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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Levi Carneiro

Na oração conceituosa e eloqüente, que acabais de proferir, fizestes Crítica Literária de alto quilate, evocastes, com emoção, as duas cidades bem amadas, falastes de vossa própria vida. Não percebi, porém, em vossas palavras, que vos empolgasse o júbilo irrestrito do triunfador.

Não repetistes a declaração proferida com ênfase, quando assumistes outra cátedra – a de professor do Colégio Pedro II: “Esta cátedra tinha de ser minha e eu a conquistei porque quis.”

Neste ambiente, sentiríeis inconveniente a pontinha de arrogância, que apareceria na afirmativa? Ao contrário, seria ela admissível e perdoável, emanando de um pregador de idéias novas, na euforia da vitória, tanto naquela oportunidade como nesta outra.

É que não vos considerais vitorioso, empenhado, agora mesmo, na refrega, acutilando os que de vós divergiram, ou ainda divirjam. Não sentis atingido o altiplano. Não tendes por finda a áspera ascensão. Levantais o mesmo brado: Ad augusta, per angusta!, às alturas, pelas escarpas!

Receareis que na Academia se atrofie vossa personalidade, esmoreça a pugnacidade, tomeis-vos medalhão.

Não, não será assim; a Academia não envolve uma operação aritmética, em que as parcelas se transfundem e desaparecem na soma. Nem é ela uma usina literária, em que fostes, como nós todos, matéria-prima consumida na preparação do produto. Somos heterogêneos. A Academia realiza a velha ficção jurídica, que atribui personalidade própria às associações. Até porque ela, somente ela, é imortal, não os que nos agremiamos transitoriamente sob seu teto – salvo, sem dúvida, os que, pelos próprios feitos, conquistam esse privilégio. A Academia é um oásis, em que se encontram viandantes, provindos de setores diversos, com rumo a todos os quadrantes do horizonte, trazendo nos alforjes coisas diferentes, que cada um não revela por completo aos outros. Conversa-se, tant bien que mal – como fazia Montaigne, trocam-se idéias e estímulos, fomenta-se a cultura literária.

Este fardão espalhafatoso e incômodo é um símbolo de cortesia, de cerimônia, de mútuo respeito. De Buffon se disse que escrevia com punhos de renda. Hoje haverá quem escreva em mangas de camisa, como já em seu tempo Tobias Barreto intitulou um discurso famoso, ou até em camisas sem mangas, ou ainda com maiores restrições de indumentária. De fardão, ninguém poderá escrever: ele não corresponde a algum estilo literário.

CANDIDATO

Tanto mais quanto soubestes ser candidato pertinaz, discreto e sereno, talvez por humildade ou por orgulho, ou, ao mesmo tempo, pelos dois motivos, que se podem conjugar e compensar. Ou ainda, pela íntima convicção revelada na declaração omitida: sabíeis que teria de ser vossa essa Cadeira – ou outra igual.

Suportastes a derrota, depois de uma eleição sem resultado. Decorreram quatro anos: nesse período, a quatro vagas consecutivas não concorrestes; pareceria, aos que vos não conhecessem, que desistíeis. Por fim, candidato pela terceira vez, triunfastes – vencendo outros, de considerável merecimento.

Demonstrastes, com singeleza e naturalidade, o entranhado desejo de ser dos nossos, relembrando a advertência de Camões: “É fraqueza desistir de coisa começada.” Vossa persistência lisonjeou a Academia. Realço em vossa atitude que vos não arrufastes, não maldissestes a Academia, nem os acadêmicos. Ainda outra singularidade: não tentastes conquistar votos mediante elogios pessoais, mais ou menos exagerados e insinceros. Teríeis, como crítico
literário militante, oportunidades freqüentes de fazê-lo. No entanto, quer em livros, quer na imprensa, vários acadêmicos – ainda os que merecessem, e então, ai de mim! os que não o mereciam! – não tiveram referência vossa, elogiosa ou benevolente. Poucos a tiveram, por vezes com alguma restrição.

Tampouco fizestes sequer o louvor da Academia, como, em França e em Portugal, historiadores literários o fazem das respectivas instituições similares. Mencionastes apenas publicações que temos realizado, ao passo que vosreferistes, com detalhe, às 32 academias dos tempos coloniais, e às do Ceará – não só a “Padaria Espiritual” como a que, com algum arrojo, se denominou “Academia Francesa”.

Por honra vossa, recordo esses fatos. Também por honra da Academia, que, mesmo assim, vos elegeu.

VOCAÇÃO

Alguém veria, em vossa atitude, confirmada a revelação, que fizestes, de serdes “um homem desagradável”, um homem que diz somente a verdade, mesmo as que não se dizem, “um afirmativo”.

A mim isso me faz refletir num dos mistérios da desencontrada psicologia humana: a par dos que simulam ser melhores do que na realidade são, há os que se comprazem em mostrar-se piores. Em vosso caso, se não estou em erro, também não é isso, ou não será somente isso: ficaste submisso ao império da vocação, ou à imposição do destino.

Maeterlinck falou do “destino invencível de cada ser: em cada homem tudo sacrificado ao fluido estranho que tem várias denominações – pensamento, inteligência, entendimento, razão, alma, espírito... e tem uma só essência”. Dentro da destinação geral haverá outras, menores, específicas. Mais valioso que a indicação colhida através de processos científicos, que procuram determinar a vocação do indivíduo, há nele mesmo um anseio íntimo, inexplicável, insuperável, que a revela e impõe, e lhe assegura a satisfação, abrindo caminho, removendo tropeços. Será a atuação daquela essência íntima? ou simplesmente – o favor divino?

Confessastes que, desde a adolescência – aliás, não muito remota –tínheis preocupação “com a reforma dos métodos críticos e a moralização dos hábitos intelectuais”.

Em vós a vocação, ou o destino, era a crítica ou o magistério. Soubestes conjugar uma e outra tendências. Vossa vontade firme realizou-a, parecendo que a elas vos submetíeis. Por elas, sob seu imperativo, sacrificastes, e ainda recalcais vosso temperamento afetivo. Formastes, por convicção doutrinária, uma conceituação da crítica literária, quase exclusivamente, senão de todo, objetiva, refreado o subjetivismo. Reconheceríeis que vossos impulsos afetivos seriam incontíveis com o inexorável magistério crítico.

AFETIVIDADE

Ainda bem que o não conseguistes por completo; não os aniquilastes. Em alguns dos vossos livros, percebi vestígios de vossa afetividade mal contida. Sabeis onde? Nas dedicatórias, na velha moda das dedicatórias a pessoas de família ou amigos. Agora mesmo, ela varou, nos intervalos da crítica objetiva, até à eloqüente e emocionante evocação da Bahia – terra natal amada, que heroicamente decidistes abandonar, porque ali não poderíeis vir a ser o crítico literário que teríeis de ser e de fato sois. Ainda aí o império da vocação,vossa energia a serviço da vocação.

No entanto, chegastes a confessar-vos “produto exclusivo da amizade”. Como? apenas da amizade – dos outros? Ora, não haveria essa amizade de terceiros se a não provocásseis, se a não entretivésseis, se a não merecêsseis. Muitas vezes têm procurado amesquinhar a amizade pelo cediço contraste com o amor. De mim, considero – e por isso não quero crer que possais gozar apenas da amizade que vos consagram – que a amizade, ao contrário do amor, que se exalta e desvaira e nem sempre se extingue por falta de correspondência, a amizade não perdura sem retribuição. A amizade é dos recatados, dos introvertidos alimenta-se das coincidências, das afinidades, reveladas em fatos, ou subentendidas, ao passo que o amor provém dos contrastes mais disparatados da rápida centelha elétrica oriunda do choque de duas forças contrárias, nutrido de declarações espetaculares. Só não é assim – ou antes, não precisa de ser assim – o amor conjugal, que inspirou certo trecho de vosso discurso e se consolida e perdura pela amizade, pela mútua compreensão, pela admiração, pela colaboração quotidiana, até pelo devotamento comum à prole. Houve quem distinguisse na vida humana – seria Pascal? – três fases: a do amor, a da ambição, a da amizade. Por discrição impreterível, não procurarei determinar em qual delas estais: a seqüência das três fases pode ser invertida, duas delas podem acumular-se. Como quer que seja, a amizade é traço marcante de vosso temperamento.

Teria de ser assim, pois nascestes na Bahia – terra de gente de sensibilidade carinhosa, de que resulta intensa sociabilidade. Egresso da terra natal, continuais envolvido pelo apreço e pelo afeto dos co-estaduanos. Agora mesmo, no auditório magnífico desta noite se acha a fina flor da colônia baiana no Rio e, por certo, haverá nele quem tenha vindo de vossa terra natal para vos acompanhar e aplaudir na hora triunfal.

MOCIDADE

Ainda na Bahia vos fizestes médico e poderíeis vir a ser um grande médico. Fostes, porém, um médico, que, como tantos outros, transviaria a sedução da Literatura, por vós sentida desde o curso acadêmico. Da Faculdade de Medicina não vos apartastes vindo a ser seu bibliotecário. Terá começado assim – ou assim cresceu – vosso amor aos livros. Há pouco tempo, esse velho amor vos levou a sobrepor à acolhedora casa de Ipanema um terceiro pavimento, para os reunir. Em compensação, à primeira vista, essa biblioteca vastíssima impressionou-me pela escassez das encadernações policrômicas, de Letras douradas nas lombadas, que constituem a feição dominante de tantas outras, adornando salões mais ou menos elegantes. A vossa é rude, precioso instrumental de trabalho, em que se aplicam todas as disponibilidades, sem desvio para a figuração luxuosa.

Disse Fidelino de Figueiredo que a bibliografia gera a bibliofilia; convosco, terá ocorrido o contrário – a bibliografia, o trato fecundo dos livros, vos levou à bibliografia – ou contribuiu para que por ela vos apaixonásseis. Ninguém no Brasil lhe reconhecera tanta importância como a que lhe dais, na Crítica e na História literárias. Em alguns casos, é surpreendente a bibliografia que apresentais; nem a apresentais somente, dela vos utilizais, apoiando cada conceito em alguma autoridade prestigiosa e indicando os mananciais em que os estudiosos poderão abeberar-se.

Melhor que isso – de vosso curso médico ficou, como reconhecestes, com a aversão à Medicina, a metodologia centífica, que aplicaríeis aos estudos de crítica e de História literárias. Creio que vos ficou o espírito científico, o hábito do estudos aprofundados, das investigações minuciosas, a sede de estudos que teríeis ensejo de satisfazer.

Vem aqui a ponto referir um documento precioso de vosso estado de espírito, ao tempo do doutorado. No mesmo ano de vossa formatura, os doutorandos prestaram homenagem a um professor de ciências – químico, biologista, endocrinologista, higienista – e fostes o intérprete de todos, proferindo interessantíssima oração. Interessante pelo conteúdo, pelo sentido, mas, sobretudo, como índice de vossa primeira formação intelectual, pelo que já se encontra nela do que sois hoje e também pelo que veio a alterar-se.

Falais da “inquietude” (não por certo mais lídima palavra que a vulgar “inquietação”) da mocidade – talez, sob a influência de Daniel Rops, que comentaríeis cinco anos mais tarde, no primeiro opúsculo publicado. Mas seríeis, como próprio da mocidade – “dissidente e por convicção e vezo insubmisso e desassombrado”. Por isso, perceberian inclusive o próprio professor homenageado, pessimismo em vossas palavras. Declarastes, sem rodeios, que a Medicina vos fora “a mais amarga das decepções”, lhe imputaríeis “o concismo, o escalracho que medrou na sementeira de meu espírito”. Dissestes mesmo que comentaríeis os problemas com pessimismo. Invocastes o Fausto de Goethe: “O mais inligente foi o mais miserável dos homens”; “a felicidade não existe no homem que pensa”. Ao mesmo tempo, com palavras de Rui Barbosa, exaltastes a liberdade; com palavras de Ibsen, afirmastes o dever de dizer a verdade por mais dura que fosse, Recomendastes o que chamastes – “a linha escritural”, o “escrúpulo de bem escrever”. Insististes na compatibilidade da Ciência com a Literatura. Adiante, não reprimistes vosso sentimento patriótico. Éreis, como afirmastes – “um deslumbrado e seduzido pela magia estonteante das nossas coisas”. Queríeis que a Medicina assumisse “feições brasileiras”; precisava ser brasileira. Também a gente: “Sejamos brasileiros vejamos tudo e sintamos tudo como brasileiros...” “Aperfeiçoemos a nossa expressão, o nosso caráter. Ao invés de imitar, criemos.” Ainda mais: “Cumpre-nos a nós conhecer o nosso Brasil. Cumpre-nos estudá-lo...” Assinalando que “a corrente nativista, ou nacionalista, se intensificava”, repetistes Ronald de Carvalho: precisamos disciplinar a natureza pelo estudo direto do Brasil. Aí estão algumas das características do movimento modernista, já deflagrado a esse tempo. Também advertistes: “nada de passadismo”.

Ainda que emitísseis alguma proposição pessimista, não éreis, pois, pessimista. Não o é quem denuncia males e erros, com o propósito decidido e confiante de extirpá-los ou corrigi-los.

Nesse discurso, já pulsava a ânsia de libertação, ou de expansão. Supusestes que ela seria “só compreensível a quem já viveu vida intelectual nas desertas, solitárias e esquecidas províncias brasileiras”. Não teríeis razão no asserto: não é preciso ter vivido a apagada e áspera vida intelectual da província, para lhe reconhecer a angustiosa opressão; o problema envolve até o da unidade nacional. Devem enfrentá-lo as Universidades, todas as instituições culturais, inclusive esta mesma Academia.

REALIZAÇÃO

Em vosso caso individual, teve esse problema solução afortunada. Ocorreu o milagre, o episódio de conto de fadas: um emprego nos Estados Unidos, de índole jornalística, caído do céu. Mostrastes que o merecíeis, tanto soubestes aproveitar o íntimo, prolongado contato com a cultura norte-americana. Por cinco anos contínuos, não fostes apenas redator da edição em língua portuguesa de uma revista americana – freqüentastes cursos da Universidade de Colúmbia e de outras altas escolas; proferistes conferências e publicastes artigos sobre Literatura Brasileira e até sobre a nossa minguada Filosofia; contribuístes, de formas onímodas, para a difusão do conhecimento do Brasil, hauristes a mentalidade universitária, fortalecestes vosso espírito científico.

De volta ao Brasil fostes professor, interino a princípio e, depois, efetivo, por concurso, de Literatura no Colégio Pedro II. Ainda obtivestes a livre docência de Literatura, por concurso, na Faculdade Nacional de Filosofia. Criastes a cátedra de Teoria Literária na mesma Faculdade da Universidade da Guanabara. Isso seria apenas o indefectível emprego público.

Tivestes a fortuna, ou o merecimento, de não esmorecer, mergulhado no banho morno da burocracia. Havíeis resistido à sedução de um homem empolgante pelo prestígio intelectual e moral – Otávio Mangabeira, que vos chamara a colaborar com ele. Tínheis o propósito de seguir a diretriz traçada: dedicar-vos, no magistério superior, a sistematizar os estudos empreendidos, publicar o vosso livro, ou organizá-lo sob vossa orientação doutrinária. Seria preciso novo milagre, que sobreveio.

Encontrastes, sem que o procurásseis, um homem raro, de cultura, de idealismo, de entusiasmo – que possibilitou a consecução dessa segunda parte do vosso programa. Esse homem providencial, o professor Leonídio Ribeiro, empenhou vultosos recursos da empresa que dirigia na elaboração e na publicação de A Literatura no Brasil, que, com proficientes colaboradores, realizastes, em quatro volumes já publicados, estando o quinto a sair dos prelos.

PREDECESSORES

Portador de uma idéia nova, pouco ou mal conhecida em nossa Literatura, chegastes a proclamar o fracasso da crítica “até hoje”, porque “se não manteve fiel ao objeto que lhe é próprio e não construiu um método de abordagem específico, apropriado àquele objeto”.

Era a arremetida inicial. Não sois, porém, sempre, e apenas, demolidor.Tendes a preocupação de continuidade. Inconformado, rebelado, inovador – guardais, contudo, certo sentimento de respeito aos que vos precederam.

Sem dúvida, a crítica literária no Brasil começou mal. Basta recordar que José de Alencar se lamentava de faltar-lhe; e que, fora os que a fizeram, quase sempre mal, três, de melhores predicados, dotados de afinidades de caráter e de espírito – a mesma apurada sensibilidade, a mesma incapacidade de louvaminhas insinceras, a mesma aversão polêmica – Machado de Assis, Capistrano de Abreu, Clóvis Beviláqua – desistiram de prosseguir. Somente mais tarde se elevou o nível da crítica com Sílvio Romero, a quem se juntaram José Veríssimo e Araripe Júnior.

Vieram a ser, por fim, contemporâneos – e tiveram benéfica influência conjunta, pelo contraste de opiniões decorrentes das diversidades de formação, de preferência de temperamentos, focalizando, sob diferentes aspectos, a produção literária de seu tempo. Diria: – Completavam-se.

Divergindo fundamente de Sílvio Romero, reconhecestes-lhe o merecimento:tendes sua obra como a mais importante no Brasil no terreno das idéias e da doutrinação literária; vedes nele um gigante intelectual. Que diríeis se tivésseis sentido, pessoalmente, a vastidão, a amplitude de sua cultura, a independência, o ardor de convicções, a fluência da palavra vibrante e convincente? Tive-o como professor de Filosofia do Direito quando esta disciplina culminante figurava, erradamente, no limiar do curso jurídico. Desordenado, Sílvio Romero deslumbrava-nos. Não esqueço um traço do seu temperamento, de que se não tem falado – a bonomia, que temperava certa agressividade. Assim se mostrou inúmeras vezes. Contento-me com referir um episódio mínimo: por ocasião de exame final do ano, prolongávamos demasiado as provas escritas, até que, por fim, ele impacientou-se e bradou, “veemente, mas sorrindo: – “Chega disso! Vocês não pensem que vou ler todas as asneiras que estão escrevendo...”

A obra de José Veríssimo pareceu-vos, em comparação com a de Sílvio Romero, “insignificante, anêmica e superficial”, mas reconhecestes que era moralista respeitável, o que não é pouco.

Finalmente, pela de Araripe Júnior creio que começastes a interessarvos ao fazê-la assunto da tese de concurso de 1957, ou, antes, ao organizá-la e anotá-la, para publicação pela Casa de Rui Barbosa. Destacastes o signo do Nacionalismo, de que, como dissestes, ele “nunca se libertou”, coincidindo com a dominação do espírito literário pela preocupação nacionalista. Por mim, receio que esse signo, essa preocupação possa ter-lhe estreitado o campo de apreciação. Não será por isso, contudo, que, como acentuei aqui mesmo, autor de um valioso estudo de José de Alencar, creio que até seu parente, Araripe Júnior, cometeu, em relação a ele, grave erro, o que mais lhe poderia doer, admitindo que tivesse pendor escravocrata!

Faltou a essa tríade notável, se não erro, em alguns casos, inteira isenção no julgamento: Sílvio Romero era quase sempre apaixonado; Araripe Júnior escolhia, por considerações de ordem pessoal, os escritores de que se ocupava; José Veríssimo, o mais impessoal, não o terá sido, pelo menos, em relação a Machado de Assis e Sílvio Romero.

Em fase ulterior, apareceu Alceu Amoroso Lima, que conserva há quarenta anos o primado da Crítica Literária ao Brasil. Dele dissestes que, com Machado de Assis e Mário de Andrade, foi um dos precursores da tendência para a crítica de orientacão estética. Reconhecendo nele o mestre indiscutido, considerais que passou a ser filósofo social e moralista. Se é certo que sua atuação, como crítico literário, se fez menos assídua, não creio que se tenha encerrado. Sua contínua elevação espiritual inspira-lhe mais generosa benevolência e o afasta cada vez mais das polemiquices e das tricas pessoais; e a intensificação dos estudos sociais e políticos, a que sempre se dedicou, não constitui uma evasão, antes amplia-lhe e aprofunda a compreensão do fenômeno literário.

Depois dele, multiplicaram-se os críticos, mais numerosos hoje que nunca, e de muitos variados portes. Toda a gemte literária faz crítica – ou alguma coisa das outras similares, inferiores, que distinguistes. Aqui mesmo, nesta nossa Casa, poucos são os que a não praticam, com maior ou menor freqüência, alguns com inexcedível autoridade.

 

A OBRA

Quanto a vós, tendes – o que não é freqüente – as virtudes primordiais, de que depende a formação do bom crítico literário, segundo Alceu Amoroso Lima: independência, bom gosto, pertinácia, cultura.

A obra, que tendes realizado, tornou-se diferente de todas as demais. Não improvisastes, não criastes doutrinas novas; soubestes transplantá-las, coordená-las, revigorá-las, aplicá-las à nossa Literatura. Nalguns pontos, como reivindicastes, fostes precursor.

Esse árduo empreendimento, com a marca de vossa austera dignidade pessoal, reveste-se pelo menos de três características marcantes, bem raro reunidas e ainda mais raro tão insistentemente acentuadas: – continuidade, unidade, seriedade.

Continuidade, pois, a bem dizer, não tendes feito senão crítica e História literárias. Incursões noutros setores podem considerar-se ocasionais, senão complementares ou subsidiárias.

Dominam vossa obra alguns pensamentos constantes, que lhe dão perfeita unidade. As soluções adotadas coordenam-se. Se não prosseguisse, ela estaria completa, bem acabada. No entanto, comporta prosseguimento, precisa ter prosseguimento para mais extensa aplicação das doutrinas firmadas.

Da continuidade e da unidade de vossa obra resulta a terceira característica, que lhe reconheço: seriedade – isto é, não há nela improvisação, nem camaradagem, que tantas vezes tem deturpado, ou amesquinhado, a Crítica Literária. Não só vos abstivestes desses maus hábitos: também os exprobastes. Exigistes, e conseguistes a ampla preparação cultural adequada. Fixastes uma orientação doutrinária, impessoal, objetiva. Atingistes a situação que consideráveis propícia ao exercício da crítica literária: – o magistério superior e a publicação de livros.

Acentuaram-se essas características através das várias fases de vossa obra. Distinguiria uma fase inicial que se pode dizer preparatória. São desse tempo não só a Litratura dispersa em conferências e jornais, um ensaio em francês – L’exemple du métissage e o discurso aos doutorandos, a que já me referi, traduções de Peguy, de Maritain de Daniel Rops e de uma História do Poderio Marítimo. Ainda desse tempo, um opúsculo valioso – Daniel Rops e a Ânsia do Sentido Novo da Existência.

Há, em todos esses trabalhos um pensamento de espiritualismo cristão. Não tínheis ainda enveredado pelo caminho definitivo – mas os atalhos trilhados vos levavam à estrada real.

Em 1940, inciastes a Crítica Literária – não adotastes, contudo, o critério crítico que estabeleceríeis depois da permanência nos Estados Unidos. É fase preliminar, de que há apenas um livro, um belo livro – Filosofia de Machado de Assis, em que analisais, em profundidade, a influência do jansenismo e de Pascal na mentalidade do grande patrono desta Casa.

Na segunda fase – de doutrinação, fizestes, depois da renovação mental nos Estados Unidos, a pregação das doutrinas que adotastes. São desse período o opúsculo Por uma Crítica Estética, conferência na Univesidade da Bahia em 1948; outro opúsculo – A Crítica, dois volumes de artigos na imprensa – Correntes Cruzadas e Da Crítica e da Nova Crítica. É a evangelização e o combate. Demolis preconceitos e difundis idéias novas.

Na terceira fase – de crítica, “crítica nova” – se incluem os livros em que fizestes aplicação sitemática das doutrinas assentadas, praticadas acidentalmente em alguns do grupo precedente e começada em 1950, com a tese de concurso Aspectos da Literatura Barroca, completando-a a Bibliografia para o Estudo do Barroco. Depois, a grandiosa A Literatura no Brasil, a que já aludi, e os capítulos de vossa autoria, dela extraídos para formarem um volume – Introdução à Literatura do Brasil; a nova edição de A Filosofia de Machado de Assis, readaptada, quase por completo, à orientação que tomastes; ainda outro estudo, Machado de Assis na Literatura Brasileira; o volume sobre EuclidesCapistrano e Araripe; edições críticas com anotações das obras de Machado de Assis, Araripe Júnior, Jorge de Lima; por fim, Conceito da Literatura Brasileira.

Insisto em notar que, de todos esses livros, somente A Filosofia de Machado de Assis é anterior à vossa presença nos Estados Unidos, de 1942 a 1947; os demais, posteriores ao regresso ao Brasil.

Falei de vossa pertinácia, como candidato, e recordei que já se considerou essa uma qualidade necessária do crítico literário. Porque a tendes em alto grau, e sois um estudioso sempre insatisfeito, os temas versados em vossas obras reaparecem, continuadamente os desenvolveis e aprofundais. Com a sedução das idéias novas e o vigor de pioneiro, não vos aferrais, até os detalhes, às conclusões apresentadas de começo. Poderíeis repetir que cada livro vosso é – um livro de bonne foi.

Seria impossível – mesmo excedendo, ainda mais desmarcadamente, os limites destas palavras – recordar os conceitos, os princípios que formam o travejamento de vossa construção. Creio – devo dizer, “acho”, porém, que basta enunciar os principais, ou alguns deles, para lhes apreender a feição, o sentido e relevância, versando três disciplinas – senão três ciências, que se interpenetram – Literatura, ou antes Filosofia da Literatura, Crítica Literária, História Literária.

Com esse intuito, indicarei três fundamentais e quatro decorrentes. Dentre os principais: – Literatura: conceituação  da Crítica Literária, ou Nova Crítica, como dizeis habitualmente, alguma vez dissestes “crítica renovada”, o que pode ser mais exato; periodização da História literária, pelos estilos, e não pela cronologia, nem pelas condições sociais, nem pelos fatos políticos.

Dentre os segundos: – preparação e especialização do crítico literário;discriminação da Literatura Brasileira em face da portuguesa; sucessão das escolas literárias, sem inteira separação, mas interpenetrando-se, subsistindo numas elementos das precedentes; revelação das escolas, a princípio na Literatura, influindo e propagando-se à Música e às Artes Plásticas. São grandes,interessantíssimas, fecundas proposições.

Nenhum leitor atento e meditativo de vossa obra, densa de idéias e conceitos, provocado a pronunciar-se sobre ela poderá limitar-se a aplaudi-la e a adotar-lhe os postulados; se for sincero, terá de arriscar-se, pelo menos, a alguma ponderação dubitativa.

VISÃO

Não é sem temor que – na situação por vós mesmo criada, sugerindo meu nome para orador nesta oportunidade – tenho agora de dizer dessa obra, que preferiria continuar a estudar e a admirar, sem comentá-la.

Incapaz de qualquer das três modalidades de apreciação que destacastes, de importância decrescente – crítica, reviewing, análise – não me arrisco a desfechar sobre vós mesmo e vossa obra um arremedo de crítica biográfica e impressionista – bem sabendo que, até em suas expressões mais perfeitas, menosprezais uma e outra. Resta-me apenas a possibilidade de ensaiar outra espécie de apreciação, de nível mais baixo, que vossa condescendência admitiu, designando-a – “achismo”. Assim direi, timidamente, o que “acho” de vossas obras. Será essa a última provação que suportais para completar a investidura acadêmica.

É o que de pior pode acontecer a um crítico literário. Pior ainda, para mim, por serdes crítico da mais alta categoria, assumida por conquista deliberada, e não muito condescendente com as investidas desse gênero.

No entanto, cada um de vossos temas envolve pontos de controvérsia.Revelates amor à controvérsia – eu prezo-a por dever e hábito de ofício. Não chegaremos à plena satisfação comum, empenhando-se em uma autêntica controvérsia.Teremos apenas difereças de pontos de vista, ou de posição.

Aquele terceiro pavimento de Ipanema, com a livraria, poderia equipararse a uma turris eburnea, em que sentiríeis o prazer estético. Quanto a mim, sinto cada vez mais os reflexos sociais e político mais intensos em todas as criações humanas: suponho cada homem mais e mais mergulhado na crescente agitação política do mundo; todos os seus atos e todos os seus pensamentos sofrem a influência inevitável dessa condição. Não creio que estejais de todo imune dela, e ainda há pouco o verificamos em certas expansões calorosas de vosso discurso, em que lampejavam fagulhas do braseiro que parecia extinto.

Permiti que, diante de algumas proposições vossas, manifeste receios, ou dúvidas, que me despertam – ainda que compreenda e aplauda, nos traços fundamentais, toda a vossa obra e, sobretudo, a capacidade com que a realizastes.

Meu temor primordial resultou da considerável retração, que fazeis, do campo literário. Repelis a conceituação germânica, de que Sílvio Romero foi, entre nós, estrênuo defensor, abrangendo na Literatura todas as produções do espírito; sustentais, com igual fulgor, uma compreensão mais restrita, que reduz a Literatura à obra de arte, caracterizada pelo prazer estético que proporciona. Com esse conceito de Literatura entrosais o da Crítica Literária.

Repelis velhas, tradicionais teorias da crítica – sociológicas, históricas, ou biográficas, que apreciavam, de fora, a Literatura, investigando fatos e circunstâncias externas, extra-literárias, procurando precipuamente descobrir o homem, às vezes através da obra. Exposastes, por conseqüência, a doutrina anglo-americana (também difundida em outros países) pela qual “a crítica constituirá uma análise e uma avaliação da obra literária como obra de arte”, que vale por si mesma e tem finalidade em si mesma. O que interessa é a obra, não o autor.

O crítico vê na obra literária apenas “a grandeza literária, a beleza artística, e as analisa”. Remontastes a Aristóteles as origens dessa teoria, que apreciastes minuciosamente nas fontes remotas e nas exposições de numerosíssimos autores modernos. Essa é a “Nova Crítica”, que tendes exaustiva e brilhantemente justificado e praticado.

Quanto à conceituação da Literatura, reconheceis a dificuldade de definir, com precisão rigorosa, o “prazer estético”. Bastará ele, só por si, em todos os casos, para caracterizar a obra literária?

Creio que poderá bastar em relação à Poesia. Especialmente quanto ao Romance, porém, confesso que, por exemplo, nos livros de Lins do Rego e de quantos o seguiram, me atrai e empolga, além do prazer estético, o panorama vivo da vida de Nordeste, a fixação da psicologia do nordestino – em suma, o depoimento sobre as condições sociais, a visão destas por um observador de apurada sensibilidade. Direis que, assim, estou fora da Literatura: a objeção decorre da própria conceituação da Literatura, e a vossa me parece – repito, com temor e ousadia – demasiado restrita.

Se não me posso contentar, sempre, com o só “prazer estético” na prosa de ficção, que percentagem de nossa gente alfabetizada e ledora poderá consegui-lo?

Não sendo a Literatura documento de uma época, ou de uma sociedade, como, por tanto tempo, conforme a concepção política ou histórica, por vós brilhantemente contestada, mas, sim, como entendeis, produto autônomo, conforme a concepção “poética”, no sentido grego da palavra, pelo só prazer estético que proporciona – o meu receio, de homem que gosta dela, com o fervor apaixonado da velhice, é que se torne uma delícia de requintados, um prazer estético, de pequena elite, como, mal comparando, o da gente que aprecia caviar. Não querereis que toda a Literatura se reduza a assunto da classe mal caracterizada dos estetas. Perdoai-me o receio de que do conceito restrito de Literatura possa resultar a restrição do seu alcance, da sua projeção, do seu interesse, do seu valor.

Lamentais nosso desinteresse pela Literatura: não temeis reduzi-do ainda mais, reduzindo-lhe o sentido? Definistes a crítica como Arte de ler e de ensinar a ler a Literatura em prosa e verso: não receais restringir-lhe o ensinamento, se se limitasse o campo de visão da obra de arte?

E na preciosa observação, que vos é cara, da iniciação dos movimentos no campo da Literatura, propagando-se depois a todas as artes, não se confirma certa identidade da situação psicológica dos diferentes autores e a influência exercida sobre eles, diretamente ou indiretamente, pelos fatos sociais e políticos? A que fica reduzida a autonomia do fenômeno literário?

Sem me embrenhar no cipoal de uma questão filosófica ou sociológica, permiti-me considerá-la em seu aspecto mais humilde, mais ao meu alcance.

Vosso dissentimento, conquanto na boa companhia de grandes críticos de renome, não é somente com Sílvio Romero e tantos outros, mas até mesmo com os fundadores desta Academia. Lúcio de Mendonça nem seria para vós puro e autêntico homem de letras; Machado de Assis e Joaquim Nabuco empenharam-se sempre em reunir na Academia representantes condignos de todos os setores culturais. É irrecusável que este critério, subordinado a inspirações subjetivas, terá aberto as portas da casa – bem o sei! – a quem, se fosse ele aplicado rigorosamente, nem conseguiria ingresso. Como quer que tenha sido, a verdade incontestável é que a Academia ganhou a estima pública, tem durado, prestigiou-se e prestigiou a Literatura, difundiu interesse por ela, tornou-se uma grande Instituição. Terá sido apesar de tudo? Ou quem sabe se não contribuiu para esse resultado, além do fato de reunir alguns dos nossos maiores e genuínos homens de letras e alguns representantes de outros setores culturais – o fato mesmo de tornar-se o ingresso na Academia aspiração, recalcada ou não, de tantos homens de mais alto nível intelectual?

Nem só do mais alto nível intelectual. Tereis ensejo de ver essa aspiração larvada revelar-se, de súbito, a vossos olhos, nalguma confissão da amizade, que sabeis cultivar. Cada um de nós guarda memória de episódios dessa espécie.

Não preciso dizer-vos que o primeiro dever de cortesia do acadêmico é acolher, com benevolência, até com simpatia, qualquer revelação dessa espécie. Nem o vosso conceito estrito de Literatura justificará outro procedimento.

De resto, talvez se possa estabelecer uma sutileza verbal: a Academia não é de Literatura, mas, de Letras – e pode entender-se que não são cultores das Letras – das boas letras, como se diz – apenas os que proporcionam, e em seus escritos, o prazer estético.

De todas as ilações que se poderiam extrair do vosso conceito de Literatura, a mais penosa seria a que pretendesse denunciar uma incoerência: não poderíeis ser hoje acadêmico; vosso conceito da Literatura não abrange, como reconheceis com implacável lógica, a História e a Crítica Literárias. Quanto a mim, então, mais flagrante seria o impedimento. Seríamos aqui dois intrusos nesta hora nem poderíamos perpetrar os discursos desta noite – nem o meu, pobre e pálido, nem mesmo o vosso, eloqüente e substancioso. Dentre todos os defeitos que um discurso pode ter, nenhum maior que esse, da inoportunidade – conquanto seja esse, quase sempre, o primeiro e inevitável defeito. Enfim, valham-nos a expressão literal do nome da Academia e a sua tradição. Por igual, a lição de Montesquieu, em 1716, ou seja, há quase 250 anos. Ao ser recebido na Academia de Ciências de Bordeaux, recordou ele que os antigos – ainda mais antigos – consideravam que para ser filósofo bastava ter gosto pela Filosofia. Assim entendamos que para ser homem de letras basta gostar de Literatura...

São essas considerações de ordem prática – e eivadas de suspeição. Confesso que minha condição pessoal vicia a minha tímida objeção à conceituação de Literatura, que tendes afirmado.

Conexa a essa concepção da Literatura está a da Crítica. Alguma vez, advertindo que o meio físico, social e histórico e os dados sobre o autor somente interessam secundária e subsidiariamente, são material para o sociológico, para o historiador, para o psicólogo – concluístes: “Jamais, para o crítico literário.” Esse seria outro impacto destruidor, do inovador intrépido, enamorado da sua doutrina.

No entanto, não desprezais, por completo e em todos os casos, esses materiais extraliterários, a que se adstringia a Crítica antiga, e são, como dizeis, extraliterários. Por isso, “indiferentes”. Reiteradas vezes declarastes que “a crítica intrínseca não implica desconhecimento ou abandono total dos métodos extrínsecos em tudo aquilo que tem valido para o conhecimento”; nem isola um fato literário como um bólido no espaço, encara-o em suas relações com os outros fatos da vida, sem no entanto sacrificar o que deve ser o ponto precípuo da análise crítica: “Sem desprezar as condicionantes externas que sirvam”, “não abandona a contribuição histórica, mas colocada no devido lugar, que não é o primeiro; para a Crítica, é a obra de arte, antes e acima de tudo, o que importa.” Assim ressalvastes, como “contribuição inestimável”, a de Sílvio Romero, aplicando os critérios sociológicos ao estudo da Literatura... “ao fundo de cena da Literatura”. Reconhecestes, com Ronald de Carvalho, que, “sem sensibilidade e gosto, nenhuma crítica pode ser boa”.

Se assim é, se a Crítica não abandona, de todo, os elementos extrínsecos, e deles se há de valer, secundária e subsidiariamente, parece difícil estabelecer um critério seguro e permanente, uma limitação rígida desse aproveitamento. Tudo se fará empiricamente, segundo a tendência pessoal de cada crítico, ou conforme as circunstâncias peculiares de cada caso. Então, subjetivamente?

Não quero crer, portanto, que a vossa doutrina não reconheça certa gradação na extensão em que será admitido o aproveitamento dos elementos extraliterários, conforme o gênero literário. Se assim fosse, quanto à Poesia, como disse, parece-me fácil excluí-los quase por completo. James Brown, citado por Eduardo Portella, observou que, na América, do renascimento poético proveio uma Nova Crítica. Não será sintomática essa co-relação?

Às demais obras de arte se aplicará, de preferência, o critério estético,sem prejuízo, como tendes dito, dos elementos extraliterários.

Por fim, em relação às sucessivas escolas e movimentos literários, até porque têm feição coletiva, suponho mais cabível a crítica que chamastes sociológica, achando-se tais escolas e movimentos ligados, quase sempre, senão sempre, a episódios políticos ou sociais. Nesses casos, a influência extraliterária poderá ser mais freqüentemente intensa.

Precisamente essas escolas, estilos ou movimentos literários são, como disse, os elementos que adotais para a periodização da História literária – projetando, assim, nova e intensa luz sobre a matéria. Esse é também o último dos princípios fundamentais de vossa obra, que acima destaquei.

 

HISTÓRIA LITERÁRIA

Na apreciação das escolas e dos movimentos literários – mais que na das próprias obras literárias e ao contrário do que se daria em relação à Poesia – não percebi, como desejaria, conforme o que acabo de dizer, que houvésseis dado maior relevo aos fatores sociais e políticos. Apenas os tereis ressalvado, como elementos secundários, de fora da Literatura.

Para vós, coerentemente, a História literária há de limitar-se à História do fenômeno estético. Não lhe ampliais o território. Sois, assim, sempre fiel à especialização, especialização do crítico, da Crítica, da História literária. De inteiro acordo convosco, quanto à especialização do crítico, atrevo-me a supor que a restrição da matéria da História literária acarreta sua desvalorização, o desinteresse por ela, a incompreensão dos fatos que ela narra.

Do mesmo modo por que na História política se atende aos fatos econômicos que influem nos fatos políticos, e a História econômica considera os fatos políticos relacionados com os fatos econômicos – porque a História literária não há de perquirir, ainda mesmo fora da Literatura, os fatos que influíram ou determinaram a eclosão de escolas ou movimentos?

Noto que, sem incoerência, quanto ao Barroquismo e ao Modernismo, reconhecendo a dificuldade de os definir, acentuais a influência de fatos históricos, abstendo-vos, contudo, de os detalhar e analisar.

DECORRÊNCIAS

Fixados os pontos fundamentais mencionados, estabelecestes, como primeira decorrência, a preparação e especialização do crítico literário. Tão relevante e difícil vos parece uma missão que não admitis o diletantismo, nem a improvisação. Exigis habilitação científica completa. Quereis para os críticos o profissionalismo, como já o têm – e com que êxito! – os foot-ballers. Apurastes a técnica, com a justa preocupação de “dar aos termos literários um valor crítico preciso”. Não fizestes apenas a pregação dessas normas. Soubestes realizá-las, com êxito integral.

A segunda decorrência verifica-se na caracterização dos primórdios da Literatura Brasileira. Fiel à regra de excluir, ou subalternizar, na Crítica Literária, a apreciação de fatos históricos ou políticos, e desprezar a cronologia, caracterizando cada período literário somente pelo estilo predominante, creio que consagrastes, ainda, uma inovação marcante, denominando – barroca – a fase inicial de nossa Literatura, entre o Renascimento e o Neoclassicismo, que era qualificada de “seiscentista”. Considerais que “a Literatura nasceu no Brasil, sob o signo do Barroco pela mão barroca do jesuíta”, e logo destacada e distinta da Literatura da metrópole. Esse movimento, começando pela Literatura, propaga-se – como em regra acontece, conforme acentuais – às demais artes, pintura, escultura, arquitetura, música. Sobre as origens do Barroco, parece-me interessante a influência política que destacais, observando que, pela sua procedência espanhola, teve em Portugal pouco acolhimento, ao passo que, pelo mesmo motivo no Brasil, como reação contra a metrópole, repercutiu muito mais extensamente.

Esse é um tema que talvez, antes de vós, aqui não se tivesse versado – como está sendo na Europa, mesmo em Portugal – com certeza nunca o fora entre nós tão aprofundadamente. Arrolastes imensa bibliografia, que ocupa seis páginas, em tipo miúdo, da vossa Introdução Literatura no Brasil. Atraístes para ele a atenção dos críticos, que o versaram com interesse, apoiandovos ou divergindo de vós.

Tendo sido esse o assunto de vossa tese de concurso à cátedra do Colégio Pedro II, foi sempre, por vós, reiteradamente considerado no decurso dos estudos ulteriores. Reconhecestes as dúvidas sobre “a extensão, avaliação e conteúdo” do termo “barroco”, divergindo dos autores mais conceituados.

Para vós, o aspecto formal do barroco não é somente o pomposo,ramalhudo, gongórico, também o “discreto, sutil, poupado, meditativo”.

Assim, poderemos incluir nesse gênero obras de arte aparentemente muito diversas; dilata-se a noção vulgar arraigada entre nós – talvez correspondente ao sentido primitivo, depois ampliado à Literatura – que aplicava a qualificação somente às artes plásticas. Notei que em A Literatura no Brasil fizestes inserir duas belas gravuras, com aspectos típicos do interior de igrejas baianas. A dilatação do conceito levou a enriquecer, talvez demasiado, o gênero, podendo incluir-se, entre suas figuras representativas, as mais distanciadas e diferentes: por exemplo, na pintura não só Rubens, com a sua característica exuberância de cores e de carnes, como também o sutil Watteau, e na música o tumultuoso Tchaikowsky a par do movimentado Bach. Críticos ilustres não cessam de fazer classificações nesse estilo. Anotastes que já se indicou Luís de Camões. Para evitar essa confusão de estilos e de épocas, será preciso adotar o critério cronológico, no caso, talvez, mais preciso?

Vossos estudos sobre esta matéria transcenderam de nossa Literatura, mesmo porque reconheceis que esta apresenta, no período barroco, escritores medíocres – excetuados Antônio Vieira e Gregório de Matos – e elaborastes valiosíssimos ensaios de Literatura Comparada, versando a irradiação do barroco nos principais países da Europa durante o século XVIII.

Caracterizada a Literatura barroca, traçastes as linhas dos movimentos subseqüentes – neoclássico, romântico, realista, naturalista, parnasiano, simbolista, modernista.

Precisaria alongar-me, insuportavelmente, para acompanhar a exposição de vossas idéias sobre cada uma dessas escolas ainda que, como tenho feito, à superfície. Atenho-me apenas à última, a do Modernismo, a mais dilatada,sobreexcedendo, mesmo entre nós, à do Romantismo, a mais importante pelas suas origens remotas e prolongadas, pelas circunstâncias em que se iniciou, pelas características, pelas conseqüências, até porque já se tem classificado vossa obra no Pós-modernismo e sois uma das figuras primaciais desta fase da nossa Literatura.

 

MODERNISMO

Foi o Romantimo produto de importação, que bem se aclimatou entre nós, tanto coincidia com a índole de nossa gente, com o sentimentalismo daqueles poetas inspirados, que morriam tuberculosos na adolescência. Irrompeu com o livro de Gonçalves Magalhães, ou, como preferia nosso inolvidável Afrânio Peixoto, com o de José Bonifácio.

Quanto ao Modernismo, porém, críticos da maior autoridade e até mesmo participantes da arrancada de 1922 têm insistido em filiar o movimento a fatos históricos – desde a grande guerra de 1914 até a nossa revolução de 1930 e a crise econômica que a precedeu.

Menotti del Picchia reportou-se à revolução da técnica, ao surgimento de um novo mundo de Ciência e de racionalização – e recordou a palavra do próprio chefe daquela revolução, o Presidente Getúlio Vargas, assinalando o paralelismo da renovação dos valores literários e artísticos e a dos valores políticos e das próprias instituições – ambas oriundas de fatores mundiais e locais.

Fiel sempre à orientação doutrinária firmada, não perquiristes origens. Recuastes a 1909, com Lima Barreto, os primórdios do Modernismo, que prolongastes até 1920; depois, a eclosão de 1922, e até hoje o Pós-modernismo.

Dentre as múltiplas correntes que distinguistes, formadas pela “profunda subversão modernista”, destacastes o “movimento de revalorização estética” da Literatura, de que fostes iniciador e orientador, “contra a teoria de que a Literatura não passava de um epifenômeno da vida social e política”. Reconhecendo, porém, que, por influência do Modernismo, “a Literatura atingiu um estágio que traduz o grau de maturidade e integração da consciência, da mente, da alma brasileira”, dele tendo resultado a reconquista do equilíbrio entre a continuidade e a herança do passado e as mudanças e inovações, entre a tradição e a revolta –, mencionastes, com detalhes, “as conquistas definitivas em grande parte devidas ao seu impulso gerador ou transformador”. Entre essas, incluístes o estudo, “com espírito científico”, do folclore, da Ciência, da História. A esse mesmo espírito haveria de atribuir-se, em vossa opinião, a criação da tradição universitária e da universidade no Brasil, necessária para dignificar a Literatura. Incluístes no saldo do Modernismo as parcelas indicadas, com lucidez, por Peregrino Júnior, inclusive a da “participação ativa na vida nacional”, mediante a “identificação total com os problemas sociais, políticos e econômicos do Brasil”, a da “introspecção nacional” – fatos políticos, em que reponta o fortalecimento do espírito científico.

Alceu Amoroso Lima ligou a “Nova Crítica” ao movimento científico, que passou da macroscopia à microscopia.

Também a série valiosíssima de “estudos brasileiros”, que assinalastes, deve filiar-se ao movimento de “introspecção nacional”: procura-se o melhor e mais exato conhecimento, deste imenso, esparramado Brasil e da sua gente dispersa e heterogênea.

Conhecia-se, apenas, o litoral, ou parte dele; o hinterland, por onde passaram bandeirantes com estritos objetivos, ficara impenetrável. Não nos conhecíamos, não nos comunicávamos. Não havia estatísticas completas, uniformizadas, fidedignas. Quando, em 1882, Rui Barbosa emite os monumentais pareceres sobre a reforma do ensino, contrapôs às estatísticas estrangeiras as nossas, e tinha de advertir da desvalia destas. Em 1890, a primeira Constituinte republicana enfrenta a questão da distribuição das rendas públicas, fundamental para a organização do regime federativo, desamparada de estatísticas e tem de decidir por palpites ou estimativas mal fundadas.

Se assim se passava conosco, pior ainda era com os estrangeiros, que erravam de boa ou de má-fé, ao julgar-nos, e provocavam protestos e reações, mais ou menos patrióticos, aniquilando a mútua compensação imprescindível.

Turistas apressados preocupavam-se, de preferência, com a paisagem; um sábio que nos visita celebriza-se pelo estudo e classificação de palmeiras; alguns zombavam de nossas instituições, louvavam a benevolência dos senhores de escravos. Não se falava no que não existiria – o povo, a coletividade humana, dominada pelos mesmos propósitos e pelo mesmo objetivo, a nacionalidade.

Um moço escritor inglês escreve grandiosa História da Civilização na Inglaterra, que lhe daria renome mundial, em que, sem vir ao Brasil, denuncia a impossibilidade da civilização neste País. A Natureza indomável, avassaladora, não o permitiria – é o pronunciamento terrível de Henry Thomas Buckle, que repercutiria prolongadamente no espírito de brasileiros insignes – como Capistrano de Abreu. Sílvio Romero, sempre emancipado, discorda, com alguma prudência, senão timidez, apenas quanto aos fatores apontados, reconhecendo que haveria no asserto alguma coisa de verdade. A contestação cabal do prognóstico fulminante só mais tarde viria – na palavra de Rocha Pombo, Pedro Lessa, Batista Pereira, Ronald de Carvalho. Esta corrente de opinião também se deve filiar ao Modernismo.

Além desse impacto depressivo, outros agiam aqui dentro, além dos episódios políticos – o desmoronamento da Monarquia, a agitação do processo de adaptação ao regime Republicano, o grave problema social que a Abolição inopinada da escravidão não resolvera, antes agravara, que era do negro.

Como nas boas famílas, em que houvesse alguém de cabelo encarapinhado,nariz esborrachado, beiços grossos, pigmento escurecido, que era escondido às visitas de cerimônia, ignorávamos, queríamos capital na formação do povo.

Sempre se supervalorizou o índio. Era mais interessante, mais pitoresco, e o pitoresco foi sempre obsessão, quase um flagelo nacional. No período colonial o índio era favorecido, imune de escravização pela consideração, muito jurídica, de ter sido o dono das terras de que se apossara o colonizador. Tivemos – também o sei – uma escola literária, indianista, a que se filiaram nossos dois primeiros grandes escritores – José de Alencar e Gonçalves Dias.

A falada “tomada de consciência do brasileiro” dependia – e somente resultou do progresso científico – quando começamos a sair do empirismo, do embasbacamento deslumbrado ou da pasmaceira desalentada. Esse processo ainda se não consumou. Nada mostra melhor quanto essa transformação vai retardada que a observação do que se tem passado com o maior produto de exportação, fonte inexcedível de recursos da nossa balança comercial, que ainda se chama, em linguagem barroca – a “preciosa rubiácea”. Quase todos os produtores têm-na cultivado como o faziam seus antepassados, ou antecessores no domínio das mesmas terras. Pensava muito nisso quando via, na
Holanda, o cultivo e o comércio das tulipas. Quem contempla imensas áreas territoriais cobertas das belíssimas flores de variados coloridos, de formas imprevistas, pode supor que servem apenas para deslumbramento dos turistas. No entanto, elas são fonte de riqueza nacional, objeto de intensa exportação para outros países, também da América, até mesmo do Sul, acarretando milhões de florins. O acondicionamento das delicadas flores, os processos de expedição, os leilões em que se fazem vendas dos grandes lotes – tudo obedece a normas cada vez mais aprimoradas. Antes disso, com o mesmo cuidado, se faz o preparo do solo, o cultivo e a colheita das flores. O Instituto competente estuda e aperfeiçoa, cada vez mais, os processos de seleção das terras e dos bulbos, de plantio, de drenagem e de irrigação do solo, e de adubagem; orienta e instrui os cultivadores, os exportadores. Aqui, em relação ao café, como quanto à irrigação das terras áridas, algo começamos a fazer, somente há pouco, graças à iniciativa e à pregação do nosso inesquecível e benemérito Assis Chateaubriand.

De tal sorte, na determinação das causas remotas do movimento modernista há de incluir-se o fortalecimento, ou, antes, a revelação do espírito científico, característico dessa fase da civilização e que significativamente desejais entender – Crítica Literária.

Em 1910, ano climático da República, terminava a terceira presidência paulista: consolidara-se a ordem pública, restaurara-se o crédito nacional, prestigiara-se o conceito internacional do Brasil. Consumara-se a primeira, a mais espetacular realização do processo científico: a extinção da febre amarela. Pela primeira vez, uma tarefa administrativa fora planejada e se consumara triunfalmente, com rigorosa orientação científica, no preciso prazo predeterminado, como se se tratasse da passagem de um cometa no meridiano, sob a orientação inflexível de Osvaldo Cruz, outro que foi dos nossos. Depois, a vacinação antivariólica ainda encontrou resistências inesperadas, provocou motins, quase uma revolução metida a patriótica. Ao passo que, nestes últimos dias, a vacinação antipoliomielítica foi praticada largamente, procurada, com irrestrita confiança e o mais satisfatório êxito.

Por igual, a difusão de conhecimentos científicos resolveu o problema do negro, reabilitando-o. Homens de ciência proclamaram o negro, mentalmente, fisiologicamente, superior ao índio. Partiu da vossa Bahia a retificação pela voz dos seus sábios – desde Nina Rodrigues a Artur Ramos e, dentre tantos outros, como sempre em todos os movimentos culturais do Brasil, Afrânio Peixoto, e mais outros dos nossos, cientista e esteta – Roquete-Pinto.

Por isso mesmo, talvez uma de minhas agradáveis impressões da Bahia, colhidas quando ali passei pouco mais de um mês – foi a da condição social do negro. Não é um revoltado, nem um marginal. Naquele período, não terei tido conhecimento de um só crime cometido por algum homem preto, como tantos e tantos que noticiam aqui cada dia os jornais. Porque acolhidos pela melhor gente. Em muitas casas há um servidor dedicado, descendente de antigos escravos que pertenceram a antepassados dos atuais moradores. Jantei uma noite na casa de eminente homem público, da alta condição social. Depois do jantar, meu nobre anfitrião apresentou-me a um preto velho, bem apessoado, bem vestido, com aparência digna e respeitosa. Disse-me o dono da casa: – “Hoje ele não foi conosco à mesa, por sua causa...” Surpreendi-me e interroguei: “Ora essa! Por quê?” Quem me respondeu foi o próprio preto, esclarecendo: “É, sim, senhor: há brancos que não gostam...”

Poderia falar-se em – incorporação do negro na sociedade brasileira. Assim se chega a uma fase de otimismo, de que é sintoma o pequeno livro do nosso Afonso Celso, republicano histórico desiludido, em que ressurge o ufanismo do período colonial, apontado em A Literatura no Brasil, por Eugênio Gomes, como um dos aspectos do Barroquismo brasileiro. Teve esse livro entusiástico acolhimento excepcional em edições sucessivas e denota, em conseqüência da reação deflagrada, o espírito coletivo que se formava.

Contemporaneamene, dois homens de letras, que também foram dos nossos – Euclides da Cunha e Roquette-Pinto – varam florestas e rios caudalosos e trazem o relatório do que viram à luz da Ciência – um no Noroeste, outro no Norte. Um, em 1909, descreve o homem esmagado pela Natureza na Amazônia, o brasileiro que pisava terra brasileira e era um estrangeiro – mas reabilita o clima e o deserto, que foram caluniados, revela a “seleção telúrica” que “elege para a vida os mais aptos”. O outro, em 1912, justifica a confiança retemperada e a alegria sentida no trato do sertanejo. Os Sertões e Rondônia, ditados pelo perfeito espírito científico, tornam-se duas obras imperecíveis da Literatura Brasileira.

Paralelamente, fora da Literatura, por esse mesmo tempo, Alberto Torres (que não esquecestes de mencionar), outro republicano histórico desiludido, depois de transitar pelos três poderes federais e pelo governo de um Estado, talvez com escassa preparação científica, mas com maravilhosa intuição, denuncia a dilapidação das riquezas naturais e da desorganização nacional. Confia numa reforma constitucional calcada na Constituição monárquica. Sua doutrinação despercebida repercute, vinte anos depois, na palavra empolgante de mais um dos nossos, Oliveira Viana, e, através desta, fundamente, na Assembléia Constituinte de 1934.

NACIONALISMO

Todas essas circunstâncias bem justificam as conseqüências, de ordem política, que reconhecestes no Modernismo – sem elas inexplicável. Entre tais decorrências, apontastes o Nacionalismo – “sem ser contra”, sem “sentido jacobinista”.

Assim vi o Nacionalismo em vosso discurso de 1931. Necessariamente, o Modernismo, pelas mesmas circunstâncias de que se originou, fortaleceria o sentimento nacionalista; mas haveria quem o elevasse a um ufanismo pueril, com sacrifício do espírito de autocrítica, que deveria decorrer do Modernismo.

Apoiastes as palavras de Peregrino Júnior: – “O movimento modernista promoveu a orientação da nossa Arte e da nossa Literatura num sentido nitidamente nacionalista, de base humana e social.” Nestes termos, tudo estaria bem e mereceria aplauso caloroso; mas essa tendência de “nacionalização” da Literatura não se contenta sempre com a bem justificada preferência de temas brasileiros; vai até o problema da língua e do estilo, prega a emancipação dos “cânones portugueses”, para substituí-los por uma linguagem “popular e regional”, como disse Peregrino Júnior, entrosando – e ainda bem! – o Modernismo com o Regionalismo.

Esse movimento regionalista, a que dais toda a importância merecida, recebeu alento, senão resultou de fatos políticos.

LÍNGUA

Ocorreu a recrudescência, a exaltação do “instinto de nacionalidade”, que Machado de Assis recomendara, sob a influência de elementos de ordem política, que mesmo que os não tornássemos alheios à crítica literária, não deveriam ser incentivados nem aplaudidos. Assim se chegou a maldizer a colonização portuguesa, a influência portuguesa no Brasil, a denunciar o intuito de uma espécie de recolonização, a proclamar a existência de uma – língua brasileira – e a condenar a linguagem enfática e “arcaizante” de escritores insignes, não só Coelho Neto e Euclides da Cunha, também Rui Barbosa.

Tem esse sentido alguns pronunciamentos vossos. Não posso supor que um homem de vossa alta categoria mental, com a vossa visão universal dos problemas, acredite no avigoramento ou na renovação, de nossa incipiente cultura, cortando-lhe as raízes profundas. Não desprezando a remota filiação greco-romana, não querereis, de certo, desligar-nos da fase intermediária, que foi precisamente a lusitana. Não valorizaria nossa Literatura destituí-la da bela e forte língua, assemelhada à latina, que foi a de Camões e Vieira, para sujeitá-la a um idioma mais ou menos improvisado, de restrito alcance regional. Temos enriquecido a velha língua, temos-lhe dado novas tonalidades e múltiplas expressões – não queiramos deturpá-la, criar, para substituí-la, um instrumento formado pelo linguajar expressivo, mas desconexo e variado, da gente de cada trecho do País.

Em plena fase de irrupção do Modernismo, em 1924, a proposta de Graça Aranha, que a Academia rejeitou, visava à elaboração de um “dicionário brasileiro de língua portuguesa”, projeto esse que, mais tarde, veio a realizar-se, por obra de ilustres acadêmicos, continuada em edições sucessivas até agora. A própria Academia está publicando um “dicionário da língua portuguesa”.

Esperemos pela falada língua brasileira, mais uns cem anos... A questão suscitada está finda. Esgotaram-na, com tantos outros, no ponto de vista histórico e sentimental Afrânio Peixoto, no ponto de vista ecológico, sociológico e político Gilberto Freyre.

Continuamos formando, não apenas por força de tratados diplomáticos, a comunidade luso-brasileira. Aqui mesmo, nesta Academia a que vindes, reservamos no quadro de correspondentes, desde a primeira hora, a escritores portugueses, metade dos lugares. Devo salientar que nunca houve dificuldade em preencher alguma vaga decorrente nesse quadro, atendendo à exigência, não só do merecimento literário, como também do interesse pelo Brasil. Bem sabeis que se mantém em alto nível a Literatura portuguesa: vi citados, em vossos livros, como precursores da Nova Crítica, mesmo em relação ao Brasil, o nosso caríssimo Fidelino de Figueiredo e José Régio.

Quanto a vós, Sr. Afrânio Coutinho, não precisais de investigações livrescas. Precisareis, talvez, nesta matéria, apenas de contato com a realidade. Porque, se fizésseis a travessia do Atlântico, em seis ou oito horas de avião, ou em oito ou dez dias de navio, ao pisar terra de Europa, encontraríeis a gente do povo a falar a mesma língua que falais, e com ela vos entenderíeis (sem embargo de diferenças do significado e da pronúncia de algumas palavras – como aqui mesmo ocorre, quando um carioca conversa com um homem de Belém do Pará ou de certas regiões de São Paulo); e sentireis o carinho que vos envolveria, até mesmo certo orgulho pelo brasileiro, e veríeis aquele “povo montanhês e heróico, à beira-mar, sob a graça de Deus, a cantar e a lavrar” – então se desvaneceria, pelo menos, o vosso receio do propósito de intentar a recolonização do Brasil.

Ainda quanto à linguagem, em relação a Rui Barbosa, colho, em vossa A Literatura no Brasil, as palavras de ilustres colaboradores; Luís Delgado proclama-o mestre dificilmente igualável na arte de falar e escrever; Wilson Martins atribui-lhe a formação da convicção de que quem emprega a palavra escrita tem o dever indeclinável de aprimorar o estilo e reconhece-o como “a encarnação mesma da pureza vernácula e, por isso aos olhos comuns, o escritor por excelência”. Antonio Candido observou que foi ele um orador, “para o homem médio do povo, em nosso século, a encarnação suprema da inteligência e da Literatura”, ainda que quase ninguém o leia, fora de algumas páginas de antologia.

Sem dúvida, todos reconhecem que o Modernismo “rejeitou ao mesmo tempo a tradição purista e Rui Barbosa inteiro” – e é, com esse pensamento, que, naquela mesma obra, de vossa direção, condenastes a estética de Rui Barbosa “arcaizante e latinizante em linguagem”, dizendo que, como Coelho Neto, ele “se valia de uma linguagem inteiramente em desacordo com o objeto que tinha em mira descrever ou tentar”.

Não esqueço que, em vosso discurso de 1931, citastes, por vezes, conceitos dele, influenciado pela magia da sua palavra empolgante; depois, fizestes a crítica de suas opiniões e, por fim, no ano passado, com a sempre admirável sinceridade de vosso julgamento, retificastes, desdissestes essa crítica, reconhecendo-a injusta. Posso assinalar que, naquele mesmo notável dicurso –Rui Barbosa já tinha morrido e estáveis, como assinalei, sob a influência do Modernismo – vosso estilo límpido e vigoroso apresentava-se, nalguns trechos, arcaizante por certas palavras e expressões.

Rui Barbosa usou tais palavras, mas há de reconhecer-se que o leitor, ou o ouvinte, nunca precisaria de recorrer ao dicionário para entendê-lo, precisamente porque como que diluía essas palavras ou locuções mais raras em outras vulgares.

Ele foi parlamentar e advogado e, muitas vezes, numa e noutra qualidade, orador magnífico, em momentos da mais apaixonada emoção. Nessas ocasiões, poderia ser enfático, até redundante. Muitas vezes, seu vocabulário riquíssimo admitiu palavras arcaicas. Do mesmo passo, enriqueceu a língua com milhares de vocábulos – já se tendo calculado que foram mais de três mil – neologismos de boa formação, necessários ou úteis. Todavia, nas obras de cunho literário – como Cartas de InglaterraOração aos Moços, o ensaio sobre Swift – a linguagem acha-se destituída do aparato retórico.

Devido à polêmica memorável travada com Carneiro Ribeiro, extremam-se as críticas, com freqüência, em torno dos trabalhos do Código Civil, apontando exageros de gramatiquice e o empenho de restabelecer a pura expressão portuguesa. Nota-se a coincidência de serem do mesmo ano de 1902 que datam a Réplica, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Conquista de Coelho Neto, livros que se consideram escritos em estilo arrevezado, sem se atender à inspiração científica que, como dizeis, impregna Os Sertões.

Contudo, precisamente na revisão do projeto de Código, a preocupação dominante de Rui Barbosa foi, com insistência, a da simplicidade e clareza do texto, a de propriedade da expressão, pois, como acentuava, “o fraseado sóbrio, seguro, casto, deve caracterizar o estilo legislativo”.

É bem significativa a advertência que formula: a língua portuguesa tem belezas de concisão e vigor inestimáveis. Chegou então a condenar o uso dos advérbios de modo.

De tal sorte, todas as suas preocupações gramaticais, de sintaxe, de semântica, de prosódia e eufonia – eram cabíveis e não se podem tachar de arcaizantes. De Stendhal se revelou que lia o Código Civil para aperfeiçoar o estilo, simplificando-o. O mesmo poderiam fazer nossos escritores, não em relação ao Código, mas ao projeto de Rui Barbosa. Advertistes, com inteira procedência, que não é a linguagem o que mais importa à caracterização de uma Literatura. Se o Barroquismo tiver tido na linguagem uma de suas características, parece que nosso Modernismo a terá pelo desataviamento, pela simplificação, que envolve uma nova expressão de beleza. Com essa orientação, de certo modo, o exemplo e o ensinamento de Rui Barbosa são ainda hoje aproveitáveis.

Creio que nossos educadores, senão na totalidade, em grande maioria, assim consideram a repercussão do Modernismo na linguagem, sem desnaturar a nossa,fundamentalmente a mesma através de quatro séculos e meio de civilização.

EDUCAÇÃO

Em vós se aliam, como acentuei, o crítico literário o educador. Fazeis da Crítica Literária um instrumento de educação. Inspirado por vossa dupla vocação, formulastes impressionante observação, filiando nossa falta de Literatura e de crítica à falta de ensino e estudo de Literatura.

Era mais o educador que o crítico que ficou empolgado pelo movimento de l’Ordre Nouveau, evocou a figura de Péguy, como símbolo de ação, de pensamento, de vida, e analisou, através da obra de Daniel Rops, a inquietação do pós-guerra, que era a volúpia da juventude do tempo. Apontastes, então, “os mitos abstratos” com as “falsas alegrias que despertavam”, “as miragens do processo indefinido, do cientismo, da mania eugênica, da revolução, do Comunismo... dos diversos nacionalismos vazios de princípios superiores, de um internacionalismo oco e exclusivamente movido por interesses temporais”, tudo “sem consistência”. Apontastes a causa dos sofrimentos humanos: “o mundo e o homem perderam sua alma, equecendo-se de Deus”. Concordastes com Daniel Rops: era preciso dar à vida o sentido que perdera. E a cultura auxilia a vida com o pensamento, meio de viver mais profundamente.Acusastes o liberalismo burguês da “diminuição progressiva da intensidade e da profundidade da vida interior”. Aderistes ao preceito de Daniel Rops: a revolução deve a princípio operar em nós mesmos por uma profundidade de nossa vida noral e espiritual, por um saneamento crescente de tudo o que, em nós, impede o florescimento do espírito.

Levastes, assim, as preocupações do educador doutrinário para a crítica literária. Ficou traçado o rumo de vossa vida sob a inspiração de alto idealismo. O mais importante, e o mais belo, é que o seguistes, com êxito completo. E sentimos que esses ideais permanecem indestrutíveis, bem o sentimos ao ouvir certos tópicos de vosso discurso desta noite.

Em vários trechos de vossas obras, repontara o continuado interesse pelos problemas da educação. Que é, senão isso, vosso horror à improvisação, o reclamo da preparação cultural? E a procura do ambiente universitário para a difusão de vosso ensinamento? Ainda mais: sendo a Literatura expressão do espírito, reconhecestes, entre os fatores mais influentes no seu desenvolvimento, “os instrumentos de aquisição e propagação da cultura, os sistemas de educação”.

Desde 1947, retomastes a vida de professor, iniciada na Bahia. Resumiram-se as qualidades que há de ter o crítico literário, dizendo que ele há de ser um homem de bem. Tanto ou mais que ele tem de o ser o professor; ainda mais, o professor universitário. Eu queria que fosse esse, somente esse, apagado e humilde, o dever primordial de todos os professores; quanto possível o de todos os brasileiros. E fosse fácil cumpri-lo – ao passo que se vai tornando cada vez mais difícil. Por essa razão, compreendo todas as exagerações de vosso Nacionalismo; elas se explicam pela inevitável reação do homem de bem ante o descalabro da Pátria comum. Afinal, é compreensível que se pretenda imputar a estrangeiros gananciosos erros e fraudes que os próprios nacionais cometemos, ou permitimos que eles pratiquem.

Professor do Colégio Pedro II, proferistes duas orações notáveis – uma ao assumir vossa cátedra, outra na aula magna de 1961 – impregnadas do sentimento da missão de professor.

A primeira – contida no folheto O Ensino da Literatura – é um ataque desassombrado aos defeitos de nosso sistema educativo: – o concurso para provimento das cadeiras de magistério; a junção do ensino da Literatura com o da língua portuguesa; o desvirtuamento do ensino da Literatura, tornando-o ensino de História da Literatura, reduzido à memorização de biografias de escritores, e a estudo da linguagem de textos; o autodidatismo e o diletantismo dos homens de letras, privados do estudo da Literatura em cursos sistemáticos e especializados.

Revestistes, assim, vossa missão professoral de finalidade altíssima, quase despercebida, que abrange o saneamento da vida literária brasileira, considerada por vós “um beco mesquinho e sujo”.

Constitui, há quase um século, a educação o problema em que desembocam todos os outros do Brasil – e vós, assim, por certo considerais.

Devo confessar que se os exageros – ou o que eu considero exageros –de vosso Nacionalismo em relação a Portugal me emocionam, os que formulais em relação aos Estados Unidos me surpreendem. Porque, tendo vivido nesse País, como recordei, durante cinco anos, e ali consolidado vossa cultura, certa vez revidando à argüição que vos magoaria, de americanofilismo, criticastes acerbamente o seu way of life, apontastes graves defeitos, ressalvando, apenas, as grandiosas e bem providas universidades.

Não posso, infelizmente, contrapor-vos observações pessoais, que tivesse feito; nem quero valer-me de outros depoimentos valiosos ou das manifestações do alto espírito público e do sentimento de solidariedade humana daquele povo. Queria, apenas, deduzir que, se for assim – dezenas ou centenas de Universidades beneméritas, com milhares de professores, dezenas de milhares de alunos, centenas de milhares de antigos alunos, nenhuma influência benéfica exercem, nada valem, não produzem sequer a elevação do nível moral do País. A crítica atinge, portanto, as próprias Universidades, que tiveram o vosso louvor. Será, então, inoperante o ensino universitário?

 

ANTECESSORES

Repeti que nos achamos na “idade da Crítica”. Poderia acrescentar: e do Nacionalismo. Sois, nessa Cadeira, o primeiro crítico literário. Nem houve nela, até agora, algum modernista; sim, como focalizastes, o patrono e vários de vossos predecessores, impressionistas literários. Coincidiram todos em provirem desta cidade ou do contíguo Estado do Rio – todos “fluminenses”, como se dizia, todos da área mais politizada do País e, por isso, dotados de vivo espírito público, desde o patriotismo vigoroso ao Nacionalismo jacobinista.

O patrono – Raul Pompéia – com pequena e valiosíssima obra literária, escreveu, no prefácio de Festas Nacionais, de Rodrigo Octavio, não uma exposição doutrinária, mas ardorosa pregação de ódio, querendo que se acendesse “a flama do ódio vivificante”. Eram, então, os primeiros dias daquele ano de 1892, no decurso do qual e ainda no subseqüente a revolução da Marinha, a intervenção estrangeira efetivada e que se ameaçou levar mais longe, o asilo da oficialidade e da marinhagem revoltadas, a ocupação da Ilha da Trindade, exacerbaram ao auge a exaltação jacobinista. Pode medir-se a temperatura, então reinante, da mentalidade de nosso meio político pela desse notável homem de letras.

Ao fundar-se a Academia, Raul Pompéia desaparecera, por um gesto seu desvairado, pouco mais de um ano antes. O primeiro eleito para a Cadeira que se torna vossa, Domício da Gama, fê-lo seu patrono. A homenagem incluía o vigoroso agitador da véspera entre os antepassados da Academia,todos mortos havia muito mais tempo. Postergava-o a uma fase superada de desenvolvimento nacional. Domício da Gama, diplomata de ofício e por temperamento, de patriotismo tranqüilo e confiante – que se dizia, nos últimos dias de vida, cada vez mais apegado ao Brasil, “terra bendita de beleza e doçura” – parece, considerado pelo prisma do jacobinismo, diametralmente oposto ao patrono que indicou. Foi minguada a obra literária de Domício da Gama – toda de suave tonalidade, que se revela desde os títulos dos livros (Histórias curtas, Contos a Meia tinta) e acentua o contraste assinalado. Moderação e parcimônia da obra literária explicam-se pela só circunstância que também determina a feição do seu patriotismo: era ele auxiliar dedicado de um trabalhador infatigável e absorvente, Rio Branco, o mais constante de seus auxiliares pessoais e nos pontos diplomáticos de maiores responsabilidades. Não lhe sobraria tempo para a Literatura.

Depois, tivemos Fernando Magalhães, que também não deixou obra correspondente ao alto padrão de sua intelectualidade. Outro isento, de todo, da exaltação patriótica, tendo o patriotismo compreensivo, ordeiro, construtivo. Confiante no aperfeiçoamento moral dos cidadãos, doutrina-os na Cartilha da Probidade; desejoso de democracia, defende-a, colabora em sua estruturação, na tribuna parlamentar. Orador dotado de todos os predicados – voz harmoniosa, elocução perfeita, palavra rica e límpida, presença física de beleza varonil, pensamento alto e generoso – seus discursos, na Câmara, na Faculdade de Medicina, nas conferências científicas, até no Tribunal de Júri – sempre revestidos de valor literário. Politicamente e literariamente, é o romântico, proclamando a sobrevivência do Romantismo, em pleno século XX, pelo sentimentalismo e pelo Liberalismo.

Por fim, Luís Edmundo. Seu Nacionalismo é um pouco mais acentuado, sem se tornar agressivo, nem ameaçador, como bem o definistes, temperado por doce sentimentalismo fundamental. Nem o sentimentalismo de Luís Edmundo era choroso, como em regra o dos nossos poetas líricos, mas jovial, triunfante no amor, com uma nota discreta de humor.

PERSPECTIVAS

Haveis de sentir-vos bem, sob a égide desses nomes, cercado da estima dos contemporâneos.

Através da obra longa e trabalhada, chegastes ao cimo da montanha – que não é o termo da vossa jornada. O semeador esclarecido e devotado tem a surpresa de ver a boa semente germinar antes do tempo. Tão cedo começastes vossa tarefa, com tanto ardor vos empenhastes nela que cedo também chegou a hora de encerrá-la, não para o vosso descanso, ainda que merecido, mas para prosseguir em outra, que a complementa.

Incitado a proceder nesse sentido, alegastes – nem soubestes dizer se por pessimismo ou por humildade – vossa própria incompetência “para vos realizardes”, “para realizar o que idealizastes ou visualizastes”. Essa declinatória seria a derrocada, a inutilização de toda a obra precedente, já ultimada. Assumistes um compromisso impreterível, não apenas convosco, com a própria Literatura Brasileira.

De resto, escrevestes, há nove anos, as palavras de escusa, que recordei: Dois anos depois, era publicado o primeiro volume de A Literatura no Brasil e sucessivamente os outros três e os demais livros que inclui no terceiro grupo de vossos trabalhos. Assim iniciastes desde logo – tendes já iniciado, a aplicação das doutrinas que pregastes, a revisão dos valores de nossa Literatura pelo critério estético.

Agora, nem estais só, como no início da luta. Surgiram discípulos colaboradores, continuadores, alguns de grandes méritos. De um desses dissestes que fazia “a primeira demonstração prática da Nova Crítica brasileira em livro”. É Eduardo Portella, que tem a mesma vossa orientação doutrinária, provinda de singulares analogias de formação, pelos estudos especializados no estrangeiro – vós nos Estados Unidos, ele na Europa latina – e iniciado no exercício da Crítica Literária depois de vós, ainda mais jovem que vós mesmos. Tão auspiciosa revelação, que tem ele sabido divergir de vós, mestre reconhecido. Nessas divergências se desenvolve, se adapta, se aprimora,vosso ensinamento.

Quando ele disse que o problema já não é combater Impressionismo, é superá-lo, assimilando-o, não se terá inspirado em vossos conceitos sobre a sobrevivência de uma escola em outra, sucessiva, pela transmissão de idéias que a precedente consagrara?

E quando ele opina que nada mais passado e menos científico que o desprezo “absoluto e radical” pela vida do autor, não estará apoiando vosso ensinamento, admitindo, como vimos, o aproveitamento subsidiário dos elementos biográficos?

E quando ele afirma que o “merecimento da revisão”, por vós “desencadeada” (esta foi a sua palavra exata), não fora seguido ou completado, por outros trabalhos mais práticos, não apenas teóricos – não vos concita a intentar esta grande obra, complementar da grande obra já realizada? Nesse mesmo sentido opinaria, se me não engano, Alceu Amoroso Lima, quando reconheceu o importante papel da Crítica formalista e os serviços que pode prestar às nossas Letras “se não se perder em polêmicas estéreis ou se deixar arrastar por um cego unilateralismo”.

Também assim entenderiam os que vos elegemos. Não vos outorgamos apenas um prêmio; também, um incentivo merecido e oportuno. O júbilo de vossa presença aumenta nossa confiança em vós.

Por coincidência auspiciosa, a Academia comemora hoje o seu florido 65.º aniversário. Estais – ela muito mais que vós – na idade de passar, como dizia o vosso e nosso Afrânio Peixoto, de incendiário a bombeiro. Distanciado pela idade, nela ingressais, sob o signo de uma coincidência promissora: vossa festa é também dela. Em verdade, ela é bem mais velha que revela o calendário, pois as associações têm a idade total dos que as compõem. Aprendi isto, quando a Corte Internacional julgava intricado litígio, e acorreram a Haia dezenas de repórteres dos principais jornais da Europa e dos Estados Unidos. Um deles epigrafou o seu noticiário, em Le Figaro de Paris, com esta revelação sensacional: – a Corte Internacional conta mil e duzentos anos de idade. Ele somara os anos de cada um dos quinze juízes, para apurar a do tribunal. Aplicado o mesmo critério à Academia, pelos 39 membros que a compúnhamos até agora, o total excederia de dois mil anos. Convosco, diminuirá a média individual; rejuvenesce um pouquinho a Academia.

No entanto, esse é apenas um pequenino, despercebido benefício que lhe fazeis. Outros, muito maiores, vindes prestar-lhe: trazeis o prestígio de vossa personalidade, a eficiência de vossa colaboração, o encanto de vossa companhia.

Por dobrado motivo, está hoje de parabéns a Academia.

20/7/1962