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Discurso de posse

Uma vez, num evento literário, quando soube que ia falar depois de Ariano Suassuna, meu bom senso mineiro me aconselhou: “não faça isso”. Eu ia ser o anticlímax da noite em que ele apresentaria uma de suas aulas-espetáculo, nas quais exercitava sua vocação de professor e sua alma de palhaço, mostrando como podia ser sério e divertido, popular e clássico, regional e urbano, trágico e cômico, um sertanejo universal. Seus números de humor eram irresistíveis, como o da confissão de que só falava mal das pessoas pelas costas: “pela frente, é falta de educação”.

Ele alegava que lançava mão do riso para se defender, pois não gostava de ser dominado pela emoção. Mas o uso da anedota, do chiste e da piada era também uma estratégia para ajudar a difundir o erudito e o culto em literatura, em arte e em filosofia.
Espertamente, fui me sentar na plateia. Quando me viu ali, onde já estivera em outras ocasiões, ele apontou para mim e disse que se tratava de um “aluno repetente”, que não passara de ano.

Pois é como quem vai prestar seu exame oral que me encontro aqui hoje, sabendo que estariam todos mais bem servidos se, em meu lugar, estivesse o grande crítico teatral Sábato Magaldi ou um Marcos Vilaça, um Geraldo Holanda Cavalcanti ou um Eduardo Portella, não só por esses três serem pernambucanos, como o paraibano Suassuna foi durante 72 dos seus 87 anos de vida, mas pela intimidade com o autor que me cabe a honra de homenagear, uma tarefa que ficará certamente imperfeita e incompleta.

Suassuna dizia que, para ele, literatura e vida eram uma coisa só, e eu acrescentaria que poucas vezes as duas foram igualadas em riqueza e intensidade, inquietação e criatividade. A imensa distância que me separa dele só pode ser preenchida pela admiração que lhe devoto. E pela gratidão. Pouco antes de ser hospitalizado, na última conversa que manteve com seu amigo, o jornalista Gerson Camarotti, aqui presente, ele disse que gostaria de me ver eleito para a Academia, estando disposto para isso a me dar seu voto. Por uma perversa ironia do destino, a vaga acabou sendo a dele.

Poeta, dramaturgo, romancista, professor, agitador, conservador, inovador, visionário, quixotesco, os adjetivos com que a imprensa tentou qualificá-lo, ao construir seu elogio fúnebre, não deram conta do personagem. Nem as metáforas dão. Talvez só a metonímia, mas, mesmo assim, a soma das partes não alcança a grandeza do todo. Ele mesmo tentava se definir juntando pedaços: “Tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta”. São personalidades que vão aparecer como personas em sua obra.

É de Vilaça, que há quase 25 anos o recepcionou, uma admirável síntese: “É da tragédia da infância, com impressões digitais de dor eterna, que vemos Ariano Suassuna emergir para expor ideias, zelar respeitos, desabotoar preconcebidas conceituações de cultura, construir um dos mais altos momentos da dramaturgia em língua portuguesa e realizar obra romanesca de fascinante afinidade com tudo que é brasileiro, na incrível magia das palavras”.

Graças a um sábio princípio desta Casa, que desde o insubstituível Machado de Assis seguiu o costume de adotar como critério não a substituição, mas a sucessão, posso anunciar com orgulho, mas sem insolência que vou suceder _ jamais substituir _ o insuperável Ariano Suassuna na cadeira 32, cujo patrono é Manuel Araújo Porto Alegre, Barão de Santo Ângelo, e cujo fundador é o conde Carlos de Laet, a que se seguiram o Barão de Ramiz Galvão, Viriato Correia, Joracy Camargo e Genolino Amado. Todos, como observou Suassuna, “foram professores ou escreveram para teatro”, a exemplo dele mesmo.

No seu discurso de posse em 9 de agosto de 1990, Ariano revelou que, desde menino, sabia que um dia chegaria aqui como imortal, ao contrário de mim, que jamais sonhei em alcançar essa glória. Pode-se então imaginar a emoção deste filho e ajudante de um pintor de parede, em estar sendo acolhido neste templo do saber com tanta estima e consideração. E, se não bastasse, ser recebido por minha eterna mestra Cleonice Berardinelli, a Divina Cleo, que abriu para mim as portas de um mundo encantado onde há mais de meio século me apresentou Camões e Fernando Pessoa. Tê-la como anfitriã já é um privilégio tão especial que, ao me receber, ela não precisa nem elogiar.         

A professora Cleonice ocupava lugar de destaque no meu altar de admirações do Curso de Letras Neolatinas da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, ao lado de outros grandes mestres com os quais tenho uma insolvente dívida intelectual, como Alceu Amoroso Lima, cuja obra é preservada pelo Centro que leva seu nome e ao qual tenho a honra de pertencer, uma criação do meu querido Cândido Mendes, herdeiro e guardião, por vontade própria do inesquecível pensador católico, de seu legado cultural.

Na universidade, a minha dívida é extensiva a Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Manuel Bandeira, Thiers Martins Moreira, Roberto Alvim Correa, Ernesto Faria e Hélcio Martins, responsável por meu ingresso no jornalismo.

Foi então, precisamente em 1957, que, antes de conhecer Ariano Suassuna, conheci João Grilo e Chicó no Teatro Dulcina, quando o “Auto da Compadecida” ganhou o I Festival de Teatro Amador, disputando com 48 concorrentes. A peça estreara em Recife, mas fora “execrada pela crítica”, como contou recentemente Socorro Raposo, a primeira atriz a viver o papel principal. Aos 82 anos, ela lembrou que no Rio “a cortina fechou e abriu 9 vezes”. O texto, que Magaldi considera “o mais popular do moderno teatro brasileiro”, produziu um forte impacto numa plateia onde se via o humorista e dramaturgo Millôr Fernandes aplaudindo de pé.

A partir de sua consagração na ex-capital federal, Suassuna projetou-se nacional e internacionalmente, e a “Compadecida” tornou-se seu maior sucesso não só nos palcos como, mais tarde, na televisão e no cinema, quando, sob a direção de Guel Arraes, foi vista por milhões de espectadores. Inspirada nos folhetos populares, no entremez, no cordel e no romanceiro medieval e nordestino, a peça apresenta personagens como Nossa Senhora, o Jesus negro, os amigos João Grilo, criador de casos, e Chicó, o mentiroso, o padeiro avarento, casado com uma adúltera que se diz pura, o bispo, que vive difamando o honesto frade, o Encourado, que é o Diabo. E o Palhaço, que é a encarnação do próprio Ariano. É uma comédia, em que, como dizia o autor, “a gente ri o tempo todo, mas morre todo mundo” _ como acontece também na farsa “O santo e a porca”, cujo desfecho é igualmente “doloroso e triste”.

Já no primeiro conto, que escreveu aos 12 anos, os três personagens são mortos, o que levou um irmão mais velho a fazer graça com a hipótese que talvez fosse a manifestação de uma tendência homicida do mais novo. Rindo, o mais novo lembraria: “De fato, matei muita gente nas minhas primeiras obras”.

Por sua excelência artística, a Compadecida significou uma vitória contra o preconceito social vigente de que os valores rurais representavam o atraso. Em plena era JK, naquele clima de efervescência cosmopolita que gerou a Bossa Nova, o Cinema Novo, a nova arquitetura, o Teatro de Arena, a Poesia Concreta, o distante sertão nordestino trazido por Suassuna para o sudeste representou um marco no teatro brasileiro, a começar pela forma adotada, o auto, das tradições ibéricas medievais, numa mistura de fontes cultas e populares, religiosas e profanas, com ingênuas irreverências,  personagens marcantes, o humor irresistível e até com o politicamente incorreto, como o diálogo de João Grilo com Manuel, o Jesus negro, a quem diz: “A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto”.

Até o autor se surpreendeu com o sucesso da peça, que logo foi encenada em mais de uma dezena de países. Ele pensava que essas histórias fossem locais. “Mas não”, concluiu, “são universais, simbólicas”. Quando o padre da “Compadecida” se deixa subornar para fazer o enterro do cachorro em latim, Ariano pensa no mito de Fausto vendendo a alma ao diabo. Um crítico espanhol observou que a história do cavalo que defecava dinheiro já aparecia numa versão parecida no D. Quixote, de Cervantes. Outro informou que eram do século XV, vindas do norte da África com os árabes, alcançando a Península Ibérica e, de lá, o Nordeste brasileiro.
Como observou a professora Ligia Vassallo, que estudou a fundo o teatro de Suassuna, “alguns desses personagens são alegóricos, talvez herança dos autos vicentinos, representando arquétipos da sociedade cristã medieval, figurações da luta maniqueísta entre o Bem e o Mal, sem posições intermediárias”.

Essa peça já antecipava o ambicioso projeto estético que em 1970, com o nome de Armorial, foi lançado envolvendo poetas, gravadores, músicos, escritores, pintores. dramaturgos, ceramistas e coreógrafos. O objetivo era “realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares de nossa cultura”. Ainda nas palavras de seu criador, era “a arte que tem como característica principal a relação entre o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro popular do Nordeste com a música de viola, rabeca ou pífano, que acompanha suas canções, e com a xilogravura que ilustra suas capas”.

Não havia dúvida. O nosso sertanejo estava decidido a retirar as aspas da “cultura popular”, libertando-a do estigma de ingênua e primitiva.

Ariano Suassuna conheceu a morte três anos depois de nascer, quando seu pai, ex-governador da Paraíba e já deputado federal, foi assassinado no Rio por um pistoleiro com dois tiros nas costas, como vingança política, seis dias após ser deflagrada a Revolução de 30. O episódio está na origem de sua visão trágica do mundo, pois a Caetana, ou seja, a morte, passou a ser personagem tão importante de sua vida, como depois seria de sua obra. “Mataram meu Pai”, ele escreveu num soneto. “Desde esse dia,/ eu me vi como um cego, sem meu Guia,/que se foi para o Sol, transfigurado”. A partir daí, confessou, passou a vida protestando contra a perda paterna em tudo que fazia e escrevia.

Não concordava, porém, com os que acham que a presença feminina é menos marcante em sua vida e obra por causa da fixação na figura do pai.  É uma crítica que não leva em conta que a primeira peça de Suassuna foi “Uma mulher vestida de sol” e que ele é o criador de personagens como a Margarida, de “A pedra do reino”, a Marieta, a “mulher fatal” de “A pena e a lei”, a Virgem de “O castigo da soberba” e principalmente da Compadecida, além de ser filho de Rita de Cássia e marido de Zélia. “Minha mãe foi uma “figura excepcional. Ficou viúva aos 34 anos e até morrer aos 94 usou luto como protesto, mas nunca deixou que os 9 filhos se alimentassem de ódio e desejo de vingança”. Não foi fácil, mas, ao completar 80 anos, Ariano tomou a decisão de perdoar os assassinos de João Suassuna: “Se eles estão no inferno e se depender de mim, eles saem hoje mesmo”, absolveu.

Quanto à Zélia, sua grande paixão _ a quem dediquei minha eleição e presto agora minha comovida homenagem _ Zélia, que ele conheceu como uma quase menina, foi quem, na sua bela expressão, o “desatou para a alegria e a beleza do mundo”, além de ter sido fundamental no seu processo de conversão ao catolicismo. Interno dos 10 aos 15 anos em colégio protestante, Suassuna buscava a presença materna que não encontrava no calvinismo. “Me faltava uma coisa _ as mulheres. “Foi nisso”, continuou, “que Zélia, católica, desempenhou papel importantíssimo”. Mãe de seus seis filhos e avó de 15 netos, ela ainda foi, como grande artista plástica, parceira imprescindível no trabalho dele, ilustrando vários de seus livros.

Portanto, machista na obra de Suassuna só o Diabo, que deprecia Jesus por ceder aos pedidos de Maria: “Homem em quem mulher manda/ Não pode ser justiceiro”, decretava o Coisa Ruim, sem desconfiar que nessa condição de obedientes à vontade feminina estariam também o próprio Ariano e este seu sucessor.
    
Se na arte Suassuna gostava de misturar e diluir opostos, na vida ele cultivava os traços contraditórios, começando por acreditar que na alma humana havia dois hemisférios: o “hemisfério rei e o hemisfério palhaço”, que, segundo ele, “equilibra aquele através do riso”. Na época em que se assumia como “monarquista de esquerda”, chegou a declarar que o sistema político ideal para o Brasil seria formado com um príncipe descendente do imperador D. Pedro II reinando, e, como primeiro ministro, o ex-governador de esquerda Miguel Arraes, a cujo governo serviu como secretário de Cultura.  

A propósito, foi esse presumível “primeiro ministro” que me levou à casa de Zélia e Ariano para, numa tarde memorável dos anos 90, receber uma inesquecível aula-espetáculo particular de umas três horas.

Sem nunca ter-se candidato a cargo político, exerceu, no entanto, funções públicas e participou da campanha de Lula,  de Dilma e, bem mais tarde, de Eduardo Campos, no seu pouco tempo de vida. Às vezes, desnorteava a esquerda. Em 1961, quando da estreia da “Farsa da boa preguiça”, foi acusado por alguns setores de “estar aconselhando o povo brasileiro à preguiça e ao conformismo”. A resposta só veio no prefácio a uma edição de 1972 dessa divertida peça, quando escreveu que, ao elogiar o ócio criador, contrapusera nossa visão de mundo à dos povos nórdicos: “não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’”, acrescentou, bem à sua maneira.

Quanto à monarquia, sua adesão era mais afetiva que ideológica; era a de quem desde criança se encharcara de literatura de cordel e de folhetos, onde havia sempre a representação de um rei e uma rainha. Ao rever sua posição, ele lembrou a influência do pai, que, para ele, “encarnava a figura de um rei”.

Aguerrido defensor das raízes culturais, debochava quando era chamado de anacrônico. Assim como usava o humor como antídoto ao trágico, temperava com graça sua xenofobia. Não deixava de ser hilariante o radicalismo com que tratava famosos artistas americanos, chamando de “imbecis” Elvis Presley, Michael Jackson, Madona, Lady Gaga e, principalmente, Frank Sinatra. “Tenho um abuso enorme desse sujeito”, dizia, com fingida raiva. Orgulhava-se de ter tomado Coca-Cola apenas uma vez na vida e justificava sua aversão ao computador por causa de um incidente em que, garantia, a máquina transformou seu nome Ariano Vilar Suassuna em “Ariano Vilão Assassino” (em outra versão, era “Ariano Vilão Sua a sunga”). “Como posso gostar de quem faz isso com meu nome?”.

No evento literário a que me referi no início, a apresentadora anunciou o intervalo: “e agora vamos a um coffee braek”. O palestrante não precisou falar nada. Sua cara fez a plateia explodir em riso.
Com horror ao solene e ao pedantismo, procurava disfarçar a vasta erudição de quem conhecia os clássicos gregos e se confessava influenciado pelos pensadores alemães: “muito Hegel, mas, sobretudo, Nietszsche e nada de Kant, de quem não gosto”, revelava o ex-professor de Estética do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Pernambuco. Com uma memória fabulosa, citava de cor estrofes dos Lusíadas e trechos de Sófocles, mas imediatamente avisava que não merecia a menor confiança em citações.”Quando a frase não me serve, eu modifico”, confessava com a maior cara dura. Decididamente, uma de suas virtudes era não se levar a sério. Se dizia ranzinza, mentiroso, feio, de voz rouca, baixa e fraca, e incapaz de concisão. “Preciso de horizontes amplos”, o que o fazia preferir Quincas Borba a D. Casmurro. O outro motivo da simpatia era sua declarada afinidade com a loucura de Rubião.

O menino Ariano lia de tudo na biblioteca deixada pelo pai _ de “Os três mosqueteiros” a “Os sertões”. Elegeu então Euclides da Cunha como patrono e Cervantes como ídolo. Do criador do D. Quixote, ele dizia: “Este não tinha defeito e, se tinha, eu não digo”. Já na adolescência, era leitor de Camões e Dante, e admirador de poetas ingleses como Shelley e Keats, além de Lorca, evidentemente. Carlos Newton Júnior, especialistas em Suassuna poeta, afirma que a poesia era a “fonte profunda” de tudo o que escreveu. Lamenta que, aclamado como dramaturgo e romancista, tenha sido quase desconhecido como poeta. Outro estudioso da obra, o crítico Silviano Santiago, acrescentava que Suassuna buscava a “recriação poética do Nordeste através de textos do romanceiro popular”. E essa era a sua diferença da escola naturalista.
Ao se colocar contra o naturalismo e o neonaturalismo, Suassunga afirmava: “A arte não é uma imitação do real, é uma recriação”. Sem compromisso com a cópia e a verossimilhança, ele era uma espécie de passageiro da fantasia.  

Não é fácil descobrir no polemista Suassuna o que é convicção e o que é provocação. Afirmava, por exemplo, que quem gostasse do teatro de Garcia Lorca, como ele, não podia gostar do de Nelson Rodrigues. Segundo seu amigo de juventude e parceiro Hermilo Borba Filho, Ariano sempre foi “zombeteiro, irreverente, desnorteante”, capaz de destruir o argumento mais sério com uma piada. Ou então “sair-se com um problema metafísico dos mais angustiantes numa conversa ligeira”.

Curiosamente, apesar da devoção por Euclides, é em Machado de Assis que ele vai encontrar explicação para o Brasil, quando descobriu a divisão que o Bruxo fazia entre um país real, “bom e com os melhores instintos”; e outro oficial, “caricato e burlesco”. Ainda que descontando esse maniqueísmo inesperado em quem preferia a ambivalência, Ariano adotou a visão bipolar machadiana e acrescentou que a cisão vinha desde a carta de Pero Vaz de Caminha e do primeiro encontro do português com o indígena. E o fenômeno seria responsável pelo nosso desequilíbrio. Em sua arte, porém, em vez do antagonismo, ele procurou sempre “a linha de fusão da cultura popular com a erudita”.

Quando chamavam-no de contraditório por gostar da cultura popular, mas detestar a de massa”, ele justificava: cultura de massa é baseada no gosto médio; já a popular é feita por pessoas do Brasil real, de bom gosto. Por isso, não permitia confundir o popular com o brega. Foi capaz de desfilar na gloriosa escola de samba Império Serrano e ser enredo duas vezes: da Acadêmicos do Salgueiro, no ano de sua posse, e da Unidos de Padre Miguel no carnaval de agora.  Não suportava, porém, as manifestações cafonas na arte. “Gosto muito de Dostoievski e Tólstoi para perder tempo com o brega. “Até do nome tenho antipatia”.

Se para o grande público e até para parte da crítica o “Auto da Compadecida” é a obra-prima de Ariano Suassuna, para ele a preferida é outra, conforme confessou: “Se um dia dissessem: todas as suas obras serão queimadas e você só tem direito de salvar uma, eu salvaria ‘A Pedra do Reino’”, cujo herói, Quaderna, seria uma espécie de Suassuna “pretensioso e megalomaníaco”, na avaliação de seu criador. Nesse romance de quase 700 páginas, que ele considerava uma “novela humorística”, estariam contidas todas as outras obras. “O Auto é o pedaço do meu universo que está ligado ao folheto de cordel, à cultura popular, à novela picaresca. Mas eu não sou somente isso, sou poeta, coisa que quase ninguém sabe”, queixava-se.

O autor estava em boa companhia. Rachel de Queiroz, que fez a apresentação do romance, escreveu: “Será romance este livro tumultuoso de onde escorre sangue e escorrem lágrimas, e há sol tirando fogo das pedras, e luz que encandeia e um humor feroz e uma ainda mais feroz e desabrida aceitação da fatalidade (...) Mas também é profecia e doutrinação e romance erótico, um erotismo seco, um erotismo sem luxúria”. E a romancista resumia assim seu deslumbramento: ‘Só comparo o Suassuna no Brasil a dois sujeitos: a Vila Lobos e a Portinari.

Carlos Drummond de Andrade não ficou atrás. Extasiado com o que classificou de “extraordinário romance-memorial-poema-folhetim", suspirou: “Ah, escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita”.

Houve quem comparasse “A pedra do reino” ao D. Quixote e à Divina Comedia.

Suassuna defendeu com ardor os nossos antecessores na cadeira 32, a começar pelo patrono, cujo poema épico “Colombo” chegou a receber a qualificação de “longo e enfadonho”, por causa do excesso de adjetivos, mas isso não incomodava quem, como Ariano, devoto de Euclides da Cunha, também gostava de fazer uso deles, confessando: “não sou contrário nem à eloquência nem aos adjetivos”. Sua simpatia por Porto Alegre e Carlos de Laet é anterior á sua candidatura, e já se manifestava em A pedra do Reino, onde são citados por Quaderna, que, de acordo com seu criador, poderia ter se referido também a Ramiz Galvão, “estudioso infatigável da Cultura Brasileira”.
Viriato Correa, o terceiro ocupante da cadeira e autor de um clássico da literatura infantil, “Cazuza”, chamou a atenção de Suassuna na infância com a “História do Brasil para crianças” e na adolescência por um conto que de certa maneira antecipava a peça Le Malentendu, de Albert Camus. Um rapaz sai de casa e, não sendo reconhecido ao voltar muito tempo depois, é assassinado pelos pais. Mas quem mais marcou o futuro dramaturgo ainda menino foi Joracy Camargo, cuja peça “Deus lhe pague”, com outras exibidas no sertão da Paraíba junto com os circos que por lá passaram, forneceram a ele uma receita mágica que, conforme disse, “entrou em meu sangue”. E o contagiou para o resto da vida.

Citando Fernando de Azevedo, para quem a cultura brasileira se repartia em duas linhagens _ a do “espírito de conquista”, isto é, a sertanista de Euclides da Cunha, e a do “espírito de civilização”, a urbanista de Machado de Assis _ Ariano Suassuna se situava na primeira vertente. Mas se identificava muito, pelo gosto da alegria, com seu antecessor imediato, Genolino Amado. Ele lembrava que “no Auto da Compadecida, Nossa Senhora afirma que quem gosta de tristeza é o Diabo”. E o palhaço, isto é, Suassuna, diz que procura “enfrentar a dura e fascinante tarefa de viver com duas armas, com as quais lutas contra o desespero, a tristeza e até a morte. Elas são o riso a cavalo e o galope do sonho”. Genolino, por sua vez, escreveu que “os que nunca riem são, em geral, cruéis e inclementes. São os inquisidores, os fanáticos, os torturadores, os tiranos”.

De minha parte, eu, que estou chegando agora, reivindico um lugar junto dos dois, no lado risonho e solar, oposto ao do Diabo.
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Como não quero irritar o meu homenageado numa noite como esta, estou me contendo para não dizer que ele, que queria ser um astucioso como João Grilo ou um mentiroso fantasista como Chicó, acabou sendo um popstar, com perdão da palavra, admirado pelos jovens que, na companhia de velhos repetentes, constituíam a plateia preferencial das fascinantes aulas-espetáculo desse professor tido por alguns, imagina, como anacrônico e superado.

E, para finalizar, apesar da relação amistosa que manteve com a Caetana em sua obra, Ariano não queria morrer. Ele acreditava que a literatura era uma maneira de protestar contra a morte, uma forma precária, mas ainda assim poderosa de afirmar a imortalidade. “O homem não nasceu pra morte”, afirmava, “o homem nasceu pra vida e pra imortalidade”.

Exatamente como ele, sertanejo universal, Ariano Vilar Suassuna genial.