-se: “Na Academia, à Rua Barão de Mesquita, não há o jetom que se distribui na Av. das Nações em moeda de papel. Lá existe outro jetom, em ouro, desse que somente circula entre espíritos de eleição e os corações bem formados.”
Desde então Clóvis Beviláqua se afastou inteiramente da Academia, a ela não mais retornando apesar de numerosos apelos. Somente em 1970 foram alterados os Estatutos para permitir a candidatura de mulheres.
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Em 1897 Rodrigo Octavio, outro fundador, tinha apenas trinta e um anos. Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, viera para o Rio onde vivera a vida literária, escrevendo dois livros de poesias e se aproximando de Raul Pompéia. Iniciou a vida como juiz e era Secretário da Presidência da República de Prudente de Morais quando da criação da Academia. Exerceu a advocacia, tendo sido Consultor Geral da República em 1911 até 1929, nomeado então Ministro do Supremo Tribunal Federal, cargo em que se aposentou em 1934. Respondendo ao inquérito de João do Rio em 1905, diria:
Em nossa terra, salvo exceções que se contam, as letras ficam no domínio do diletantismo. Muitos de nós, chamados homens de letras brasileiros, mas realmente, na generalidade, professores, empregados públicos, advogados, jornalistas, muitos de nós, eu mesmo talvez, poderíamos ser na França por exemplo, homens de letras no sentido restrito, preciso, da expressão. Aqui ainda não somos, não será possível sê-lo enquanto a literatura não for uma profissão, meio de vida remunerador inconfessável.
E em tal conjuntura não é possível a gente se ocupar de letras no Brasil, orientar a produção literária por um caminho seguro, por uma feição definitiva. Vive-se aqui a ensinar, a experimentar, tentando-se de todos os feitios, amoldando-se de todas as escolas.
Como jurista, Rodrigo Octavio se especializou em Direito Internacional Privado, professor na Faculdade de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro. Participou de numerosas conferências internacionais, a Conferência da Paz de Versailles, em 1919, e a Primeira Assembléia Geral da Liga das Nações, em 1920.
Deixou avultada obra em Direito e numerosos textos sobre História. A obra literária abrange entre outras, Minhas memórias dos outros, Coração aberto, Festas nacionais. Foi primeiro-secretário na fundação da Academia e em seu escritório de advocacia, na Rua da Quitanda, reuniu-se a Academia nos tempos heróicos. Por sua sugestão o livreiro Francisco Alves deixou herança para a Casa.
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Herculano Inglês de Souza foi outro jurista entre os fundadores com a idade de quarenta e três anos. É curiosa a escolha como patrono de Manuel Antônio de Almeida, o autor do romance Memórias de um sargento de Milícias, mas naquele tempo tinha escrito vários romances de repercussão como O cacaulista, O missionário e outros. Autor do projeto de Estatutos, vigente até hoje, foi o primeiro tesoureiro da Academia, e só deixa o cargo em 1907, em carta dirigida a Machado de Assis, referindo-se que a servira desde a fundação: “Deu-me algum trabalho e sobretudo muita despesa, porque os acadêmicos, como literatos em geral, salvo honrosa exceções, não gostam de pagar. E eu tinha que fazer face a uma despesa anual de cerca de um conto de réis com as mensalidades recebidas de dez a doze sócios a cinco mil réis par cada um, e muitos irregulares.”
Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, iniciou-se na profissão na cidade de Santos, e em seguida transferiu-se para a capital de São Paulo, em pleno apogeu do Encilhamento, quando se dedicou também à criação de empresas.
Por motivo de saúde, transfere-se para o Rio e abre o escritório de advocacia, trabalho penoso durante três anos, mas depois ganha grande repercussão, dada a alta qualidade dos trabalhos. Diz o filho Paulo Inglês de Sousa que “os três primeiros anos foram de luta, de dificuldades sem conta, de ilimitada paciência. Mas venceu. A sua reputação de grande advogado se irradiou por todo o país. Vieram ter ao seu escritório muitas das principais questões que debateram os tribunais brasileiros nesses últimos anos: a questão das carnes verdes, o caso dos limites entre Paraná e Santa Catarina, a questão da presidência do Estado do Rio e do Senador Baker, o caso das areias monazíticas em terrenos de Marinha. Trabalhou muito. E com razão dizia tia Carlotinha quando o visitava “nesta casa não se gasta um tostão que não saia da cabeça do Herculano”.
Há a destacar o jurista, com o livro Títulos ao Portador, de 1898, que apresenta uma síntese histórica e é estudo completo sobre a matéria. Em 1911, pela Lei 2.379, o Governo Federal foi autorizado a mandar organizar um projeto de Código Comercial, reformando o vetusto Código de 1850, e o incumbiu dessa tarefa. Não só elaborou o projeto, como também emendas, destinadas a transformar o Código Comercial em Código de Direito Privado. O projeto foi remetido ao Senado em 1914, teve longa tramitação, mas não chegou a ser aprovado.
O nosso confrade Rodrigo Octavio Filho, pronunciando conferência por ocasião do centenário de nascimento, destacou vários aspectos de sua atuação e recorda ter recebido de pai, por ocasião da formatura, a seguinte observação:
Vais começar tua vida de advogado; vou levar-te à presença de três dos grandes mestres da advocacia de hoje, e levou-me aos escritórios de Leitão da Cunha, Pires Brandão e Inglês de Sousa. E meu pai, que teve para todos os colegas que me apresentara palavras de justo louvor, disse-me ao sairmos do escritório de Inglês de Sousa: “esse é um padrão de sabedoria e austeridade”.
Foi professor e diretor da Faculdade de Ciências e Estudos Sociais, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, e, nessa qualidade, presidiu o I Congresso Jurídico Nacional de 1908. Os seus pareceres revelam um jurista atualizado e competente.
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Com o falecimento de Machado de Assis em 1908, a Academia teria de se voltar para uma grande figura da intelectualidade brasileira. De fato, em 1o de maio de 1909, foi eleito por vinte votos Lafayete Rodrigues Pereira, obtendo dois votos Alberto Faria e um voto o Barão de Paranapiacaba. Nessa ocasião, Lafayete já tinha setenta e cinco anos, foi adiando a posse devido ao estado de saúde e, afinal, considerado empossado por força de decisão do Plenário. Tratava-se realmente de espírito universal, de grande cultura clássica, humanística, filosófica e literária, mas sobretudo excepcional jurista. Seu pai, o Barão de Porto Alegre dizia: “já nasceu jurista”. Logo na infância iniciou-se no estudo das letras clássicas com o tio Antonio Rodrigues Pereira. No livro Retratos de família, escrito pelo saudoso confrade Francisco de Assis Barbosa, sua filha D. Albertina Berta, também escritora, depõe que depois do jantar Lafayete recitava para suas filhas odes de Horácio e Virgílio: “Eu não sabia latim, mas ouvi-o encantada. Bastava a música da voz.”
Formado em Direito pela Academia de São Paulo, radicou-se no Rio de Janeiro, trabalhando inicialmente na banca de Teixeira de Freitas e, posteriormente, formando a própria banca. Logo se destacou como advogado e foi atraído para a carreira política. Em 1864, com trinta anos, foi nomeado presidente da província do Ceará e mais tarde do Maranhão. Voltando ao Rio, fundou com Pedro Luís e Flávio Farnese o jornal Atualidades, com poucos anúncios, dos quais sobressaiam os dos escritórios de advocacia de Lafayete e de Flávio Farnese.
Em 1870, assina o Manifesto Republicano e, em 1878, no Ministério de Sinimbu, é nomeado Ministério da Justiça. A escolha causou surpresa, pois adepto do regime republicano participava de um ministério imperial. Explicou dizendo o programa do Gabinete Sinimbu era pela eleição direta, e se achava assim com pleno direito de nele participar. Posteriormente, em 1883, foi presidente do Conselho de Ministros apenas por um ano, ocupando também a pasta da Fazenda. Nessa ocasião, recebeu críticas sérias e ataques terríveis. Manifestou-se contra o projeto de reforma da Lei de Imprensa, no tempo do Ministério de Sinimbu, declarando: “Nestes últimos anos nenhum brasileiro tem sido mais do que eu vítima de injúrias, calúnias, insultos de todo gênero, da parte de certa imprensa, que substitui o talento e a discussão pela perversidade da maledicência.”
Ficaram célebres os comentários e apartes do tempo de parlamentar. Certa vez um senador invocou uma máxima atribuída a Maquiavel. Observou Lafayete: “Essa máxima não é de Maquiavel. Maquiavel era homem de boas letras clássicas e, pois, não exprimia o seu pensamento em latim tão bárbaro e incorreto.” Quando Martinho Campos lhe perguntou de que meio se servira para subir tão depressa aos Conselhos da Coroa, respondeu: “Subi montado em dois livros de direito.”
De fato, os dois livros Direito de Família, de 1869, e Direito das Coisas, de 1877, são momentos altos da literatura jurídica. No meio de uma legislação tumultuária em que ainda predominavam as Ordenações, as várias leis extravagantes, Lafayete sistematizou os princípios e se expressou em português castiço e elegante. Dizia:
Entre nós, brasileiros, não há muito gosto para o estudo do Direito Civil. A política atrai os grandes talentos. A glória modesta dos civilistas se ofusca diante dos fulgores da glória do orador parlamentar e do jornalista. Só uma vocação enérgica e decisiva pode afastar a inteligência das lutas brilhantes e estrondosas da guerra política, para concentrá-los nos estudos solitários do Direito Civil, estudos tão difíceis e trabalhosos, mas tão poucos estimados.
No prefácio de Direito das Coisas, afirmava com concisão: “Tomado em seus delineamentos fundamentais, o Direito das Coisas se resume nisto: em definir o poder do homem, no aspecto jurídico, sobre a natureza física, nas suas várias manifestações, e em regular a aquisição (por título singular), o exercício, a conservação, a reivindicação e a perda daquele poder, à luz dos princípios consagrados as leis positivas.”
E afirmava com modéstia: “O presente livro representa um esforço, uma tentativa, um ensaio no sentido de aproximar a formação científica do nosso direito, na parte que lhe serve de assunto, do ponto a que a doutrina tem chegado nos países cultos. Tal a intenção do livro. Da intenção ao fato, sabemos todos vai logo espaço, difícil de vingar.”
Desse livro disse Gilberto Amado recordando a fase do estudante:
Graças a Lafayete o Brasil se engrandeceu aos meus olhos. Tendo que me preparar para o exame de direito civil o Direito das Coisas. Nesse volume a que tantas vezes voltei vi pela primeira vez um livro nacional dispensar o estudante de procurar livro estrangeiro. Pela primeira vez livro de direito em nossa língua servia ao propósito de dizer o que era preciso de maneira insubstituível. O Direito das Coisas talvez seja (não o leio há muitos anos) uma das mais perfeitas obras do ponto de vista literário do nosso idioma no Brasil. O efeito deste livro, o encontro com um espírito decente e nítido marcou data na minha vida, na minha formação. A biblioteca da Faculdade não poderia fornecer entre os livros de autores franceses nada, nada que pudesse se comparar com o admirável monumento de linhas gregas que era o tratado de Lafayete. O Direito começou a atrair-me. Só então vi que podia tornar-me um jurista”.
Ao demitir o Ministro da Guerra Rodrigues Júnior, este espicaçado, reagiu indagando: “Decline V. Exa. um fato! Diga qual foi o erro que cometi!” E Lafayete retruca: “A incapacidade não se prova com fatos.” Em seguida diria:
Entendi, era juízo meu, que Sua Excelência não tinha aptidão necessária para gerir os negócios da guerra. É juízo meu e devo governar pela minha cabeça. Diante desse juízo convidei o Ministro a retirar-se do Ministério. O nobre deputado é um homem de espírito cheio de vacilações e hesitações. Muitas vezes diante de suas hesitações, convenci-me que era a realidade, e não coisa imaginária, a hipótese do asno de Buridan.
Em 1889, foi indicado, junto com nosso confrade Salvador de Mendonça, representante do Brasil à I Conferência Interamericana. Ao despedir-se, o Imperador disse: “Estudem a organização de funcionamento da Corte Suprema Americana, que me parece muito adequada para adaptarmos à nossa realidade.”
Proclamada a República Lafayete renunciou à missão e voltou ao Brasil, ficando desde então em recolhimento. Embora tenha sido signatário do Manifesto Republicano, passou a ser considerado monarquista e líder do movimento da restauração. Conta-se que, toda vez que havia qualquer manifestação, dizia-se: “Lafayete já foi para Minas.”
Em 1891 foram criadas no Rio de Janeiro duas faculdades livres de Direito, e ambas convidam Lafayete para professor de Direito Civil. Recusa referindo-se a célebre jurista: “Cujácio que era Cujácio estudava quatorze horas por dia para dar uma lição no dia seguinte. Como poderei dar uma aula?”
Nesse período preparou o Projeto do Código de Direito Internacional Privado, a pedido do Barão do Rio Branco. Aliás, o Barão do Rio Branco que tinha como consultor jurídico Clóvis Beviláqua, muitas vezes ia à chácara da Gávea ou mandava um de seus auxiliares para ouvir o sábio jurisconsulto.
Quando da publicação do livro Machado de Assis de Sílvio Romero, Lafayete escreve uma série de artigos no Jornal do Commercio, resumidos em livro, sob o título de Vindíciae, com pseudônimo de Labieno. Lafayete responde dizendo que na verdade o livro deveria se chamar Tobias Barreto, porque no fundo era uma tentativa de exaltação deste, a fim, de denegrir o autor de Dom Casmurro. Afirmava:
Lemos o livro. Tanta coisa rebarbativa, teorias e fórmulas; digressões e digressões, virulências, explosões de vaidades mal disfarçadas, um estilo que não é estilo; barbarismos e solecismos, mau gosto perpétuo e demolições por toda parte, e, em meio às ruínas, incólume, hirto e duro, como um monólito, o vulto de Tobias Barreto, a fênix da poesia, de eloqüência, da filosofia da história, e enfim, de todas as ciências divinas e humanas!
A outra parte do volume constituía crítica severa ao livro Ensaios de Filosofia do Direito, de Sílvio Romero, concluindo: “Quem quer que pretenda aprender os elementos da filosofia do direito por esse livro, há de chegar desanimado à triste conclusão que aquela ciência é um acervo incoerente de contradições, de absurdos e de conceitos enredados e ininteligíveis.”
Ao tomar conhecimento da autoria dos artigos, Machado de Assis escreveu a Lafayete a seguinte carta:
“Rio, 19 de fevereiro 1898.
Exmo. Sr. Consº Lafaiete Rodrigues Pereira. – Soube ontem (não direi por quem) que era V. Exa. o autor dos artigos assinados Labieno e publicados no Jornal do Commercio de 25 e 30 de janeiro e 7 e 11 do corrente, em refutação ao livro a que o Sr. Dr. Sílvio Romero pôs por título o meu nome. A espontaneidade da defesa, o calor e a simpatia dão maior realce à benevolência do juízo que V. Exa. ali faz a meu respeito. Quanto à honra deste, é muito, no fim da vida, achar em tão elevada palavra como a de V. Exa. um amparo valioso e sólido pela cultura literária e pela autoridade intelectual e pessoal. Quando comecei a vida, V. Exa. vinha da carreira acadêmica; os meus olhos afeiçoaram-se a acompanhá-lo nesse outro caminho, onde nem o direito, nem a política, nem a administração, por mais alto que o tenham subido, puderam arrancá-lo ao sabor particular das letras em que ainda agora prima pelo conhecimento exato e profundo. A pessoa que me desvendou o nome de V.Exa. pediu-me reserva sobre ele, e assim cumprirei. Sou obrigado, portanto, a calar um segredo que eu quisera público para meu desvanecimento. Queira V. Exa. aceitar os meus cordiais agradecimentos e dispor de quem é – De V. Exa – Muito admº e obrº – Machado de Assis.”
Pôde dizer Alfredo Pujol, no discurso da sucessão a Lafayete, que “o direito era sua vocação, era sua crença, era sua força, era seu destino”. E concluía:
Ao final da vida no refúgio solitário da meditação e do estudo, na sua chácara da Gávea, entre o mar e a montanha, às sombras das suas árvores queridas, ouvindo o sussurro da corrente que derivava a poucos passos de sua biblioteca, viveu Lafayete seus derradeiros dias. A sua livraria ficava em um pavilhão separada da casa de morada, e para lá se dirigia, calçado de botas de cano, quando havia lama no jardim. Foi a leitura a única distração da sua velhice e Montaigne, engenho irmão do seu, o último companheiro do seu espírito, que o deleitava com as confidências de moralista desencantado, de cético enternecido, e sorridente nesse livro imortal dos Ensaios, breviário da sabedoria antiga, em que se mostra o grande pensador “sans étude et artifice”, “tel sur le papier qu’à la bouche”.
Ao fazer o elogio de Lúcio de Mendonça sucedendo-o nesta Casa, Pedro Lessa diria: “De Lúcio juiz muito pouco direi. Não receeis que eu cometa a profanação de, no recinto da Academia, aludir às suas opiniões acerca do habeas-corpus e do recurso extraordinário.” Mas ao receber Alfredo Pujol lamentaria:
“Não sei por que, meu caro confrade, fostes tão avaro nos vossos conceitos acerca da preeminência de Lafayete como jurisconsulto. À Academia provavelmente seria grato ouvir o elogio de seu confrade sob esse aspecto. Foi aqui que ele não teve quem o excedesse, pensam muitos, ou quem com ele ombreasse, penso eu. Não lhe conferiu essa primazia unicamente a sua inteligência de rara agudeza, mas em grande parte a sua cultura filosófica e literária que os seus êmulos não tiveram. No ramo de direito civil que foi de sua predileção não teve ensejo de revelar o seu espírito de criador, pois não se lhe outorgou a incumbência que merecia mais do que ninguém, de elaborar o nosso Código Civil. A sua missão foi de elucidar, metodizar, expor sinteticamente os dogmas de nosso direito. Aí se revelou, com o mais intenso brilho, a sua argúcia no interpretar as leis, o seu método no explaná-lo sistematicamente, a sua clareza inigualável em ambas essas operações lógicas, a concisão e a elegância de seu estilo exemplar. Com uma erudição profunda e vasta, nunca manifestou preferência por escritores deste ou daquele país, pois sua divisa era, como deixou escrito, “je prends le bien où je le trouve”.
Com todos esses atributos, é plenamente justificada a frase de Milton Campos:
Se entre os homens públicos de Minas procurarmos algum que melhor simbolize as virtudes intelectuais de nossa gente e mais possa encher de orgulho a nossa terra, nenhum encontraremos que exceda ao Conselheiro Lafayete Rodrigues Pereira. Entre tantos grandes exemplos humanos que fulguraram no Segundo Império, Lafayete ficará sempre tanto por sua vida tanto por sua obra.
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Pedro Lessa foi eleito em 7 de maio de 1910, com 27 votos, sem concorrentes, e foi recebido por Clóvis Beviláqua em sessão solene de 6 de setembro de 1910. Nasceu no Serro, Minas Gerais, em 1859, terra de outro grande jurista, o Ministro Edmundo Lins, pai do nosso confrade Ivan Lins, ambos colegas do Supremo Tribunal Federal.
Inaugurando o busto naquele Tribunal em 25 de setembro de 1925, disse o colega Edmundo Lins, então presidente:
Apesar de sua têmpera de lutador, bronzeamente inflexível, e, às vezes, explosivo, quando tive a honra de fazer parte deste Tribunal não se me deparou, aqui, um só colega que muito não lhe quisesse, um só que muito não lhe admirasse, um só que, mais que muito, o não acatasse.
Seja-me permitido pois, ao concluir, associar o nome de cada um de vós ao do glorioso Juiz e pedir as palavras da Sabedoria Divina, pospondo o hexâmetro do altíssimo poeta: nesse Supremo Tribunal Federal, “a tua honra, o teu nome, e os teus louvores, hão de permanecer para sempre”.
Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, bacharelou-se em 1873 em turma composta de nomes brilhantes como David Campista, Bueno de Paiva, Martim Francisco Sobrinho e Júlio de Mesquita. Após a formatura desejou se casar com filha de família importante de São Paulo, mas esta só aceitava o casamento com um doutor, e por isso logo após a formatura doutorou-se em Direito. Dois anos após, foi nomeado Secretário da Relação de São Paulo, mas com a vocação do magistério inscreve-se em 1877 em concurso na Faculdade de Direito. Obteve o primeiro lugar, mas não foi nomeado. No ano seguinte, aberto novo concurso, tornou a se inscrever, foi classificado e nomeado substituto, e em 1891 catedrático.
De 1891 a 1907, exerceu o magistério e a advocacia, numa das bancas mais movimentadas da capital paulista. Em 1907, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, após a aposentadoria de Lúcio de Mendonça. Conta-se que Afonso Pena, Presidente da República, convidou-o para o cargo, e ele se escusara alegando que não poderia abandonar as atividades profissionais. Afonso Pena lhe disse: “Eu o convidando, cumpri meu dever; espero que V. Exa. cumpra o seu.” Então Pedro Lessa aceitou a indicação.
Coube-lhe, assim, suceder a Lúcio de Mendonça tanto na Academia como no Supremo Tribunal Federal. No Supremo destacou-se como um dos membros mais ilustres em todo o tempo, responsável pela extensão do habeas corpus a numerosos outros direitos.
De sua atividade no magistério publicou, em 1911, os Estudos de Filosofia do Direito correspondendo ao programa que ensinara na Faculdade. Diria no prefácio:
O que imprime e pode imprimir aos estudos jurídicos um cunho científico é a Filosofia do Direito. Sem ela a tarefa do jurista se reduz a um esforço inferior por interpretar e aplicar preceitos, de cujo verdadeiro e profundo sentido não lhe é dado compenetrar-se. Não pode haver sem ela compreensão e amor da justiça, nem legisladores que elaborem sábias leis, juizes consagrados ao culto inteligente do direito, administradores realmente empenhados em bem executar as prescrições, advogados que sotoponham o egoístico interesse do exercício da profissão à elevada utilidade, ou melhor, a necessidade superior da conservação e do progresso da sociedade pela exata observância das leis. Faltando o conhecimento dos princípios do Direito, fica ele sendo mera arte, cujos preceitos facilmente se desvirtuam na prática aplicando-se ao talante das conveniências individuais.
Clóvis Beviláqua, ao recebê-lo nesta Casa, diria:
Eu como vós inclino-me para o empirismo evolucionista, ainda que veja o novo idealismo puro. Para instilar no direito as idéias da ética, as expansões do liberalismo, as solicitações de eqüidade e do humanismo, basta não procurar segregá-lo do conjunto social, não desconhecer as relações de mútua penetração entre ele e as diversas formas da atividade humana, não turvar as soluções da razão esclarecida pelos saber com as considerações de origem menos pura.
Com o apoio no evolucionismo expusestes a doutrina jurídica em toda a sua amplitude e complexidade quando lente na Faculdade de São Paulo, cujas gloriosas tradições soubestes honrar, a cujos fastos acrescentastes uma página animada, que não se apagará. Ensinastes, ali, que o direito não é a disciplina obscura e rígida que muitos suspeitam e escrevestes essa erudita e bem deduzida dissertação da psicologia aplicada ao direito penal, que vos sagraria mestre se afinal não tivésseis conquistado o título por outros feitos.
E concluiria:
Mas se a saúde mental é o equilíbrio das faculdades do espírito, que dá o bom senso, a visão clara das coisas e o poder de transmiti-las aos outros, com sinceridade e sem os arrebatamentos que desviam o juízo da trilha da retidão, vos a tendes, sem dúvida. E, de par com a saúde intelectual tendes a saúde moral, quero dizer essa inteireza de caráter e amor da justiça sobre que tão adequadamente se assenta a vossa toga de magistrado e que tanto vos eleva na estima dos contemporâneos.
O volume Dissertações e polêmicas (1906) contém trabalhos abrangendo quase todos os ramos do direito constitucional, civil, comercial, romano, penal, fiscal e história do direito. Aponte-se o estudo sobre as sociedades regulares e sociedades de fato no campo do direito comercial, que é estudo completo sobre matéria pouco estudada entre nós.
As letras históricas atraíram também o seu interesse com o estudo O Direito no século XIX, perfis de historiadores como José Francisco Lisboa e Varnhagen. É a História uma ciência?, publicado inicialmente como introdução à História da Civilização da Inglaterra de Buckle, é a contribuição mais importante.
A posição excepcional que assumiu no Supremo Tribunal Federal deu-lhe a expressão que se vulgarizou de “o Marshall brasileiro”. Castro Rebelo, sem desmerecer-lhe os méritos, afirma que “o cognome envolve no paralelo um equívoco”, uma vez que
Marshall pôde, por sua audácia e liberdade de iniciativa, escolher os materiais com que através da jurisprudência da Suprema Corte Americana edificaria um regime político, Pedro Lessa trabalhou com a própria Constituição brasileira, adstrita à sua letra e ao seu espírito, de sorte que em seus votos e decisões, o que dela diretamente não procede ainda aí transparece no texto.
O jurista brasileiro ao contrário, preso a um princípio que não formulara, atido a ele pelo propósito de servir a lei que o ditava, esmerou-se em conciliar a doutrina nos seus julgados com seus escritos. Sua obra se fez, toda ela, com muito relativa autonomia, sem que a fidelidade a princípios constitucionais se tenha sacrificado.
A obra de Marshall, traçada livremente, delineada e assente sobre bases próprias, consultou as tendências de uma sociedade em que não era difícil conhecerem-se os interesses predominantes e, como estes coincidiam com os dele próprio, pôde refletir os interesses políticos do partido a que pertencia, e disfarçar os desígnios pessoais que o animavam, em formas audazes, onde o sofisma se mascarava com o atrevimento de sua própria expressão.
João Luís Alves, sucedendo-o nesta Casa, também discordou do paralelo, achando que a atuação de Pedro Lessa mais se aproximava à do juiz Harlan, que “soube impressionar e atrair a opinião pública americana pela freqüência e vivacidade dos seus dissents nas matérias constitucionais. Assim foi Pedro Lessa, que, mesmo julgando, sem jamais faltar aos ditames da justiça e do direito, não escapou aos impulsos de seu temperamento de polemista, e no início de sua alta magistratura, em freqüentes votos vencidos, proferidos “com o olhar acesos e faiscante de ira, com vivacidade de expressões e tendências inovadoras da jurisprudência aceita. E conclui: “Comparado a Marshall ou a Harlan, o que é incontestável é que Pedro Lessa deu prestígio à toga, vida ao direito e força à Constituição.”
A sua obra principal é Do Poder Judiciário, de 1915, na qual afirma: “para ser útil quanto me foi possível esforcei-me por penetrar o sentido dos textos constitucionais com o auxílio dos princípios da doutrina e dos ensinamentos da jurisprudência” e reconhecia que “como a doutrina entre nós conta, por enquanto, com um número quase nulo de expositores, e a jurisprudência incipiente e vacilante pouco subsídio ou amparo pode prestar, forçoso me foi recorrer aos comentários e aos julgados do país cujas instituições políticas serviram de modelo às nossas, os Estados Unidos da América, valendo-me também não raro dos exegetas da jurisprudência de uma nação que nos precedeu no perfilhar os lineamentos principais da obra de Hamilton, Maddison e Jay, a República Argentina”.
Considerou também que procurou “evitar o erro oposto dos que no estudo e aplicação das nossas modernas leis, olvidam as anteriores disponíveis do direito pátrio, as quais, nos expressos termos do artigo 83 da Constituição, continuam em vigor, enquanto não revogadas no que explicita ou implicitamente, não for contrário ao sistema de Governo, firmado na Constituição e aos princípios nela consagrados”.
No livro Reforma constitucional examina o tema da autonomia municipal, interpretando o artigo 68 da Constituição Federal, e a questão do Conselho Municipal do Distrito Federal perante o Supremo Tribunal Federal, com expressões até hoje de extrema atualidade: “As reformas constitucionais são recursos prediletos das nações fracas incapazes – por sua falta de educação e de energia – de um bom governo prático e das nações decadentes e enervadas que, umas e outras apelam freqüentemente, mas debalde para tão desacreditada panacéia.”
E mais adiante: “Não há forma de governo que tenha a eficácia de amparar uma nação e preservá-la dos males oriundos da incapacidade e da imoralidade dos homens que a governam, da ausência de patriotismo e dos mais elementares predicados para o exercício dos cargos públicos. Não há sistema, nem regime político, que funcione bem por si, automaticamente servidos por maus funcionários.”
E conclui: “Minha tese foi, e continua ser, esta: para curar os males econômicos e financeiros de uma nação, especialmente para regenerar, para restaurar moralmente uma ociosidade política, as reformas constitucionais são remédios inertes, negativos, sem nenhuma eficácia.”
Dele disse Plínio Barreto:
O desaparecimento do Dr. Pedro Lessa é uma desgraça nacional. Na cadeira que ele ocupava no Supremo Tribunal Federal, sentava-se o homem cuja ilustração honrava nossa cultura, cuja nobreza moral engrandecia a nossa terra e cujo amor à justiça tranqüilizava nosso povo. Não havia abuso que passasse pelos seus olhos de juiz incorruptível, partisse de onde partisse, viesse das mais altas regiões do poder, ou viesse de particulares obscuros, que não encontrasse, na sua palavra ardente, a brasa de uma condenação imediata, como não havia grande problema de direito por mais intrincado e obscuro que fosse, que não ganhasse ao contato com seu espírito claridades imprevistas.
E Rui Barbosa mencionando os grandes brasileiros de cada Estado que deveriam ocupar a Presidência da República, aponta: “Pedro Lessa, o mais completo de nossos juízes”. E posteriormente, combatendo voto vencedor, em feito patrocinado por ele: “Modelo de juízes, jurisconsultos e cidadãos, consciência inteiriça, proficiência cabal, experiência consumada, trazei de longe ao entrar no Supremo Tribunal vasta nomeada que a presença não diminuiu, mas antes realçou o espetáculo quotidiais de suas virtudes. Fala como Nestor entre seus colegas.”
João Luís Alves, sucedendo-o na Academia, traçou o perfil do professor:
Jamais me esquecerei da encantadora surpresa que foi para nós essa lição de estréia, terminada por espontânea ovação; que nos deu logo a impressão de uma rajada sadia de ar fresco e oxigenado a varrer as vetustas e sombrias salas do antigo convento – amigo da imobilidade e do silêncio. Pode dizer-se que com ele penetrou no adormecido recinto da Faculdade paulista o espírito do século, com todas as suas ânsias de aspirações humanas e as suas largas visões do futuro, pois só ele iniciou e completou um curso animado, todo, por um sistema de idéias modernas e progressistas. Tinha então Pedro Lessa 28 anos e desde logo ficou consagrado mestre e jurisconsulto, porque jurisconsulto só o é quem vê, com espírito de filósofo, e no direito, não um código misterioso de regras hieráticas mas uma força propulsora da vida para seus fins ideais.
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Há que se referir a Rui Barbosa, justamente considerado o maior dos advogados brasileiros. A dúvida persiste se o poderíamos incluir entre os juristas, pois toda sua atividade se concentrou nos arrazoados forenses em exercício profissional por mais de cinqüenta anos. O exame desses trabalhos leva a conclusão, porém, de que Rui Barbosa se alçou à expressão de um verdadeiro jurista. Ao ataque de Pinheiro Machado de que defendia o pró e o contra das questões, protestou: “Eu não sou da raça dos sofistas gregos, sou da raça dos constitucionalistas americanos e de juristas ingleses, sou homem de consciência.”
Uma referência se impôs à questão Minas x Werneck: Rui Barbosa, consultado por ambas as partes, aceitou o patrocínio do Estado de Minas, enquanto que Américo Werneck teve como advogado o nosso confrade Rodrigo Octavio, vencedor na contenda. Dos hábeas corpus no início da República e dos textos sobre Direito Constitucional Homero Pires reuniu em seis volumes a obra Comentários à Constituição Brasileira. Alguns de seus arrazoados, em O Direito do Amazonas ao Acre setentrional, Posse dos direitos pessoais, Cessão de clientela, Anistia inversa e muitos outros, atestam também a sua presença como grande jurista.
Da obra literária de Rui Barbosa, destaque-se Cartas da Inglaterra, onde sai em defesa do capitão Dreyfus, as orações, entre as quais Discurso no Colégio Anchieta e Oração aos moços, e o monumento filológico Réplica, na discussão com Carneiro Ribeiro sobre a linguagem do projeto de Código Civil.
Com a morte de Machado de Assis, Euclides da Cunha exerce interinamente a presidência, até a eleição de Rui Barbosa, em 3 de outubro de 1908. Rui escreve a Euclides declinando, mas o Barão do Rio Branco, a instâncias de Mário de Alencar e de Rodrigo Octavio, insiste com o genro Batista Pereira pela aceitação: “Rogo-lhe, pois, o favor de ver, em representação minha, se consegue que o nosso Conselheiro e amigo nos faça o favor de modificar a resolução anunciada.” Rui telegrafa a Euclides: “Não há remédio senão render-me. Estou à disposição da Academia.”
Rui exerceu a presidência até 30 de outubro de 1919. Por ocasião da eleição de D. Silvério Gomes Pimenta, Rui votara por telegrama no concorrente, Pinto da Rocha. A votação era secreta e o voto de Rui não foi computado, daí resultando o seu afastamento da Academia.
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Outro ponto culminante é Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, poeta, matemático, sociólogo, físico, professor, filósofo, advogado, embaixador, magistrado, historiador e jurista.
Por ocasião do seu centenário de nascimento, em 1997, coube-me a honra de fazer-lhe o elogio nesta Casa. Limitei-me às suas obras não jurídicas, embora não pudesse omitir os trabalhos jurídicos, o que seria desfalcar o seu valor intelectual.
Pontes de Miranda se candidatou pela primeira vez à Academia em 1926, com apenas trinta e quatro anos, na vaga de Domício da Gama. O vencedor foi Fernando de Magalhães por três votos, obtendo Pontes de Miranda seis votos. Posteriormente, na idade provecta, candidatou-se à vaga de Cândido Mota Filho, concorrendo com Rachel de Queiroz, que foi a vitoriosa – o que se compreende, pois era a primeira vez que uma mulher se candidatava à Academia. Tempos depois, candidato único à vaga de Hermes Lima, Pontes de Miranda foi eleito por quase unanimidade.
No discurso de posse disse que nunca se candidatara a nenhum cargo ou função, no Brasil ou no estrangeiro, para frisar: “Só me candidatei em toda a vida a esta Academia. Nela fui preterido uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, sendo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e pela segunda vez perdi. Quando atingi os oitenta e sete anos, candidatei-me espontaneamente pela terceira vez e fui eleito.” E acrescentou: “A minha entrada, digamos, foi o terceiro prêmio que recebi da Academia pois já havia anteriormente recebido dois.” Referia-se ao prêmio de Erudição pelo livro Sabedoria dos Instintos, de 1921, e pela Introdução geral à Sociologia, em 1925.
A sua primeira obra jurídica é À margem do Direito (estudos de psicologia jurídica), publicada em 1911. Pontes de Miranda enviara os originais à Editora Francisco Alves e ficou preocupado com a demora da resposta. Esta logo chega: “Mostrei o seu livro a Rui Barbosa, Lafayete e Carvalho de Mendonça, eles disseram que devia publicar. Já mandei para Paris, não vou lhe mandar provas porque tenho um bom revisor lá.” Considerava este ensaio de psicologia jurídica como uma teoria basilar do Direito, com a aplicação de métodos psicológicos. Clóvis Beviláqua diria do livro que “era brilhante estudo À margem do Direito, mas penetrando a massa jurídica examinada com um poder de visão, que está denunciando agudeza de mente e bom preparo científico”.
Sobre o livro de filosofia científica Moral do futuro, publicado em 1913, assim se expressaria Rui Barbosa: “Valioso livro. O seu gosto pela meditação filosófica, revelado com qualidades não vulgares nesta obra a que o juízo crítico do Dr. José Veríssimo faz justiça, indica no autor o espírito capaz de elevar ao nível dos graves e desinteressados estudos, cuja cultura não atrai senão as inteligências de escol.”
Publicaria em 1916 História e prática do Habeas Corpus, examinando em toda a extensão a doutrina no Direito brasileiro. A entrada em vigor do Código Civil levaria ao estudo sobre Direito de Família, e na coleção Manual do Código Civil Brasileiro, organizada por Paulo Lacerda, Títulos ao Portador, Promessa de Recompensa e Das Obrigações por Atos Ilícitos.
Em 1922 publica uma das suas obras principais, Sistema da ciência positiva do Direito, síntese do ordenamento jurídico.
Voltou-se para o Direito Público e, em 1932, edita Os fundamentos atuais do Direito Constitucional, análise da evolução da matéria em momento de transformação. A promulgação da Constituição de 34 levou-o a preparar os Comentários sobre a Constituição, revistos e atualizados para as Constituições de 37 e 46. Explica: “O mais importante para um país é ter uma Constituição. Eu me recusei, depois da Emenda no 01 à Constituição de 67, a fazer qualquer comentário daquilo que viria depois. E quando me perguntaram porque, respondi ao meu interlocutor: isto não é feito por brasileiros, brasileiros autênticos não fariam estas coisas.”
O Processo Civil foi seara em que também laborou com grande proficiência, editando Comentários ao Código de Processo Civil, de 1939 e de 1953, que estão sendo atualizados, na parte legislativa, pelo advogado e professor Sergio Bermudes. A obra magna é evidentemente o Tratado de Direito Privado, em sessenta volumes, que não encontra parelha em qualquer literatura estrangeira.
Barbosa Lima Sobrinho diria por ocasião de sua morte: “Aqui na Academia tivemos muitas vezes oportunidade de verificar que nunca tivemos um companheiro tão amável e que tivesse tanto prazer de se considerar acadêmico.”
O professor Lourival Vilanova, da Universidade de Pernambuco, ao analisar-lhe a obra, concluiu: “Pontes foi, antes de tudo, um intelectual, um sábio, um pensador. Tudo isso foi radicalmente sem comprometimento com as situações sociais e políticas de seu tempo, das quais foi crítico agudo e corajoso. Foi talvez o jurista mais informado de seu tempo, porque não circunscrevia sua incansável vontade de conhecimento ao domínio do Direito, pois ia até à lógica, à matemática, até à filosofia clássica e à filosofia científica, versando-se ainda nos fundamentos matemáticos da física quântica e nos pressupostos da biologia.” O próprio Pontes afirmava que a sua obra de jurista se fundava em três circunstâncias específicas: o forte domínio lingüístico, a familiaridade com a matemática e o trato permanente com a vida jurídica prática.
Josué Montello comenta que Pontes de Miranda é tão assombroso que parecia uma invenção de Pontes de Miranda, e na realidade não era um homem, era uma biblioteca.
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Dentre os patronos, cabe mencionar Tobias Barreto, escolhido não por um jurista, mas por Graça Aranha, romancista e diplomata. Tobias Barreto foi o grande renovador dos estudos jurídicos no século XIX e é considerado o chefe da chamada Escola do Recife, da qual foram seguidores os nossos confrades Clóvis Beviláqua, Martins Júnior, autor de uma História do Direito nacional, Artur Orlando, com uma vasta obra no campo do direito, da sociologia e da crítica, e que primeiro utilizou entre nós, em 1904, a expressão “Direito econômico”, e Sousa Bandeira, dedicado aos estudos do Direito Administrativo e autor de belo ensaio sobre Os advogados na vida real e na literatura. A biografia de Tobias Barreto foi escrita pelo nosso confrade Hermes Lima.
Graça Aranha sofreu forte influência de Tobias Barreto, como descreve no livro O meu próprio romance:
Abrira-se o concurso para professar substituto da Faculdade (1882). Foi o concurso de Tobias Barreto. Eu já havia iniciado os meus estudos na Academia. O concurso abriu-se como um clarão para os nossos espíritos. A eletricidade da esperança nos inflamava, esperávamos, inconscientes a coisa nova e redentora. Eu saía do martírio, da opressão para a luz, para a vida, para a alegria. Era dos primeiros a chegar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade, que separava a Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou o nosso favorito. Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se na argüição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela transformávamos. Esses debates incomparáveis eram pontuados pelas contínuas ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso entusiasmo. Tobias Barreto fez a sua prova de preleção oral. O orador atingiu para a minha sensibilidade ao auge da eloqüência. Quando terminou, recebeu a mais grandiosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes. Foi então que, tomado de um impulso irreprimível, saltei a grade e por entre as aclamações dos estudantes e diante do assombro da Congregação, atirei-me aos braços de Tobias Barreto, que me recolheu comovido e generoso. “Já é acadêmico?” perguntou-me, admirado da minha pouca idade. “Sim, calouro.” Abraçou-me, novamente. “Pois bem, vá a minha casa esta noite.” Que deslumbramento! Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto.
São passados mais de quarenta anos desse grande choque mental, e ainda ressinto em mim as suas inefáveis vibrações. Por ele me fiz homem livre. Por ele saí dos nevoeiros de uma falsa compreensão do universo e da vida. Por ele afirmei a minha personalidade independente e soberana. A lição de Tobias Barreto foi a de pensar desassombradamente, a de pensar com audácia, a de pensar por si mesmo, emancipado das autoridades e dos cânones.
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O ano de 1944 – data do falecimento de Clóvis Beviláqua – pode ser considerado o marco divisório entre a concepção doutrinária dos juristas fundadores e uma nova geração, já vincada pelas transformações oriundas do primeiro após-guerra e as expectativas do segundo após guerra, e cujas repercussões se fizeram sentir entre nós a partir da Revolução de 1930. Excetuado Pontes de Miranda que teve trajetória longa e singular, são juristas nascidos no final do século XIX – exceção de Afonso Arinos do início deste – arautos de um ordenamento normativo que viesse a satisfazer a essas profundas mudanças. O elenco é expressivo: Aníbal Freire, Afonso Pena Júnior, Levi Carneiro, Oliveira Viana, Gilberto Amado e Afonso Arinos.
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Aníbal Freire, nascido em 1884, ingressou nesta Casa em setembro de 1948. Sucedeu a Roberto Simonsen, falecido em 1948, acometido de derrame durante uma sessão da Academia, quando saudava o Ministro das Relações Exteriores da Bélgica Paul Van Zeeland. Roberto Simonsen fora anteriormente candidato à vaga de Rodrigo Octavio, disputando com Rodrigo Octavio Filho – e pela primeira vez um filho sucedeu ao pai.
Comentando a sua eleição, diria João Neves da Fontoura no discurso de recepção: “A vossa escolha reuniu – o que é muito raro – a unanimidade de sufrágios aqui dentro e os aplausos lá fora, o que é ainda mais raro. Houve mesmo alguém elogiando a vossa eleição, que lamentou – e com razão, que aqui não houvesse chegado antes.”
Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife, depois de cursar a da Bahia e do Rio, pôde dizer João Neves da Fontoura nesse mesmo discurso: “Três faculdades de direito contribuíram para a formação jurídica do vosso espírito, ávido de saber, em tão verdes anos: a da Bahia, onde aprendestes as lições de Filinto Bastos; a do Rio de Janeiro, que vos familiarizou com a vida da metrópole; finalmente a do Recife, em que recebestes o grau ainda antes da maioridade.”
Com vinte e três anos concorreu ao cargo de professor substituto da faculdade onde se formara, disputando concurso com professor vinte anos mais velho, e já com sólida carreira, Hercílio de Souza. A prova escrita “Bancos, suas espécies. Quais os perigos a que se expõem os bancos que comanditam diretamente as indústrias” é estudo completo, aliando ao fenômeno jurídico o econômico, e ainda hoje merece ser lido.
Aníbal Freire classificou-a em segundo lugar, mas a legislação da época permitia a nomeação pelo Presidente da República entre os dois candidatos. Foi provido no cargo de lente substituto, tornando-se em 1915 professor catedrático de Direito Administrativo. A primeira aula foi esperada com atenção, os alunos, até pouco tempo seus contemporâneos, estavam munidos de folha de papel para fixar os equívocos em que incorresse o novo professor. Aníbal Freire foi tranqüilo na exposição e quando terminou uma das aulas mais belas que a Faculdade de Recife ouviu – os presentes levantaram-se e aplaudiram entusiasticamente. Estava assim consagrado pelos alunos o grande professor que foi em toda a vida.
Nesta Casa foram seus alunos Barbosa Lima Sobrinho, Múcio Leão, Álvaro Lins e Mauro Mota. O primeiro retratou esta faceta:
Fui aluno de Aníbal Freire. Ouvi suas preleções. E por isso, posso testemunhar a impressão que nos deixava. Até os arredios e indiferentes acorriam às suas aulas. Foi, no seu tempo, o professor de maior audiência, aquele que encontrava a sala cheia de alunos de todos os anos, o que era mais de admirar, quando se considerava que ensinava matéria de quinto ano, quando a certeza da aprovação concorre para o absenteísmo, com a freqüência garantida pelos bedéis, sem protesto dos professores.
Era uma renovação, valorizada pela clareza da exposição e pelo brilho da palavra, com o que se descobria pouco a pouco o orador incomparável, preciso e vibrante, capaz de surtos de eloqüência, dentro de uma doutrinação convincente. E foi esse domínio da oratória somada à cultura de um especialista devotado, o que colocou Aníbal Freire entre os maiores professores com que se honraram, ou se engrandeceram as cátedras da velha Faculdade do Recife.
Integrou de 22 a 29 a direção do Jornal do Brasil, função que retomaria de 1937 a 40 e de 1951 a 61. Em 1923 foi nomeado pelo Presidente Arthur Bernardes Ministro da Fazenda, em substituição a Sampaio Vidal, a fim de realizar uma política deflacionista. Organizou a Contadoria Geral da República, e implantou o imposto geral sobre a renda instituído na gestão do antecessor. “Em cerca de dois anos de esforços, bem orientados, as despesas puderam ser comprimidas, reduziu-se o déficit orçamentário e o meio circulante, elevaram-se as taxas de câmbio, avolumaram-se os saldos na balança comercial.” (João Neves da Fontoura) Tinha-se a comprovação da justeza de frase em prova escrita de concurso: “Deve-se atender, porém, a que as circunstâncias econômicas e financeiras não são sempre as mesmas, e mais cedo ou mais tarde a ciência econômica se vinga acerbamente dos que procuram lhe desconhecer os princípios e leis dominadoras.”
Eleito deputado federal em 1924, após concluído o mandato Aníbal Freire retorna às atividades na Faculdade do Recife e a representa no Conselho Superior de Ensino e, posteriormente, no Conselho Nacional de Educação. Em 1938 é chamado pelo Presidente Getúlio Vargas para as funções de Consultor Geral da República. Os pareceres que proferiu, junto com os votos do Supremo Tribunal, foram reunidos em dois volumes de Pareceres e votos e dão a medida do saber jurídico. Nessa atividade Aníbal Freire revelou as altas qualidades de conhecedor do Direito Público, especialmente do Direito Administrativo. Os conhecimentos de economia foram úteis no estudo de várias questões, como o contrato de comissão mercantil e os crimes de economia popular. O parecer interpretativo de artigo da Constituição, em face da legislação dos monopólios e estatização das indústrias, até hoje é citado na exegese da lei de abuso do poder econômico.
Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1940, por onze anos exerceu a judicatura com o brilho. Seus votos são modelo de síntese, concisão e espírito jurídico. Caberia ressaltar o proferido na concessão do hábeas corpus que permitiu, em 1945, o retorno ao Brasil dos políticos exilados: Armando Sales de Oliveira, Otávio Mangabeira e Paulo Nogueira Filho. Ou nas representações contra as Cartas Constitucionais do Ceará e do Rio Grande do Sul após a entrada em vigor da Constituição de 46, argüida a inconstitucionalidade de alguns dispositivos de cunho parlamentarista. De um desses votos diria o Ministro Orozimbo Nonato: “memorável voto exemplar, inexcedível de clareza, elegância e concisão”.
Afirmava Aníbal Freire: “Não precisamos orientar por doutrinas. As doutrinas elucidam, amplificam, clarificam, ilustram os debates; as idéias são como estuário em que a verdade reflui. Mas na hipótese temos de ficar apenas adstritos à Constituição. Num caso como noutro é somente a Carta Magna que há de inspirar as nossas decisões. Presidencialista sou; fui no apogeu da carreira política; presidencialista me mantive no ostracismo a que as vicissitudes da carreira partidária conduzem. Mas juiz não posso ficar preso aos princípios e doutrinas que proferi na vida política. Tenho que confiar apenas na índole, no espírito, na sistemática da Constituição; embora isso contrarie ou possa contrariar as tendências do meu espírito.
No discurso ao deixar a Corte Suprema em 1951, declararia: “A Constituição de 1946 reservou ao Supremo Tribunal Federal situação de incontestável relevo no mecanismo das instituições. Foi ele submetido à dura prova na aplicação imediata do texto referente à intervenção federal e pode ufanar-se, sem ostentação e com desvanecimento, da solução do problema, ligado tão de perto à inteireza e eficiência do regime. De ânimo desprevenido, indiferente aos interesses em conflito, não encarando os personagens envolvidos, o Supremo Tribunal assegurou em arrestos sucessivos a aplicação exata da lei magna.”
Nesse discurso faria comentário interessante sobre a literatura e a judicatura: “A literatura, pelas suas várias formas de expressão, procurou criar para os juízes a atmosfera de desconfiança, incitando na opinião a descrença no seu julgamento. O romance e o teatro apoderaram-se desse tema, estereotipando os juízes como elementos de opressão, incapacidade e subserviência. De Dostoievski a Anatole France, de Tolstoi a Brieux e Sinclair Lewis, a gama das aspirações se alterna entre o desdém e a invectiva. Atente-se pois, no esforço sobre-humano que tem que fazer o juiz para resistir a esta onda de descrédito e de aleive”.
E concluindo em nota de caráter pessoal: “É sempre triste o adeus se ele pode ser sombreado pela melancolia do inverno da vida. Mas não quero ser melancólico e apraz-me, neste instante de despedida, assegurar aos meus colegas que o seu exemplo perdurará sempre no meu espírito como uma cintilação e um estímulo. Quero também exprimir o compromisso de jamais esmorecer, nas lides pelo direito, pelo ideal, pela justiça.”
A obra jurídica mais expressiva é o livro O Poder Executivo na República Brasileira, editado em 1916, e reeditado em 1981 pela Editora a Universidade de Brasília e Câmara dos Deputados com introdução do conferencista. Gilberto Amado chamou-o de “clássico das letras jurídicas” e Victor Nunes Leal a ele fez referência “como notável estudo”. No necrológio, nesta Casa, Levi Carneiro diria que a “estimaria ver, ainda hoje, nas mãos dos que estudam essa matéria relevantíssima para se afeiçoarem aos seus grandes princípios fundamentais”. E José Honório Rodrigues acrescentaria que “é uma obra-prima do pensamento jurídico-político brasileiro. Filia-se e está na mesma ordem de grandeza do Direito Público brasileiro e Análise da Constituição do Império de Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente. É uma obra simples, original, singular, única; se não é um exame completo da Constituição, é o exemplo das raras vezes em que o jurista brasileiro com base na experiência, no pensamento brasileiro, na obra parlamentar e dos publicistas, analisa a realidade do Poder Executivo.
Impressiona desde logo o domínio completo e atualizado da bibliografia, autores franceses, italianos, ingleses e norte-americanos, bem como o influxo da Argentina, tão presente em nossa primeira República. Os grandes autores do Direito brasileiro também são referidos.
Esta atualidade biográfica é expressiva, pois comenta a obra de Charles Beard The Economic Interpretation of the Constitution, editado dois anos antes, em 1914, manifestando discordância com a transposição do exemplo americano para o nosso país. No livro norte-americano o autor procurava mostrar os condicionantes econômicos que determinaram a conduta dos membros da Convenção de Filadélfia, enquanto que Aníbal Freire demonstra:
Parece-nos que não nos é possível adotar idêntico critério na análise da Constituição brasileira. Dos banqueiros só havia dois na Constituinte de 1891, Mayrink e o Conde Figueiredo. A única e valiosa questão econômica que despertou a atenção da Constituinte, a da discriminação das rendas públicas girou em torno de princípios e idéias de cada um dos antagonistas. Nem mesmo se pode afirmar com segurança que o debate se tenha desenvolvido em torno da distinção entre os Estados do Norte e do Sul, pois esta se manifesta nas questões fundamentalmente políticas.
O livro examina o papel do Poder Executivo na República Brasileira, discutindo em todos seus aspectos as relações com o Congresso, com o Judiciário e os Estados. Em nenhum momento perde a visão da realidade das coisas e verbera “a fantasia arbitrária de ideólogos”. E conclui com uma lição de sabedoria:
Tal é em suas linhas gerais o sistema vigente. Podem-se-lhe apontar imperfeições e deficiências, das quais nenhum regime até hoje logrou escapar. Mas não há negar que ele constitui um trabalho ingente de alta sabedoria, de descortino e de sugestivo interesse patriótico. Para a sua conservação não se faz mister senão que executem lealmente, obedecendo à diretriz que o inspirou e lhe anima a existência e a duração, através de todos os embaraços e incertezas.
A atualidade desse trabalho, singular na bibliografia jurídica, revelou-se recentemente, quando o Ministro Evandro Lins e Silva, advogado de acusação no impeachment do Presidente Fernando Collor de Melo, foi se socorrer das suas páginas para reforçar os argumentos.
Por ocasião dos oitenta anos, grandes manifestações lhe foram tributadas. O nosso confrade Gilberto Amado escreveria “com orgulho de sergipano do livro que se tornou um clássico das letras jurídico-políticos do Brasil. Ainda hoje merece ser lido”.
Victor Nunes Leal diria que “muito se poderia escrever e muito se escreverá sobre o juiz e jurista Aníbal Freire. Que os moços estudem a sua obra como nós os mais velhos fazemos permanentemente. É uma lição de equilíbrio, de bom senso, de amor a este país. Nela aprenderão a sofrear os arroubos e buscar soluções para os problemas novos, preservando o que de fundamental já conquistamos e não deve ser destruído”.
O discurso de posse com o elogio de Roberto Simonsen, o discurso de recepção a Assis Chateaubriand, os estudos biográficos de Alberto de Oliveira, Filinto de Almeida e Roberto Simonsen, seus antecessores, as conferências pronunciados na Academia sobre José Veríssimo e o objetivismo crítico, a Oratória parlamentar do século XIX e Historiadores do século XX, os perfis de Zola e Lacordaire, bem como as centenas de artigos escritos em jornais e revistas, revelam o escritor de mão cheia, já demonstrado nos seus votos e pareceres.
Cumpre falar de sua personalidade. Alceu Amoroso Lima, colega no Conselho Nacional de Educação, descreve “a impassibilidade britânica, o espírito sutil, a palavra concisa e exata, a lógica no pensamento, a descrição nos gestos, a cordialidade extrema no trato”. E acrescentaria: “nunca fez questão de aparecer. Nunca pleiteou cargos. Nunca perdeu a razão de ficar calado e deixar que os afoitos e carreiristas lhe tomassem a dianteira. Será esse um dos traços marcantes de sua superioridade intelectual, pois também nunca recusou trabalhos nem fugiu a responsabilidade de posições de vanguarda.”
No final da vida a doença lhe foi cruel e recolheu-se ao apartamento da rua das Laranjeiras. É Gilberto Amado que comenta: “No seu modesto apartamento de Laranjeiras, depois de aposentado, suas manhãs eram povoadas por amigos, homens eminentes que vinham ouvi-lo para orientar-se e aprender, no labirinto de hora, na diversidade dos rumos, a direção mais conveniente ao país. Sólido, sob a doçura das maneiras, incapaz de compromissos Aníbal Freire pôde tornar-se para este grupo de amigos o conselheiro firme, um raro ressuscitador da coragem dos abatidos.”
Herberto Sales, sucedendo-o na Cadeira no 3, diria que “foi um mestre de gerações, ensinando a mocidade; na tribuna da Câmara, ensinando os seus pares, porque foi, ainda aí, por excelência um Mestre; no saber político e no pensamento doutrinário. A vida de Aníbal Freire, em resumo, foi uma perene aula de sabedoria da ciência jurídica que se completava no magistrado e no homem”.
E o nosso confrade Josué Montello destacou o papel nesta Casa: “Aos oitenta e seis anos de idade era ele um dos companheiros invariavelmente consultados para todos os problemas complexos na instituição a que pertencia. A enfermidade que o reteve em casa nos últimos anos, respeitou-lhe a perfeita lucidez – o que lhe permitiu estar sempre presente em nossas discussões embora fisicamente ausente.”
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Menção deve ser feita ao nome de Afonso Pena Júnior, que não deixou obra sistemática, mas cujos pareceres como consultor jurídico do Banco do Brasil e da antiga Superintendência da Moeda do Crédito têm marcas de um profundo saber jurídico. Humanista, com sólida formação clássica, não há na literatura brasileira demonstração mais efetiva de reconstituição da prova, como a atribuição de autoria de A Arte de Furtar e seu autor, que afirmava não ter “sido trabalho de advogado adstrito a coligir e apresentar do melhor modo possível, os elementos favoráveis a uma causa, mas trabalho de juiz na instrução rigorosa e no exame parcial de uma ação de reivindicação da Arte de Furtar, ação em que os litigantes conhecidos eram muitos e podia algum desconhecido estar com melhor direito”.
Assumindo a consultoria jurídica do Banco do Brasil em 1932, exerce a função numa fase de profundas transformações da ordem jurídica e soube com inteligência aplicar o novo direito aos princípios antigos. Comentando esses pareceres diria Odilon Braga:
O intérprete deveria possuir invulgares requisitos de cultura geral e de cultura jurídica, sobretudo filosófica, bem como aquela fina cultura do espírito a que os franceses dão o nome sagesse, esquisita e rara síntese de maturidade intelectual, ilustração humanista e de compreensão generosa, que sempre conduz à admiração de Montaigne. Ora, tal foi a missão magistralmente desempenhada por Afonso Pena Júnior, como consultor jurídico do Banco do Brasil.
Nos pareceres, sintetizava com clareza: “sempre que o legislador com violento golpe de leme muda bruscamente uma orientação secular, forma-se uma resistência de inércia contra as disposições inovadoras. A demora, o espírito de rotina leva comentadores e tribunais a construir um preceito novo ao sabor das idéias antigas, ou a deixá-las inoperante no corpo da legislação como arma de museu.
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Levi Carneiro, basicamente advogado, deixou obra importante no campo do Direito Público e se notabilizou por ter sido com força indomável o organizador da Ordem dos Advogados do Brasil.
A obra O livro do advogado reúne trabalhos avulsos e transcreve discurso pronunciado em 1922, considerando-se “advogado, simples advogado, sem aptidão para mais, eu me consolo de sentir-me destituído de aspirações maiores, amando a minha profissão na sua beleza, na sua força, na sua humildade, nas suas aflições, no que comporta de abnegação, de lealdade, de desinteresse, no que exige desassombro de probidade e vibratilidade, no que proporciona de independência, no que ensina de tolerância”.
Nos traços de sua vida profissional descreve a primeira causa, postulando medida judicial para modesto verdureiro preso ilegalmente, e que só pôde retribuir com um volumoso saco de hortaliças “meus primeiros honorários de advogado”. Assim como cumpriu os mandamentos da ética profissional, estando com a filha agonizante em Petrópolis, recebe o chamado de um cliente para representá-lo em Assembléia Geral. Levi Carneiro não titubeou, desceu a serra, cumpriu o mandato e retornou ao leito da filha.
A contribuição ao Direito Público inicia-se no I Congresso de História Nacional promovido em 1914 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com a tese O federalismo. Suas explosões. A Confederação do Equador. Seguem-se os livros Do Judiciário federal (1016), a propósito do livro de Pedro Lessa, Federalismo e judiciarismo (1930), Problemas municipais (1931), O Direito Internacional e a democracia (1945) e Uma Experiência de Parlamentarismo (1965). Foi deputado classista à Constituinte de 1933, representando os advogados, e ocupou o cargo de vice-presidente da Comissão Constitucional, presidida por Carlos Maximiliano e tendo como relator geral Raul Fernandes. Com Orozimbo Nonato e Themistocles Cavalcanti compôs a Comissão que elaborou o anteprojeto da Constituição de 1967. Foi juiz da Corte Internacional de Haia, completando o mandato de Philadelpho Azevedo (1951-1955).
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Francisco José de Oliveira Viana nasceu em 1883 em Saquarema, Estado do Rio, e publicou em 1920 o livro Populações meridionais do Brasil, estudo pioneiro de sociologia. Uma crítica vesga e obtusa tem procurado desmerecer a importância dessa obra, desvinculando-a da sua época e de seu tempo, mas realmente sangue novo nos estudos sobre a sociedade brasileira.
Publicou, em 1921, Pequenos estudos de Psicologia Social; em 1922, O povo brasileiro e sua evolução, obra síntese do Recenseamento de 1920; em 1925, um estudo de história, O ocaso do Império, examinando as causas da decadência do regime imperial.
De 1922 é o seu primeiro estudo próximo ao Direito, O idealismo da Constituição, publicado no volume organizado por Carneiro Leão À margem da História da República, depois publicado em livro, em 1927, e ampliado na segunda edição, em 1939. Examinava o caráter teórico e abstrato das Constituições brasileiras, inteiramente desvinculadas da realidade nacional, motivo do fracasso e das opções constantes por outras novas constituições.
Com a Revolução de 30 organiza-se o Ministério do Trabalho e é chamado para as funções de consultor jurídico, quando elabora quase toda a legislação trabalhista da época. Os livros Problemas de direito corporativo de 1938, As novas diretrizes da política social de 1939, Problemas de Direito Sindical de 1943, são trabalhos em que reúne estudos da época.
O projeto de organização da Justiça do Trabalho elaborado por comissão de técnicos do Ministério do Trabalho, da qual era figura principal Oliveira Viana, foi enviada a Câmara dos Deputados em 1935. Encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, recebeu ferrenha crítica do Deputado Valdemar Ferreira, professor catedrático de Direito Comercial da Faculdade de São Paulo, que apontava várias incorreções, inclusive argüindo a incompatibilidade da competência normativa da Justiça do Trabalho com a Constituição de 34. Oliveira Viana veio a público para defender o projeto e escreveu uma série de artigos, publicados no Jornal do Commercio e reunidos no livro Problemas de Direito Comparativo. Declarava que o debate se resumia numa questão de técnica interpretativa da Constituição, como expressão de conflito entre duas concepções do direito, a velha concepção individualista que nos veio do direito romano, do direito filipino, do direito francês, através de Corpus Juris, das ordenações e do Code Civil francês, e a nova concepção nascida da crescente socialização da vida jurídica, sujo senso de gravitação vinha se deslocando sucessivamente do indivíduo para o grupo e do grupo para a nação.
Dizia que a legislação saída da Revolução de 30, marcando uma fase nova no direito positivo brasileiro, estava exigindo, para ser compreendida em toda sua extensão, uma renovação profunda da dogmática e da sistemática dos nossos conceitos tradicionais. O direito contido na legislação social da revolução era direito inteiramente desconforme não apenas com as regras, mas com os princípios do próprio sistema do direito privado brasileiro, em cujos moldes se teria moldado a mentalidade de nossos juristas, e concluía que o problema representava o choque dessas duas concepções de direito, aliás em conflito em todos os sistemas jurídicos do mundo.
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Outro jurista que integrou os quadros da Academia foi Gilberto Amado, representando a vertente do internacionalista. Nasceu em Sergipe em 1887, estudou na Faculdade do Recife, formando-se em 1906, e logo em seguida se transferia para o Rio de Janeiro, no exercício do jornalismo e se destacando como ensaísta. Em 1911 com a Reforma Rivadávia Corrêa é nomeado professor de Direito Penal da Faculdade do Recife.
O prestígio alcançado na capital federal levou-o a se candidatar à Academia em 1914, vencedor Antônio Austregésilo por um voto. Quase cinqüenta anos depois, em setembro de 1963 era eleito praticamente por unanimidade. Ao tomar posse, sucedendo a Ribeiro Couto, diria em relação à eleição anterior:
Teria sido um bem ou um mal o favor tão prematuro? Como me teria eu movido sobrecarregado de títulos e dignidade tamanha antes da hora, ao amanhecer da existência? Conquanto a glorificação acadêmica não impunha maiores deveres e obrigações ao seu fruidor, é evidente que sobre o acadêmico se reflete uma luz condicionada pela altura mesma, pela categoria e ordem social que o público situa.
“Porque não entra para a Academia?” - perguntavam-me. A preocupação revela até que ponto a Academia penetrou as camadas da população, constituindo-se uma presença não só prestigiosa como sagrada, poderíamos até dizer. A Academia ergue-se no meio brasileiro como um ponto referencial, uma espécie de foco para qual se voltam os espíritos.
Gilberto Amado é eleito deputado federal e em seguida senador, ocupando a presidência da Comissão de Diplomacia e membro da Comissão de Finanças, e escreve vários ensaios. Em 1930 perde o mandato e é transferido como professor para a Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. De 31 a 34 exerce o magistério, despertando o maior interesse entre os discípulos.
Teria ele, ao conversar com Francisco Campos em Belo Horizonte, vendo este receber alunos da Faculdade de que era professor, refletido: “É o que me faz falta no Rio... a cátedra, os estudantes, a convivência com eles.”
Escreve em 1931 Eleição e representação com o subtítulo de Curso de Direito Público, que é uma análise sobre o regime eleitoral, provocado pela adoção do voto secreto e pelas eleições representativas legítimas.
Em 1934 é nomeado consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores com a aposentadoria de Clóvis Beviláqua. Inicia assim a sua carreira de jurisconsulto, que é interrompida em missões diplomáticas no Chile e na Finlândia, mas após a guerra é indicado representante do Brasil à Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas, função que exerce até morrer em 1967.
De sua passagem pela Comissão de Direito Internacional, diria Alceu Amoroso Lima no discurso de recepção na Academia: “Começou então o vosso trabalho silencioso, por esse ideal de intercomunicação internacional, de paz universal, que haveis delineado nos escritos proféticos de vossa juventude.”
Segundo o depoimento de seu auxiliar, o Embaixador José Sette Câmara Filho, ao iniciar-se os trabalhos da Comissão vários membros descuidavam das opiniões dos Estados e pensavam estar construindo um edifício de direito internacional codificado, de acordo com melhor modelo científico. Gilberto Amado foi o profeta inconformista com essa tendência acadêmica, e compreendeu que a Comissão era um órgão subsidiário das Nações Unidas, criado para prover perícia científica de maneira a servir aos interesses dos Estados no campo da codificação do direito internacional. Pronunciou tirada famosa de que os Estados não são trouxas para esquecer seus interesses, em benefício da doutrina e de soluções acadêmicas. A situação se confirmou no projeto sobre processo arbitral do professor francês Georges Scelle, que sonhava com a criação de uma estrutura compulsória para a arbitragem. O projeto contra o qual Amado lutou de todas as formas foi mal recebido pelos governos, que o rebaixaram a um modelo de regras sobre a arbitragem, aos quais os estados podem recorrer facultativamente.
A sua contribuição foi extensa, os projetos relativos ao direito do mar, a questão das reservas nas convenções multilaterais, como em toda a vasta área do Direito dos Tratados, especialmente em relação à negociação, à aceitação e a interpretação, na aceitação do conceito revolucionários do Jus cogens. Atuando paralelamente como delegado do Brasil à 6a Comissão da Assembléia Geral da ONU, que trata de assuntos jurídicos, e como chefe de várias conferências de codificação, sua influência se desdobrava e passou a ser decisiva nas soluções finais. Nada ilustra melhor o prestígio alcançado do que a homenagem que lhe é prestada anualmente durante as sessões da Comissão na série Gilberto Amado Memorial Lectures. Esta homenagem foi proposta logo após a sua morte em 1970, na 25a sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, pelo Delegado da Nigéria, o jurista Tassim Elias. Pela Comissão de Direito Internacional passaram os maiores internacionalistas dos últimos quarenta anos, entre os quais Brierly, Georges Scelle, Manley Hudson, Lauterpaucht, Jessup, Verdross e tantos outros. É motivo de orgulho que entre tantos luminares do direito internacional seja a memória de Gilberto Amado a única cultuada pela Comissão.
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No campo do Direito Público, se destaca com visão universal Afonso Arinos de Melo Franco. Formou-se em Direito em 1927, ano do centenário dos cursos jurídicos. Disse-lhe então um familiar decepcionado: “Você acabou na vala comum. Bacharel como toda a gente.” Estudos em Genebra, quando o pai representava o Brasil na Liga das Nações, abriram-lhe os horizontes para a história das idéias, surgindo em 1937 livro singular O índio brasileiro e a Revolução Francesa.
Com a formatura foi nomeado promotor público em Belo Horizonte por iniciativa do Presidente Antônio Carlos, desejoso de atrair para Minas filhos de ilustres mineiros radicados na capital federal. Dessa rápida experiência resultou tese de concurso, não realizado, para a cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, sobre Responsabilidade criminal das Pessoas Jurídicas, tema novo, ainda pouco estudado entre nós e que deu a contribuição de jurista em formação.
Voltando ao Rio em 1928 seus interesses intelectuais se concentraram na literatura e no ensaio, no tríptico Introdução à realidade brasileira, Preparação ao nacionalismo, Conceito de civilização brasileira e no magistério de História do Brasil na Universidade do Distrito Federal de Anísio Teixeira.
Com a redemocratização em 1945, Afonso Arinos ingressa na vida política, eleito primeiro suplente e empossado deputado federal com a ascensão de Milton Campos ao governo de Minas. O exercício do mandato parlamentar o aproxima do Direito Constitucional e realiza dois concursos de cátedra, o primeiro na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, tratando das Leis complementares à Constituição, assunto introduzido pela Carta de 46, compondo a banca dois de seus futuros colegas na Academia, Aníbal Freire e Pontes de Miranda. Do primeiro diria Afonso Arinos no livro de memórias:
Aníbal Freire foi quem examinou de fato, e me surpreendeu pela trama cerrada e firmíssima da sua análise, que levou minha pobre tese a um pelourinho. Foi muito cortês, mas muito severo. Respondi como pude, de maneira bem inferior à argüição de mestre Aníbal, que foi generoso na nota máxima. Aliás, ele mesmo acentuava que não gostava de examinar concursos, e que só aceitara, naquele caso, em homenagem a mim.
No segundo concurso, com vários candidatos, obteve o primeiro lugar com a tese História do partido político no Direito Constitucional Brasileiro, tese onde se aliavam os conhecimentos jurídicos aos conhecimentos históricos. A partir daí sucedem-se os trabalhos. O Curso de Direito Constitucional em dois volumes, o primeiro A teoria geral, dedicado a Pimenta Bueno, e o segundo Formação constitucional do Brasil, aliando mais uma vez aos conhecimentos jurídicos os históricos, dedicado a Afonso Pena Júnior.
O verbete para a Enciclopédia Mirador constitui introdução ao Direito Constitucional, publicado sob o título “Direito Constitucional, Teoria da Constituição. As Constituições no Brasil”. E o volume Estudos de Direito Constitucional, de 1957, reúne trabalhos avulsos, estudos elaborados entre 1949 e 1956, entre os quais se destacam Crise do direito e Direito da crise e O constitucionalismo brasileiro na primeira metade do século XIX.
A intensa atividade parlamentar provocou a elaboração de trabalhos de teor jurídico, como o parecer pela Liberdade de Imprensa, o Congresso e a Constituição, os discursos proferidos no Senado sobre a elaboração da Constituição em 1967 sob o título da Reforma constitucional.
Mas a atuação mais significativa foi em prol da adoção do regime parlamentarista. Presidencialista arraigado no velho estilo da República Velha, proferiu em 1949, como relator da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, parecer contrário à emenda parlamentarista de autoria do Deputado Raul Pila. As mazelas do regime presidencialista a partir de 46, as crises provocadas pelas sucessões presidenciais levaram-no a aderir ao parlamentarismo, do qual se tornou o principal propugnador após a morte de Raul Pila. O momento alto dessa jornada foi na presidência, em 1985, da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, justamente chamada Comissão Afonso Arinos, incumbida da preparação de um anteprojeto de Constituição, da qual tive a honra de participar, por sua indicação, na companhia de nossos confrades Barbosa Lima Sobrinho, Miguel Reale, Evaristo de Moraes Filho, Eduardo Portella, Candido Mendes e Fernando Bastos de Ávila, com a inclusão no anteprojeto do regime parlamentarista.
O apreço da cultura jurídica lhe foi demonstrado por ocasião da aposentadoria pelo livro As tendências atuais do Direito Público – Estudos em homenagens ao Professor Afonso Arinos de Melo Franco, que me coube o privilégio de organizar com o Prof. Celso de Albuquerque Mello, contando com a colaboração dos confrades Candido Mota Filho, Hermes Lima, Pontes de Miranda e Evaristo de Moraes Filho.
Disse João Neves Fontoura: “Há entre a Academia e o Supremo uma certa e antiga contigüidade : quando os juízes não entraram para a Academia, foram os acadêmicos que entraram para o Tribunal.”
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Ao Supremo Tribunal Federal ascenderam outros membros da Academia. Além dos já citados Lúcio de Mendonça, Pedro Lessa, Rodrigo Octavio e Aníbal Freire, há a mencionar, entre os mortos, João Luís Alves, parlamentar e político, Ministro da Justiça, autor de comentários ao Código Civil; Ataulfo de Paiva, que fez carreira como magistrado; Cândido Mota Filho, crítico literário, professor de Direito Constitucional e Ministro da Educação; e Hermes Lima, ensaísta, parlamentar, professor de Introdução à Ciência do Direito, de quem tive o privilégio de ser aluno, e cujo livro é um exemplar excelente de manual didático.
Muitos outros poderiam ter tido acesso ao Supremo Tribunal Federal, mas recusaram. Inglês de Sousa alegou motivos particulares. Clóvis Beviláqua, dada a modéstia de seu temperamento. Oliveira Viana declarou: “estou muito velho para estudar direito civil” Gilberto Amado disse ao Presidente Getúlio Vargas: “Não, Presidente, não pense nisto... a honra é grande demais. Mas não aceito, não poderei aceitá-la. Jamais me sentiria bem na função de julgar.” O nosso confrade José Sarney comenta que Gilberto lhe dera a justificativa: “por causa da minha comadre Nazaré” (esposa do nosso confrade Odylo Costa, filho). “Nazaré é a melhor pessoa do mundo e eu não posso aceitar um cargo no qual não possa atender a um pedido da minha comadre Nazaré e logo por motivo de justiça.”
À cadeira no 41 acorreram, entre outros, Alberto Torres, ministro do Supremo Tribunal Federal e autor de importante obra no campo do Direito e do pensamento político; Agenor de Roure, constitucionalista; Francisco Campos, mestre da Filosofia e do Direito, responsável por significativa obra de renovação legislativa e exímio parecerista; Haroldo Valladão, especialista em Direito Internacional Privado; e San Tiago Dantas, consumado civilista e atento às transformações do Direito em face da mudança social.
Afirma Afonso Arinos, estudando a literatura e o pensamento jurídico:
Poderíamos enumerar uma série de juristas cuja obra jurífica não se dissocia da literária. Alguns são melhores juristas que escritores, outros o contrário. Mas a tradição brasileira que fez nascer a Literatura e o Pensamento Jurídico como irmãos gêmeos, não se destruiu. Ainda permanece indefinidamente atuante, porque a Literatura e o Direito, em países como o nosso, são duas formas de expressão muitos próximos dos anseios de sociedade em mudança: de uma sociedade que ainda não encontrou os fundamentos adequados de sua coesão da sua estabilidade.
Para estudar os vivos - caso houvesse tempo pois exigiria uma outra conferência – mencionaria Barbosa Lima Sobrinho, jornalista, historiador, parlamentar, dedicado aos estudos de Direito público, com contribuições na área de concessões; Miguel Reale, mestre da Filosofia do Direito, que transita em todos os ramos do Direito; “nos quadrantes do direito positivo”, Evaristo de Moraes Filho, meu grande mestre na Faculdade Nacional de Direito, até hoje meu professor, um dos expoentes daquela e desta Casa, luminar do Direito do Trabalho e da Sociologia do Direito; e Oscar Dias Corrêa, ilustre publicista que exerce com brilhantismo as funções de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Este apertado sumário, dada a amplitude do tema, confirma que os juristas que pertenceram a esta Casa, dos mais ilustres do cenário brasileiro, foram ao mesmo tempo homens de cultura e não se limitaram ao setor restrito da especialidade, mas se destacaram no romance, no ensaio, na crítica, na história, na filosofia, nas ciências sociais. Homens de boas letras, prezavam o vernáculo e se exprimiam em linguagem elegante. Representaram também, como expoentes do pensamento jurídico, a tradição desta Casa de defesa da cultura, da língua e da literatura brasileira.
Nélida Piñon - Sou obrigada a dizer que o Acadêmico Alberto Venancio Filho equivocou-se, dizendo que eu me excedi, ou pelo menos insinuou que teria me excedido na minha generosidade. A verdade é que essa aula de caráter inaugural diz bem a meu favor, fala por mim. Muito obrigada. Uma beleza de aula!
Vamos agora pedir que a platéia encaminhe suas perguntas. Eu agradeceria ao Acadêmico Arnaldo Niskier, nosso secretário-geral, que fizesse a coordenação.
Arnaldo Niskier - Se a pergunta puder vir por escrito, é melhor, porque assim se organiza, para evitar repetição. Mas, para dar a partida, já existem perguntas.
Valéria Torres - antropóloga do Museu Nacional: Ilustre Acadêmico Alberto Venancio, seria possível identificar, tomando como referência os juristas, que tipos paralelos, de definição do Brasil como nação, permearam esta Academia?
Alberto Venancio Filho - Esta indagação foge um pouco ao âmbito do tema, mas eu queria dizer, em primeiro lugar, que esta conferência tem cinqüenta e seis páginas. Muita coisa que não pôde ser dita será publicada. Creio que todos os juristas que mencionei tiveram essa visão muito clara da nacionalidade brasileira.
No movimento da Escola do Recife, Tobias Barreto foi nosso patrono, mas teve vários seguidores nesta Casa, como Clóvis Beviláqua, Martins Júnior, Sousa Bandeira. Tinham eles, evidentemente, essa noção muito clara, inclusive a tendência de tirar o exclusivismo que a cultura brasileira tinha, então, para com a cultura francesa, a cultura alemã e a cultura de outros países.
Se formos mais adiante, Pedro Lessa, por exemplo, a frase que citei de Pedro Lessa sobre a reforma constitucional talvez seja o melhor exemplo do que era o pensamento sobre o Brasil, na medida em que um jurista do porte dele achava que as reformas constitucionais seriam inócuas se não houvesse outras transformações na mentalidade brasileira, na cultura brasileira. E Oliveira Viana, que foi um grande sociólogo, um grande autor. A preocupação constante dele era com o problema da formação nacional. O que ele dizia sobre a Justiça do Trabalho, e que citei aqui - mas teria muitos outros trechos para citar - é exatamente essa preocupação com a formação da nacionalidade, com a criação de um país forte e poderoso.
Arnaldo Niskier - André Ferreira, representante da Academia Tabatinquense de Letras do Distrito Federal, elogia bastante o Acadêmico Alberto Venancio Filho e pergunta quais as razões que têm induzido o sistema jurídico brasileiro a posicionar-se reticente ante as solicitações da modernidade globalizante?
Alberto Venancio Filho - É tema para outra conferência, está na moda a globalização, tudo no Brasil é globalização. Acho que, de 1990 para cá, desde o Governo Fernando Collor, que teve alguns pontos muito positivos, o Brasil está se preparando para a globalização em ritmo acelerado e está se adaptando a isto. Toda a legalização do Comércio Exterior do Brasil está sendo alterada em face desse problema, assim como a legalização de capitais estrangeiros, a legalização do sistema bancário. A Lei de Sociedades por Ações, que era uma lei muito boa, foi agora alterada para atender a tudo isso.
De modo que não creio que haja um modelo global, ninguém está pensando: - o que é que se vai fazer pela globalização? - mas, ao mesmo tempo, cada setor está cuidando de adaptar o país a esse fenômeno.
Arnaldo Niskier - Ana Paula Oliva dos Santos, dando parabéns ao Acadêmico Alberto Venancio, diz o seguinte: De acordo com a brilhante exposição do Acadêmico Alberto Venancio Filho, importantes juristas fizeram parte do quadro de membros efetivos da Academia Brasileira de Letras. Sendo assim, podemos atribuir ao amor o sentimento que corresponde à união fecunda entre Direito e Literatura?
Alberto Venancio Filho - O que eu queria provar - e não pude desenvolver esse ponto - é que a cultura jurídica está muito impregnada na vida brasileira, começa desde o bacharel de Cananéia, desde o período colonial, e os grandes juristas brasileiros que eu citei e que entraram para a Academia, eram todos homens de letras. O trabalho de Lafayette que mencionei, refutando Tobias Barreto em favor de Machado de Assis, é uma obra-prima de texto literário; poderia ser adotado em qualquer Faculdade de Letras, com muito proveito, e assim muitos outros.
Gilberto Amado tem seis volumes de Memórias, são memórias notáveis. O volume intitulado Minha formação no Recife, sobre os seus estudos de Direito no Recife, é extraordinário, tal como o anterior, sobre a sua infância, História da minha infância. Então, poderíamos citar muitos exemplos como estes..
As escolas de Direito no Brasil, durante muito tempo, foram as Faculdades de Filosofia, de Letras, de Literatura, até que o ensino se desenvolveu, se diversificou. Gosto sempre de citar um exemplo. No Salão Nobre da Faculdade de Direito de São Paulo há três estátuas, nenhuma delas de jurista: Álvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela - três poetas. Portanto, esta é um pouco a formação da nossa cultura jurídica.
Arnaldo Niskier - Pergunta de Gileno Sanchez: Prezado Acadêmico Alberto Venancio Filho, parabéns pela palestra formidável. O senhor poderia nos contar como é ser um jurista-escritor? De que forma as palavras o induziram a seduzi-las ao exercício da Lei.
Alberto Venancio Filho - O famoso escritor francês Stendhal costumava dizer que ele praticava o francês lendo o Code Civil francês. O Código Civil de Clóvis Beviláqua, apesar das críticas de Rui Barbosa, também é um modelo de linguagem literária. O advogado que se exerce pela palavra, ou escrevendo ou falando, para conseguir convencer, tem que se expressar numa boa linguagem.
Citei aqui o exemplo da distinção entre um bacharel, um jurista e um advogado. O advogado pode seduzir pela palavra, em detrimento das razões jurídicas que possa ter. A palavra passa a ser muito mais importante do que o raciocínio. De modo que todo o bom jurista - aliás, quero dizer que não me considero um jurista, me considero um advogado somente, dedicado aos estudos de história do Direito, mais do que outra coisa -, todo o bom advogado tem que ser um bom profissional da língua. E a prova está nos juristas que pertenceram à Academia Brasileira de Letras, e naqueles muitos outros que não pertenceram.
Há sempre indagações: Por que fulano não entrou para a Academia? Por que beltrano não entrou para a Academia? A Academia é uma instituição voluntária, entra quem se inscreve e quem está interessado em nela ingressar. Existe muita gente que não tem interesse de ingressar na Academia. E aqui mesmo, às vezes, há pessoas que a Academia gostaria de receber, e que recusam, quando se fala numa candidatura. Mas esperamos que essa resistência se vença muito em breve.
Arnaldo Niskier - Ainda uma pergunta do acadêmico André Ferreira, de Brasília: O sistema jurídico brasileiro dispõe de meios técnicos e humanos para sanar as aberrações vigentes no sistema carcerário? Se dispõe desses meios, por que ainda não o fez?
Alberto Venancio Filho - Eu poderia transferir esta pergunta para o Ministro Evandro Lins e Silva, que é um grande especialista nesta seara. E justamente, não é minha especialidade.
Arnaldo Niskier - O senhor daria a resposta, Ministro?
Evandro Lins e Silva - Há muito tempo se fala no problema da prisão, do cárcere, da segregação humana. Nos tempos mais longínquos, mais distantes, a prisão era crudelíssima, e durante longo tempo a pena foi um castigo, uma vingança privada. Agora, no século XX, ou já no século XIX, começou a resistência contra a própria prisão em si, mesmo quando ela não tem a promiscuidade do sistema atual dos nossos cárceres, em geral, no mundo inteiro, e sobretudo no mundo subdesenvolvido.
Como resolver o problema? Então, parte-se para isso, para acabar com a prisão como método penal. Um jurista de gênio, Foniey, disse isto: “A história da pena é a história de sua constante abolição.” De maneira que, hoje, os congressos científicos todos têm chegado à conclusão de que é preciso se encontrar alguma forma e isso já esta sendo adotado até mesmo em nosso país.
Recentemente, em 1995, foi promulgada a Lei 9.099, que está sendo executada, no seu início ainda, criando os juizados especiais, para resolver, prontamente, todos os problemas não só de natureza civil, como criminal, agilizando a Justiça. E eles começam a funcionar, parece até que já estão produzindo resultados. Já se fala até em terminar com o Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, porque não há mais recursos naquelas infrações de menor potencial ofensivo.
Portanto, a tendência é, realmente, acabar com a pena de prisão. A não ser, ultima ratio, para aqueles que oferecem perigo e risco da incolumidade alheia se não forem segregados.
De maneira que esta é uma opinião dominante, no Congresso da IDP em Viena, em 1989, no Congresso da ONU, em 1990, em Havana, e num Congresso da IDP que realizamos aqui, em 1994. Recentemente, há três anos, mil e tantos penalistas compareceram à ONU - do Brasil, 600; de Viena, 800 - todos eles, quase na sua unanimidade, são partidários dessa solução. A segregação, a pena de prisão, ultima ratio, é anti-natural, anti-científica, é absurda.
O professor Roberto Lyra, que foi um grande penalista brasileiro, um dos autores do Código Penal em vigor, escreveu um livro que diz tudo, até pelo título, Penitência de um penitencialista, porque ele lutava pela condenação dos criminosos, como promotor público. E, depois, foi visitar uma prisão e viu a devastação que havia na personalidade de um passional que ele acusara no Júri.
Por conseguinte, quanto à resolução do problema, a tendência é acabar com o cárcere. Terminada a II Guerra em 1945, um jurista italiano, Filippo Grammatica, advogado genovês, já propunha não apenas a abolição dos cárceres, das prisões, mas a abolição do próprio Direito Penal. Ele achava que os outros Direitos solucionariam todos os problemas humanos e sociais.
Essa é a situação. Façamos votos para que se possa corrigir o nosso sistema penitenciário, que é realmente degradante, aviltante. Humilha, degrada o preso, e as conseqüências estão aí, porque se chegou à conclusão, hoje, cientificamente, de que a cadeia não regenera, não ressocializa ninguém. Ao contrário, ela é uma jaula reprodutora de delinqüentes.
Arnaldo Niskier - Ilustre Acadêmico Alberto Venancio Filho: o senhor não acha que, atualmente, faltam às Faculdades de Direito perspectivas e linhas de formação mais voltadas para o humanismo e a cultura das letras, em geral, assim como se fazia antigamente? Não corremos o risco de uma relativa esterilização do Direito, ou pelo menos dos bacharéis mais jovens?
Alberto Venancio Filho - Aí eu daria outra conferência sobre o ensino jurídico. Em parte, a pergunta tem razão, porém me parece que Humanidades devem ser dadas nos cursos de Humanidades, no ensino secundário. O que falta nos cursos de Direito, a meu ver, é uma boa introdução propedêutica nas matérias que são importantes para o Direito. Não posso conceber, por exemplo, que em uma Faculdade de Direito não se ensine Lógica, já que não se ensina Lógica no ensino secundário. E que não se ensine Sociologia - embora pareça que isso esteja sendo um pouco aplicado; que não se ensine Filosofia do Direito, não como se faz nas Faculdades, no primeiro ano, mas no quinto ano, que se constitui na cúpula do aprendizado jurídico.
Entretanto, como, de maneira geral, o ensino secundário se degradou muito, acho que temos um sistema no qual, durante o curso de bacharelado, a gente supre as deficiências do curso secundário; no mestrado, supre-se a deficiência do bacharelado; e no doutorado, supre-se a deficiência do mestrado.
Arnaldo Niskier - Júlia Marques diz que queria lembrar a Vossa Excelência que não foram mencionados alguns livros brilhantes de Pontes de Miranda, como Liberdade e Ciência, A sabedoria da inteligência, etc.
Alberto Venancio Filho - Pontes de Miranda escreveu cerca de cinqüenta livros - cem livros, está me dizendo aqui a filha dele. Fiz uma conferência sobre Pontes de Miranda na Academia, por ocasião do centenário dele, só tratando da parte literária, e realmente a citação de todos os seus livros seria enorme. Então, tive que me cingir àqueles que julguei mais importantes.
As obras que foram mencionadas na pergunta são importantes, porém, a meu ver, não são tão relevantes quanto os livros que citei hoje, sobretudo quanto ao aspecto jurídico, sob o qual eu tinha que me limitar aqui.
Nélida Piñon - Vai falar o Embaixador Roberto Assumpção, encaminhando uma pergunta.
Roberto Assumpção - Eu imagino que, nas suas páginas recolhidas e não lidas, o senhor deva ter feito alguma referência a um jurista - o senhor referiu-se a outros que não entraram para a Academia -, que é o professor Edgard de Castro Rebelo. Os pareceres classificam-no como jurista, não há a menor dúvida. Como professor, nem se fala! O elogio de Pedro Lessa, feito por ele no Instituto Histórico, daria um contorno à imagem de Pedro Lessa, realmente definitivo, no que concerne às qualidades do jurista, que o senhor também acentuou. Imagino que o senhor o tenha escrito sobre ele na outra pasta.
Alberto Venancio Filho - Não citei os juristas fora da Academia, citei os juristas acadêmicos. Eu sei que alguns se inscreveram na Academia, mas não foram eleitos. O professor Castro Rebelo nunca foi candidato, mas fiz aqui referência ao mestre de Direito, grande jurista e meu grande amigo Edgard de Castro Rebelo.
Nélida Piñon - Alguma pergunta mais? Tenho a impressão de que vamos sair daqui rigorosamente saciados com esse saber jurídico. Foi uma verdadeira aula, um compêndio, porque o nosso querido Alberto Venancio é um mestre na matéria, e com grande rigor histórico.
Conforme o público sempre deseja e aprecia, quero dizer que estão aqui presentes os Acadêmicos Josué Montello, Antônio Houaiss, Evaristo de Moraes Filhos, Geraldo França de Lima, Fernando Bastos d’Ávila, Candido Mendes de Almeida, os acadêmicos da mesa e o nosso querido Tarcísio Padilha, além de grandes autoridades, que temo citar porque posso cometer alguma omissão.
Desejo agradecer muitíssimo esta aula do nosso Alberto Venancio Filho e agradecer, novamente, a presença do Secretário-geral Arnaldo Niskier, dos acadêmicos, dos queridos amigos, do público.
Vou recordar aos senhores que na próxima segunda-feira, dia 29 de setembro de 1997, neste mesmo horário, dentro deste Ciclo, vamos ter a presença da acadêmica Lygia Fagundes Telles, que virá especialmente de São Paulo para nos falar sobre Os Contistas.
Tenham os senhores uma semana muito agradável, muito feliz, e até o nosso próximo encontro. Muito obrigada.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO BRASILEIRO
A situação em que viveu o Brasil até o século XIX condicionou de forma peculiar a evolução histórica do Estado brasileiro. A escravidão colonial impôs um molde específico à evolução das instituições políticas e administrativas do Brasil, molde esse haurido de uma situação metropolitana que passou a apresentar, a partir de meados do século XVI, certa defasagem em relação à evolução das instituições dos demais países da Europa.
O reino português, nos séculos XIV e XV, em virtude da pequenez de seu território e pelo esforço de uma dinastia esclarecida, conseguiu antes dos demais países europeus a criação de um Estado nacional unitário. E foi essa unificação do Estado que permitiu em grande parte o admirável esforço das descobertas, dando ao país uma situação de supremacia nesses dois séculos. Por outro lado, um desenvolvimento científico e técnico racionalmente conduzido possibilitou à navegação portuguesa o papel de predomínio que assumiu na conquista dos mares. Porém, para um país de dimensões territoriais tão reduzidas, e com uma população que no início do século XVI mal chegava a um milhão de habitantes, o esforço empreendido fora demasiado para as suas forças. Por isso mesmo, quando da descoberta do Brasil, já se iniciava um processo de decadência, que levaria, paulatinamente, à perda das conquistas na Ásia e na África, e que culminaria com a perda da independência em l580.
A perda das possessões na Ásia e na África implicava em transformar a colônia do Brasil num elemento de primordial importância para o Reino Português. Nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, ainda se concentraram os portugueses nas conquistas da Índias, em virtude de não terem sido aqui encontradas as pedras preciosas e as especiarias que constituíam então a parcela mais volumosa do comércio. Logo em seguida, entretanto, foi para o Brasil que Portugal voltou suas atenções, procurando manter no reino com os recursos provindos do Brasil a situação de fausto e a aparente riqueza que as conquistas da Ásia e da África haviam proporcionado. Caberia uma indagação mais detalhada a respeito deste Estado Português, que conseguira tão rapidamente um estado de hegemonia, para em seguida mergulhar numa posição de marasmo. O Estado da época das descobertas era realmente um Estado do tipo mercantilista, comandando todas as atividades econômicas do ultramar. Descreve um historiador que, no reinado de Dom Manuel, os entrepostos das especiarias provenientes das Índias localizavam-se nos próprios andares térreos dos palácios reais. No entanto, Portugal constituía somente uma via de acesso por onde transitavam esses produtos para os mercados europeus, não havendo no reinado português uma classe empreendedora que pudesse reter ou ampliar as atividades produtivas desse comércio, que se canalizava exclusivamente para o fausto e a opulência da Coroa.
A posição de progressivo empobrecimento da Metrópole vai assim forçar a administração portuguesa a empreender na colonização do Brasil um esforço intenso de apropriar-se, em proporções cada vez maiores, dos frutos produzidos pela colônia. É assim uma administração imbuída de um espírito eminentemente fiscalista, procurando sempre, através de várias formas e artifícios, reter e encaminhar para a Metrópole parcelas cada vez mais avantajadas dos recursos da colônia.
Não cabe aqui uma análise pormenorizada dos vários aspectos que assumiu esse sistema, mas, a título de exemplo, pode-se mencionar o modelo mais expressivo desse modo de agir que ocorreu na região das minas, por ocasião do auge da mineração. O regime da capitação, o sistema dos quintos e a constituição das casas de fundição, a proibição do transporte do ouro em pó, foram algumas das medidas sucessivamente aplicadas, procurando reter parcela significativa da riqueza daquela região.
Excederia os limites deste trabalho fazer uma análise minuciosa da administração colonial no Brasil, pois tal administração, no dizer de Caio Prado Júnior, "nada ou muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas administrações contemporâneos. Isto é, funções bem discriminadas, competências bem definidas, disposição ordenada, segundo um princípio uniforme de hierarquia e simetria dos diferentes órgãos administrativos. Não existem, ou existem muito poucas normas gera que no direito público da monarquia portuguesa regulassem de uma forma completa e definitiva, à feição moderna, atribuições e competências, a estrutura da administração e de seus vários departamentos". Seja no regime das capitanias hereditárias, seja no do Governo Geral, seja no do Vice-Reinado, a máquina administrativa colonial constituía apenas a representação de um poder distante, a Coroa, cabendo ao Conselho Ultramarino a decisão sobre todos os assuntos da colônia.
Até a segunda metade, do século XVII, essa administração colonial não ganhara maior densidade, no dizer do mesmo Caio Prado Júnior, e competia às Câmaras Municipais o exercício de grande número de atribuições, "constituindo a verdadeira e quase única administração da colônia". O poderio das Câmaras Municipais representava, no entanto, a influência na atividade política e administrativa dos grandes proprietários rurais, uma vez que essas câmaras eram coompostas de vereadores e presididas por juízes ordinários, uns e outros escolhidos pelos homens bons, expressão eufemística, no dizer de Edgardo de Castro Rebello, pois "homens bons eram todos os que exploravam o trabalho alheio; os que do seu viviam eram livres ou escravos: nem os primeiros entravam naquele rol".
Através desse embrião de organização política e administrativa, ir-se-ia constituir um sistema de prevalência do poder privado sobre o poder público, que vai marcar até os nossos dias a feição do Estado Brasileiro.
(A intervenção do Estado no domínio econômico, 1968.)
A PRESENÇA DO BACHAREL NA VIDA BRASILEIRA
A presença do bacharel em Direito é uma constante na vida brasileira. No início da colonização, as primeiras expedições portuguesas já encontraram em São Vicente o bacharel de Cananéia. Por outro lado, o tipo de ensino colonial, de caráter eminentemente literário e retórico, iria colocar em posição de prestígio o bacharel em Artes, saído dos colégios dos jesuítas, que constituiria, inclusive, base da formação do bacharel em Direito. Na administração colonial, encontrar-se-á em situação de destaque o bacharel como um dos elementos de que dispunha a Metrópole para a manutenção do seu poder colonizador. Este tipo de administração, de caráter fiscalista e eminentemente formal, se desinteressava por completo pelo desenvolvimento das atividades econômicas. Quando aparece uma atividade de monta, como foi o caso da mineração, a exploração era de caráter predatório, interessada a Metrópole em retirar da Colônia o máximo de recursos. Veja-se o comentário de Eschwege:
Na realidade, entregou-se um tesouro a ignorantes que não sabiam preservá-lo e a juristas, que nada fizeram senão estabelecer medidas legais inoportunas. Nem estes nem aqueles foram capazes de propor medidas adequadas, pois nem sequer percebiam que elas existiam.
À medida que a sociedade se desenvolvia e que ganhavam densidade outras atividades econômicas, passa a surgir uma classe de letrados, em grande número bacharéis em leis que obtiveram em Coimbra, e em alguns casos, em outras universidades européias, a sua formação intelectual. O prestígio dessa geração não se exerce apenas na Colônia, mas alcança a Metrópole, onde, na segunda metade do século XVIII, são brasileiros os ocupantes de muitos dos principais cargos da administração portuguesa. É também no seio desse grupo que surge o movimento pela Independência, e por isso pôde, com justeza, dizer Gilberto Freire que a Inconfidência Mineira foi uma revolução de bacharéis - pelo menos de clérigos que eram antes bacharéis de batina do que mesmo padres, alguns educados em Olinda, no Seminário liberal de Azeredo Coutinho, em todos os principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um cidadão que se propõe a servir o Estado - como foram as duas revoluções pernambucanas preparadas por homens também do século XVIII: a de 1817 e a de 1824.
Esta geração se imbuíra também, nos seus estudos europeus, dos princípios do "enciclopedismo francês". Estavam impregnados daquele liberalismo que precedeu à Revolução Francesa. Mesmo os que terminavam seus estudos na Colônia, recebiam este influxo através da leitura dos livros franceses. É o exemplo do Cônego Luís Vieira da Silva, graduado pelo Seminário de Mariana, em Filosofia e em Teologia Moral, no Colégio dos Jesuítas em São Paulo, que tinha, na sua biblioteca, toda a gama desses pensadores.
Quando da transmigração da família real portuguesa para o Brasil, virá desempenhar papel de singular destaque um bacharel de gênio, José da Silva Lisboa, Barão, e, depois, Visconde de Cairu. Para San Tiago Dantas,
ele (Cairu) nos aparecerá na galeria dos nossos patriarcas como o espírito mais consciente dos problemas econômicos do seu tempo e como arquiteto de algumas de suas mais felizes soluções.
Bacharel em Cânones, em Direito Canônico e Matemática pela Universidade de Coimbra, retorna ao Brasil para ser professor de Grego e Hebraico no Real Colégio das Artes de Salvador. Mas sob o influxo das idéias de Hume e do livro Ensaios sobre a Riqueza das Nações, de Adam Smith, se volta para a análise dos estudos econômicos. Em 1789 aparece o seu primeiro livro, a parte de seguro marítimo, dos Princípios de Direito Mercantil. E, logo em seguida, em 1804, o Princípios da Economia Política. Por ocasião da chegada da família real na Bahia, é o responsável pela grande medida da abertura dos portos, com a qual a sociedade brasileira rompe o regime de clausura em que até então vivia, para se integrar nas grandes correntes do comércio internacional. Afirmou, pois, com justeza, San Tiago Dantas que o que caracterizou a sociedade brasileira na passagem do século XVIII para o XIX foi justamente a presença de uma elite, pequena, mas dotada de invulgar capacidade, que apenas dependia para liderar o país, de conseguir levar sua influência até o trono e ter acesso aos círculos superiores da administração.
Foi, exatamente, esta geração a responsável pelo movimento da Independência e que mais tarde está presente na Assembléia Constituinte. Participa Cairu do Conselho de Estado que prepara a Constituição de 1824, este admirável monumento de construção jurídica, e, na Assembléia Legislativa de 1826, retoma a idéia de Fernandes Pinheiro, para criar, em 11 de agosto de 1827, os cursos jurídicos de São Paulo e Olinda.
Phaelante da Câmara aproxima a data da criação dos cursos jurídicos à derrota das armas brasileiras nos campos de Ituzaingó, defronte da Ilha de Martim Garcia. E explica:
E não é sem propósito que acentuo esta coincidência. Segundo Armitage, aqueles insucessos produziram os mais satisfatórios efeitos na ordem civil, desanimando as vocações militares e abrindo as portas às outras carreiras, às gerações novas, tal como se deu em nossos dias, após o desastre emocionante de Canudos. A medida estava, portanto, de acordo com a sucessão dos acontecimentos da psicologia nacional. Realçando ainda mais o fato de terem sido escolhidos para servir de sede aos prometedores centros intelectuais, duas cidades em evidência - a de São Paulo - célebre pelo Grito do Ipiranga e pelo renome dos Andradas - e de Olinda, viveiro de patriotas onde na religião do martírio a mocidade brasileira viria também a aprender a liturgia do civismo.
Os cursos jurídicos foram, assim, no Império, o celeiro dos elementos encaminhados às carreiras jurídicas, à magistratura, à advocacia, e ao Ministério Público, à política, à diplomacia, espraiando-se também em áreas afins na época, como a filosofia, a literatura, a poesia, a ficção, as artes e o pensamento social. Constituíram, sobretudo, a pepineira da elite política que nos conduziu durante o Império. Numa frase muitas vezes citada, e algumas vezes deturpada, disse Joaquim Nabuco que "já então (décadas de 1840 e 1850) as faculdades de Direito eram ante-salas da Câmara". E prosseguia:
Na Inglaterra, as associações de estudantes discutem as grandes questões políticas, votam moções de confiança, destroem administrações, como fazem o parlamento. Gladstone nunca tomou mais a sério os grandes debates da Câmara dos Comuns do que os União de Oxford, quando propunha votos de censura ao Governo de Wellington ou ao de lord Grey. Em Olinda, não havia esse simulacro de parlamento em que se formam os estudantes ingleses; os acadêmicos exercitavam-se para a política em folhas volantes que fundavam.
Comentando a posição de bacharel, afirma Gilberto Freire que o prestígio do título de "bacharel" e "doutor" veio crescendo nos meios urbanos e mesmo nos rústicos desde o começo do Império. Nos jornais, notícias e avisos sobre "Bacharéis formados", "Doutores" e até "Senhores Estudantes", principiaram desde os primeiros anos do século XIX a anunciar o novo poder aristocrático que se levantava, envolvido nas suas sobrecasacas e nas suas becas de seda preta, que nos bacharéis - ministros, ou nos doutores - desembargadores, tornavam-se becas "ricamente bordadas e importadas do Oriente". Vestes quase de mandarins. Trajos quase de
casta.
(Das arcadas ao bacharelismo, 1977.)