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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Josué Montello

Chegais a esta Casa, Senhor Cândido Motta Filho, com a vida inteiramente realizada – na ordem particular, na ordem pública e na ordem literária. Em vosso lar, já ouvis a mais doce música, com que Deus dá ao homem uma idéia do canto dos anjos. Quero referir-me à algazarra dos vossos netos. Na ordem pública, alcançastes a culminação da experiência jurídica, na investidura de Ministro do Supremo Tribunal. Na ordem literária, completa-se agora, com esta cerimônia acadêmica, o ciclo da gloriosa ascensão a que vos elevastes pelos degraus de vossos livros, na harmonia de uma existência exemplar, que se ajusta àquele ideal da vida perfeita sonhada por Marco Aurélio e em que a vontade da natureza se converte em nossa própria vontade.

O EXEMPLO DE ALOÍSIO DE CASTRO

Entre os belos ensinamentos de vosso antecessor nesta Academia, não sei se atentastes para a lição sutil por ele deixada em nosso Anuário. No lugar em que devia consignar, em sua notícia biográfica, a data e o local de seu nascimento, mestre Aloísio de Castro escreveu apenas estas palavras, com a sobriedade de seu feitio: “Nascido no Rio de Janeiro.” Sobre a data do seu nascimento, silêncio.

Evidentemente, não queria com isto adotar certo tipo de cronologia feminina que, segundo Coelho Neto, imita a do paganismo em relação a Cristo, porque diminui à medida que avança.

O que Mestre Aloísio de Castro nos proporcionava, com o modelo de sua existência fecunda, era o ensinamento de que não importa o tempo que se viveu, mas a obra que se realizou. E a dele, nos diversos planos em que repartiu a inteligência, a cultura e o espírito público, colocava-o entre as eminências desta Instituição, como orador, como professor, como cientista, como poeta, e ainda como músico, visto que ele também o foi nas horas feriadas, cultivando amorosamente o seu piano.

É a esse mestre de Ciência e Poesia que vindes suceder nesta Casa, Senhor Cândido Motta Filho, e eu quero ver nessa sucessão a linha de afinidades que dá às nossas escolhas uma harmoniosa correspondência entre os ocupantes da mesma Poltrona acadêmica.

Quando batestes pela primeira vez à porta da Academia, o destino se mostrou inclinado a satisfazer-vos a vontade; mas, à última hora, direi melhor: no último instante, mudou de opinião. Assim se explica que, pela diferença de um voto, o nosso companheiro Ivan Lins vos haja precedido nesta Casa. Provavelmente tereis lido, para consolação desse desencontro entre a vossa aspiração e o resultado eleitoral da Academia, estas palavras de Machado de Assis, em Esaú e Jacó: “Não se luta contra o destino: o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos.”

Se a roda da fortuna não vos favoreceu, no primeiro momento, nem por isso vos desaviestes conosco. Louis Guimbad, num pequeno volume de história literária, contou-nos a luta de Victor Hugo, em cabriolets vers l’Académie, nas vezes sucessivas em que se candidatou. A constância do alto poeta é lição que aproveita a todos os candidatos, advertindo-os de que é o jogo das circunstâncias que decide as eleições acadêmicas. Voltar a candidatar-se não diminui ninguém, quando se tem como exemplo o exemplo de Victor Hugo.

Em carta a Joaquim Nabuco, Machado de Assis advertiu-nos que não há desaire algum nas preterições ocasionais desta Casa.

O preterido – acrescentava – não perde nada; ao contrário: fica uma espécie de dívida, por parte da Academia, que não fará parar à porta, esquecido, quem já tiver direito de ocupar cá dentro uma Cadeira.

A IMORTALIDADE E O DESTINO

Era precisamente o vosso caso, Sr. Cândido Motta Filho – o do candidato à altura da Academia, e que não podia ficar esquecido à nossa porta. No entanto, para que esta se vos abrisse, não era de mau aviso deixar que o destino dispusesse os lances de seu jogo, até que vos soasse a hora propícia – aquela em que os fatos acontecem, dando-nos a sensação de que os nossos desejos também amadurecem e caem no momento preciso.

Dir-se-ia que a imortalidade tem igualmente a sua hora nos mistérios deste Mundo.

Em seu discurso de posse, nosso companheiro Viriato Correia, para dar uma idéia de suas lutas de candidato, contou-nos que tinha a cabeça preta quando bateu pela primeira vez à porta da Academia, e só conseguiu entrar com a cabeça branca. É que ele, nas várias vezes em que se candidatou, não teve a intuição exata do momento adequado à sua imortalidade acadêmica. Recolho ao acervo de experiências do mesmo companheiro um episódio que suponho bastante ilustrativo.

Medeiros e Albuquerque, desejando ardentemente que Viriato pertencesse a esta Casa, escreveu, já gravemente enfermo, uma carta ao Barão de Ramiz Galvão, presidente da Academia, para ser lida depois de seu enterro. Nesse documento, o missivista comunicava aos colegas a própria morte e enviava o voto, para o preenchimento da respectiva vaga, em favor do contista maranhense. O Presidente viu na carta um gracejo póstumo e não lhe deu andamento. Resultado: ainda nessa oportunidade, Viriato não conseguiu eleger- se. E por que o Barão extraviara a carta de seu confrade? – indagareis. Em resposta, eu vos peço que redobreis de atenção. Na verdade, Viriato Correia não substituiria nesta Casa o seu amigo Medeiros e Albuquerque. A vaga que lhe estava reservada, à luz da teoria do destino a que aludiu Machado de Assis, era – vede bem – a do próprio Barão de Ramiz Galvão.

Cito-vos agora outro exemplo, este da Academia Francesa. Quando Edmond Rostand se candidatou à Academia, teve como concorrentes Stephen Liegeard e Frédéric Masson. Na Academia Francesa, como sabeis, só podem votar os acadêmicos presentes ao pleito, ao contrário do que ocorre em nossa Academia, onde os ausentes, por sugestão de Joaquim Nabuco, têm direito a voto.

Rostand contava com dois votos abertamente contrários ao seu nome: o de Sully Prudhomme e o de Albert Sorel. Deles não esperava qualquer movimento de simpatia em seu favor.

No dia do pleito, o destino começou a demonstrar a sua preferência pelo mestre de Cirano de Bergerac, excluindo da votação os seus dois mais aguerridos adversários: o primeiro caiu de cama, com um ataque de reumatismo, e o segundo, não pôde sair de casa, com uma doença que prefere as crianças – o sarampo.

E há mais.

Trava-se o pleito, num clima de ansiedade. O quorum é de 18 votos. A certa altura da eleição, Rostand alcança dezesseis votos, contra quatorze obtidos por Masson. A votação se equilibra entre os dois, sem que se possa prever, no desdobrar dos escrutínios, quem sairá vencedor. E é nesse momento que o Acadêmico Paul Deschanel é chamado pelo telefone à Câmara dos Deputados, de que é presidente. Deschanel tem de ir: trata-se de um assunto da maior urgência. E ele deixa o recinto, antes da nova votação. Com a sua retirada, o quorum desce a dezessete votos. Logo a seguir, fere-se novo escrutínio. E Rostand, homem de teatro, alcança nesse momento, por uma intervenção verdadeiramente teatral do destino, os dezessete votos de que necessitava para eleger-se acadêmico.

Aí tendes, Senhor Cândido Motta Filho, dois exemplos ilustres em abono de minha tese. Muitos e muitos eu vos poderia citar, na mesma linha ilustrativa. Contento-me com esses. E concluo, para chegar ao vosso próprio exemplo, que a Academia não derrota ninguém, o candidato mal sucedido é que não soube encontrar a hora de apresentar-se à Academia. Quando concorrestes à sucessão de Afonso Taunay, tudo levava a crer que seria tranqüila a vossa vitória. Mas a Academia, recusando-vos o voto que vos elegeria, vos disse que não. A votação que alcançastes valia por um triunfo. E significava que desejávamos a vossa companhia, embora adiássemos para outra oportunidade a vossa definitiva incorporação a esta Casa. É que a Cadeira que a Providência vos reserva era essa em que vos assenteis agora – a Cadeira que Raimundo Correia fundou, com a sua lira de poeta e a sua toga de magistrado, sob o patronato de outro juiz e poeta, Bernardo Guimarães, e em que depois se sentaram Osvaldo Cruz e Aloísio de Castro, duas glórias da Ciência brasileira.

O PERFEITO ACADÊMICO

Nesta Casa, até o dia de outubro em que levamos Aloísio de Castro à vizinhança de seu pai no campo-santo, para que juntos despertem no dia da grande chamada, era ele o modelo proclamado do perfeito acadêmico. Ninguém o excedia na doce cordialidade de seu convívio. Nem encarnava de modo mais harmonioso as virtudes e qualidades que compõem o padrão de cultura, correção, elegância e urbanidade de nossas figuras exemplares.

A vossa tranqüila escolha para a sucessão de Aloísio de Castro reavivanos a verdade shakespeariana que Machado de Assis colocou no começo de um dos seus contos. Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.

Para suceder ao perfeito acadêmico, na Cadeira fundada por um grande poeta e magistrado, sob a glória de outro magistrado e poeta, é que estáveis destinado, Senhor Cândido Motta Filho, com os vossos lauréis de perfeito escritor e perfeito juiz, que há de ser aqui o companheiro perfeito, na linha de tradição deixada por vosso antecessor.

Estive a cotejar a vossa vida e obra de Aloísio de Castro, e a conclusão a que cheguei, nesse jogo de confrontos, é que vos assemelhais a ele não somente na suavidade do convívio, mas também nas inclinações do espírito, apesar desta dissociação limiar – ser um médico e outro advogado; ele, professor da Faculdade de Medicina; vós, professor da Faculdade de Direito; ele Diretor do Departamento Nacional de Ensino; vós, Ministro do Supremo Tribunal.

Há tempos, houve no Brasil uma Sociedade de Psicanálise. Quem imaginais, minhas senhoras e meus senhores, que haja sido o seu Secretário-Geral? Aloísio de Castro – respondereis. E eu vos direi que não. O Secretário-Geral da Sociedade de Psicanálise, com sede em São Paulo, era o mestre que hoje recebemos na Academia.

Ainda em São Paulo, funda-se uma Sociedade de Psicologia – e sois vós, Senhor Cândido Motta Filho, o seu Presidente.

Ouvi agora, minhas senhoras e meus senhores, esta pequena página em prosa sobre Florença:

Eu tinha, naqueles dias, vivido a velha cidade fundada por Júlio César e havia, não só participado daquele cenário de monumentos e de história, como também do singular espírito que iluminava Florença. Vira, do alto de San Meniato, o Arno silencioso e moreno, entre as alongadas planícies. E na paisagem, cujo colorido se diluíra nos discretos tons do inverno, o campanille de Giotto, a torre do Palazzo Vecchio, a igrejinha franciscana de Santa Croce, o duomo de Santa Maria de Fiore, cuja cúpula milagrosa Brunelleschi construíra. Em tudo se insinuava aquela estranha sociologia demoníaca que configurava Von Martin, como pórtico do Renascimento florentino. A Arte e os negócios confundiam-se no tumulto das ambições e do fanatismo.

Em tudo era, ao mesmo tempo, sutileza e força, ardil e arrogância.

Ante essa imagem de Florença, verdadeiramente antológica no seu primor literário, concluireis que Aloísio de Castro teria dito também em prosa o que já dissera em verso com a sua alma de poeta neste soneto:

De longes terras, da Florença antiga,
Em que sonhei da vida e da arte o sonho,
Comigo vieste: a novo sol te expondo,
Junto da porta que a nós dois abriga...

Como cresce no campo a loura espiga,
Assim cresceste! O azul do céu risonho
Lembra-te a Itália! E ao ver-te, eu me entressonho
Do Arno a correr ouvindo a voz amiga.

Bendita a mão que te plantou, cipreste,
E a saudade do amor que em ti trouxeste!
No dia transitório em que hoje vamos,

Sinto-me eterno em teu altivo porte,
E o verde sempre vivo dos teus ramos
traz-me esperança para além da morte.

E se assim concluístes, incorrestes em equívoco. Porque é de Cândido Motta Filho aquela página em prosa sobre a velha cidade de raízes etruscas, sobre cujas ruas estreitas Dante estendeu a sua sombra pensativa.

Senhor Cândido Motta Filho: a Itália cedo madrugou em vossa consciência, quase a debruçar-se sobre o vosso berço, na figura daquela gorda napolitana, autêntica madona de Rubens, que vos acompanhou na infância e de quem traçastes o perfil maternal, no mais recente de vossos livros, evocando-a à luz enternecida com que Renan confessou a dívida de seu reconhecimento às mulheres solícitas da Bretanha que o ajudaram a caminhar.

Não somente ela, a gorda e alegre Filomena, vos ensinou o caminho da Itália. Defronte de vossa casa, o velho tio Matteu parava de bater o martelo no sapato que remendava para responder ao vosso cumprimento de menino com estas palavras efusivas: Buon giorno, caro!

Com esse velho sapateiro italiano, que era garibaldino e anticlerical e sabia de cor Dante e Stechetti, aprendestes os dois poetas, na madrugada da sua formação literária. Depois, foi a vez do velho Tisi, livreiro do Largo de São Bento, outro que vos levou às Letras italianas, e vos pôs em contato com os livros de Farinelil, de Papini, de Marinelli e de Pirandello.

Datam desse tempo, ainda estudante, os vossos primeiros escritos, inspirados na admiração pelo talento alheio. Num canto, com um livro – eis a legenda de vossa existência estudiosa, sem que tenhais substituído, contudo, o horizonte do mundo pelo horizonte das páginas impressas.

A leitura é uma viagem – a viagem através dos livros. Nessa navegação literária, há o leitor de pequena cabotagem, que se contenta com o bordejar costeiro dos volumes de ameno convívio, e o leitor das grandes travessias de mar alto, que sai do litoral em busca dos largos itinerários, como os antigos mareantes das Sete Partidas do Mundo.

“NOTAS DE UM CONSTANTE LEITOR”

Cedo vos afizestes às grandes travessias, que se chamam Platão, Dante, Shakespeare, Cervantes, sem desprezar, entretanto, a navegação costeira dos mestres menores, e de todas as vossas viagens tivestes o cuidado de ir guardando memória no vosso livro de bordo, que são as Notas de um Constante Leitor.

Quero aqui confessar uma dívida, Senhor Cândido Motta Filho, que não será somente minha, mas sim de muitos brasileiros de meu tempo. Foi na minha província, em São Luís do Maranhão, nos dias em que me iniciava no gosto das Letras, que recolhi nas vossas notas de leitura a carta de navegar dos mestres italianos. O Papini, de L’Uomo Finito, que tão bem traduzistes e explicastes, e o Pirandello, que exaltastes em muitos de vossos trabalhos, eu os conheci, num primeiro contato deslumbrado com os roteiros que me advieram dos vossos entusiasmos.

D’Annunzio, nesses idos da juventude, era um dos ídolos do meu culto e eu ainda recordo a sensação de surpresa que me deixaram na adolescência estas palavras do Poeta, para sempre guardadas na memória: “A noite é onipotente e eterna. Quando eu quero a noite comigo, cerro os dedos e tenho a noite na concha das mãos.”

Na polivalência de vossos pendores intelectuais, há assim a inclinação do espírito científico, que estabelece uma outra linha de concordância com o vosso antecessor na Academia.

O AMOR AO CLÁSSICO

A sedução dos valores clássicos levou Aloísio de Castro à paixão da Itália – a Itália do mundo romano, que lhe deu o encantamento de Virgílio e Horácio, e a Itália do crepúsculo medieval, que lhe abriu caminho à paixão de Dante e Petrarca e lhe trouxe a nostalgia intelectual de um autêntico patrício de Florença extraviado no século XX.

Sempre que as circunstâncias lhe propiciavam uma viagem à Europa, era para as margens do Arno que mestre Aloísio se encaminhava, refazendo o itinerário poético da romaria à Igreja de Santa Croce, onde estão o cenotáfio de Dante e o túmulo de Miguel Ângelo.

De uma dessas romarias, trouxe Aloísio de Castro a muda de um cipreste florentino, que plantou à entrada de seu lar, na Rua D. Mariana, e era de ver-se o enlevo com que o tratava, falando-lhe carinhosamente com a unção do devoto ante a relíquia de seu culto.

E ele, poeta do entardecer, para quem a Poesia e a Medicina tinham em Apolo o mesmo deus romano, afinou um dia o verso pelo compasso do metro antigo e celebrou neste soneto a árvore que nascera conterrânea de Dante.

Os antidanunzianos de vossa preferência, se não tiveram em mim o dom de retirar o ídolo de seu nicho, pelo menos fizeram-me ver, naqueles tempos de iniciação literária, que a Itália, na feição moderna de suas Letras, era mais do que a orgia verbal do Demônio Gabriel. Era Croce, com a nova luz meridional de seu espírito crítico, e era também Pirandello, a olhar comicamente a tragédia da vida e a rir de tudo para não chorar. Se é certo, como lembrou Machado de Assis, que a criança é o pai do homem, ser-me-á permitido afirmar que, em vossa personalidade, Senhor Cândido Motta Filho, a paixão da leitura é um legado da infância.

Embora não houvésseis nascido numa biblioteca, como a personagem de Anatole France, muitas vezes vos serviram de brinquedos os livros da biblioteca paterna. Nesses momentos fostes Pierre Nozière com o seu Plutarco.

Menino ainda, vosso pai vos levou à casa da Rua São Clemente onde morava Rui Barbosa, e ali, em lugar de percorrer as salas e corredores em busca das pequenas coisas que atraem a atenção das crianças, ficastes a olhar a lombada dos livros na cidadela literária de trinta mil volumes, disciplinadamente perfilados à espera do seu comandante. E foi ele quem dali vos quis tirar, pela mão, para que fôsseis olhar as roseiras do jardim.

Rui Barbosa, se podia dar esse conselho, não dispunha, entretanto, da própria lição para ilustrá-lo. Certo, lá fora, nos canteiros em redor da casa, floriam as rosas, mas a verdade é que os olhos do dono, por trás das grossas lentes do pince-nez, se voltavam de preferência para os florilégios literários, no silêncio de sua sala de trabalho.

E foi esse o exemplo que seguistes, meu eminente confrade.

Trocastes as flores pelos florilégios, mas não vos dissociastes da vida com os livros. E foi este o outro exemplo que Rui Barbosa vos proporcionou, avivando o exemplo paterno, que trazíeis no sangue e na consciência.

Aquele homem franzino, que os livros tinham vergado pelo hábito do estudo, soube ter a cabeça mais erguida do Brasil de seu tempo, ilustrando a palavra com a dignidade, a atitude com a coragem pessoal, a cultura com a ação, sem temer o tempo e os temporais na pregação de seu evangelho cívico.

Quando ele passa por São Paulo, conduzindo multidões com a coluna de fogo de seu verbo, tendes quinze anos e sois dos que o seguem. Arma-se um conflito de rua em frente à casa que o hospeda e sois apanhado por uma viatura no entrechoque do povo com a polícia. De perna partida, sois levado para o hospital. E ali, à noite, quem vos aparece? – É o próprio Rui Barbosa.

O LIVRO SOBRE RUI

Essa visita do mestre ao adolescente acentuou em vossa personalidade uma outra direção – a direção no plano político, que vos levaria à meditação dos problema brasileiros e mudaria a cor da tinta de vossa pena de escritor.

Em Rui, esse desconhecido, saldastes na maturidade a dívida da juventude, louvando num belo livro o mestre que moldou em parte o vosso pensamento político e completou vosso pensamento jurídico, que vos adviera das lições e do exemplo paterno.

Antes, havíes publicado, no estudo sobre Alberto Tôrres e o tema de nossa geração, o libelo daquilo que vos parecia o excesso livresco de Rui Barbosa e era mais a impressão de sua livraria que de seus livros, com os quais viestes felizmente a aliar-vos em Rui Barbosa, Esse Desconhecido.

Ouvi agora, minhas senhoras e meus senhores, esta breve página de florilégio literário:

Chegara o onze de outubro de 1901, quando, pela manhã, se cerraram os olhos de meu pai. Logo à casa da Rua Marquês Abrantes acudiu multidão de amigos e discípulos; logo chegou Rui Barbosa para abençoar o morto no derradeiro sono. Abençoou-o com lágrimas, porque, depois de contemplar a formosura do rosto que empalidecera se retirou para o meu quarto de estudante, a sós comigo, sentou-se à beira do meu leito e aí, primeira e única vez, o vi cobrir o rosto com as mãos e chorar de verdade, chorar o bem perdido. Eu era moço, me edifiquei com a cena, ao ver que aquele grande homem, tão ensinado na experiência da vida e das coisas, nas suas formas inconstantes, ainda conservava a grandeza de saber chorar.

Direis que ouvistes, nessa imagem pateticamente humana de Rui, uma página de Cândido Motta Filho. E eu vos direi que ouvistes uma página de Aloísio de Castro, numa nova concordância entre o empossado desta noite e o seu antecessor nas glórias da Academia.

À semelhança de Aloísio de Castro, jamais vos afastastes um só dia do modelo paterno. Dizia Stendhal que cada ser humano deve fazer uma boa provisão de máximas ao traçar o seu roteiro nas estradas deste mundo. Mais importante que essa provisão de sabedoria popular é a escolha de um modelo – o modelo que desejamos imitar. De todos os modelos, o paterno, além de ser o primeiro com que nos defrontamos, é o que nunca nos abandona, mesmo quando supomos estar distanciados dele. Se não é a nossa fisionomia, é o nosso gesto; se não é a nossa voz, é a nossa conduta; se não é o nosso pensamento meditado, é a nossa reação instantânea em face da vida. E à medida que vamos vivendo, mais nos aproximamos desse modelo matinal, copiando-o por instinto, o mais das vezes sem deliberada intenção, de tal modo que, um belo dia, ao compor o laço da gravata ou sugerir uma providência, dizemos conosco, na alegria de um reencontro: “Era assim que fazia meu pai.”

Lente de Direito Penal na Faculdade de Direito de São Paulo, escritor de idéias liberais, grande advogado, o Dr. Cândido Motta tinha também o pendor para a Medicina, como Francisco de Castro. Nesta hora, nessa mesma Poltrona, ele está convosco, na vossa emoção, nas vossas lembranças, no vosso modo de sentar. Talvez seja dele essa mão canhota e esse feitio tímido. Portanto, poderiam sair de vossa pena, trazidos por idêntica emoção, os versos em que o saudoso Aloísio de Castro, ao cantar a saudade de seu pai, reconhecia que este não se extinguira na morte. E daí este fecho de um de seus mais belos sonetos:

Ambos nós renascemos, Pai perfeito:
Pois se ainda em mim há coração que sente,
És tu que pulsas dentro do meu peito!

A SEMANA DE ARTE MODERNA

Entretanto, devo assinalar uma dissociação importante que vos separa de Aloísio de Castro: a atitude de rebeldia com que participastes da Semana de Arte Moderna. Mestre Aloísio jamais anuiria em divorciar-se das formas clássicas e do rigor parnasiano. Queria a vida como uma disciplina.

Uma noite, de volta de uma de suas pregações em favor dos escravos, no Teatro Santa Isabel, Joaquim Nabuco resumiu o efeito do seu discurso nesta palavra incisiva na folha de seu diário: “Pateado”. Dizia o presidente Washington Luís que a vaia é o aplauso dos que não gostam. Entre esta definição e aquele exemplo, podeis colocar a estrondosa pateada com que fostes acolhido, na Semana de Arte Moderna, ao tentar proferir uma conferência sobre o problema da cor no Impressionismo. Essa vaia gloriosa, parenta da que Nabuco recebeu no Teatro Santa Isabel, é um título a mais para a vossa presença nesta Casa e neste mesmo salão, Senhor Cândido Motta Filho.

Os historiadores do Modernismo, no período polêmico de 1924, não podem esquecer estas três contribuições da Academia: o campo de batalha, o comandante da revolta e, por fim, a aceitação do conflito.

O campo de batalha, como sabeis, foi este salão. A moldura, esta mesma, conforme verifiquei há tempos por uma fotografia da peleja. A tribuna tinha uma colocação propícia: não era ali, de frente para a mesa; era aqui perto, de costas para o Presidente, que por sinal era surdo. De modo que Graça Aranha, comandando os seus jovens e bravos insurretos, corria o risco de pregar aos convertidos, queimando à-toa a sua munição. E foi realmente o que se deu, no correr de sua conferência sobre o “Espírito Moderno”. Afora uma ou outra manifestação de aplauso ou protesto, nos trechos em que o orador troou bordoadas na Corporação, tudo fazia crer que a sessão terminaria sem tumulto. E teria sido um desastre, para a causa da Literatura moderna, se nenhum sarilho acontecesse.

Diz a sabedoria popular que não brigam dois quando um não quer. Coelho Neto, ao fim da conferência de seu confrade, teve o gesto heróico, que faltava à propaganda do Modernismo: aceitou o desafio de Graça Aranha,entrando na briga em defesa da Academia E com isto, minhas senhoras e meus senhores, este salão pegou fogo. Graça Aranha saiu daqui carregado. Coelho Neto, também.

Considero o protesto de Coelho Neto, para a implantação do Modernismo, mais importante que a conferência de Graça Aranha. Foi ele quem criou a polêmica. Sem a sua reação bravia, a conferência do outro maranhense não teria a repercussão que teve. E esta repercussão era essencial à criação do movimento de curiosidade em torno da insurreição literária que o mestre de Canaã chefiava com a juventude de seu espírito novidadeiro.

O PROTESTO DE COELHO NETO

A Academia, Senhor Cândido Motta Filho, cometeu evidentemente um erro fecundo, quando protestou pela palavra de Coelho Neto. O protesto não participa de sua condição. Ela conta com o mais tenaz dos aliados – o tempo. E sabe que, sendo perene, tem vida bastante para ver a novidade de hoje convertida na velhice de amanhã. Não precisa ter pressa. É como Renan, no seu ceticismo risonho – coloca-se acima das divergências, e espera.

Este mesmo salão, varrido pelo tumulto da batalha modernista, iluminou- se depois, como nesta noite de festa literária, para receber acolhedoramente os modernistas. E aqui estão Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Alceu Amoroso Lima, Ribeiro Couto, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida. A originalidade da Academia, como instituição conservadora, é que ela aceita os revolucionários, sem exigir que reneguem a revolução.

A rebelião modernista constitui em vossa vida, Senhor Cândido Motta Filho, o encontro de duas vertentes: a vertente da vocação literária e a vertente da vocação política.

A vocação literária confinar-vos-ia ao gosto da escrita e da leitura, como um perfeito sibarita da cidade dos livros, se a vocação política, que também trazeis no sangue, não vos impelisse a trocar o silêncio da biblioteca pelo ruído da rua, querendo ser alguém na multidão.

O Modernismo, que começava a aparecer, conciliou o escritor e o político, e daí a pateada gloriosa que não vos deixou falar.

A verdade, entretanto, é que ele, como biógrafo, não contou jamais a vida dos que escreveram pouco. Pelo contrário, seus temas têm sido Chateaubriand, Dickens, George Sand, Proust, Victor Hugo, Voltaire, Alexandre Dumas: toda uma constelação gloriosa de mestres políticos, cada um deles significando por si uma Literatura.

Sem considerar a densidade dos vossos lucros, Senhor Cândido Motta Filho, um malicioso poderia dizer que a vossa bagagem estritamente literária é de quem viaja de avião e não quer pagar excesso de peso.

Dos quatorze livros que publicastes, somente três se enquadraram, com rigor, na categoria das obras literárias: O Romantismo, O Caminho das Três Agonias e Notas de um Constante Leitor. Os demais se distribuem no campo do ensaio político e do estudo jurídico, alguns da maior importância, e eulembro, a propósito, para o destaque de um louvor, a biografia de Bernardino Campos, em Uma Grande Vida, o ensaio sobre Alberto Tôrres e o Tema de Nossa Geração e mais a Introdução à Política Moderna.

No entanto, como resultado de mais de quarenta anos de operosidade contínua, tendes cabedal de sobra para enfileirar nas estantes meia centena de ensaios e estudos críticos, no plano puramente literário.

Não vos acuso, portanto, de exercer um controle demasiadamente severo de vossa natalidade literária.

Acuso-vos de não trazer ao registro civil, sob a forma de livro, os vossos artigos de jornal.

Logo que vos candidatastes, um amigo comum, o editor José de Barros Martins, perguntou-me o que podia fazer em prol de vosso triunfo.

Respondi:
– Apressando agora mesmo a publicação do livro dele.

Assim nasceu o volume recente das Notas de um Constante Leitor, onde reunistes ao acaso, na precipitação de quem atira ao fundo da maleta de viagem a roupa que encontrava ao alcance da mão, alguns dos mais belos estudos que eu tenho ultimamente lido e que bastariam para justificar esta noite triunfal.

Lá está, como exemplo, numa página de reminiscências, a melhor definição de Capistrano de Abreu: “Não foi um filósofo da História, nem foi historiador completo. Mas foi um ponto de vista da História, uma História como um rio volumoso que refletia em suas águas as regiões por onde passava.”

TESTEMUNHA DO NOSSO TEMPO

Sois, nas vossas próprias palavras, uma testemunha de nosso tempo, e refletis esse testemunho na limpidez de vossos ensaios. E tendes a sabedoria das frases felizes, como síntese de vossa meditação.

Lembro uma dessas frases ao acaso da memória. A personalidade do romancista de Canaã, que analisastes de relance nas Notas de Um Constante Leitor, cabe inteira nestas palavras de vosso estudo: “Graça Aranha era demasiadamente esteta para ser renovador.”

Numa carta a Mademoiselle Leroyer de Chantepie, afirmou Flaubert que as crianças lêem para se distrair e os ambiciosos para se instruir. Mas adiantou existir uma outra classe de leitores: os que lêem para viver. É o vosso caso, Senhor Cândido Motta Filho. A leitura é uma condição de vosso espírito, dela necessitais como a essência da vossa existência.

As literaturas antigas e modernas não têm segredos para vossa curiosidade.Mas não sois o leitor itinerante, que atravessa os livros de afogadilho.Sois o amoroso da leitura, com o gosto do regresso às paisagens literárias que nos encantaram. E daí, quando ergueis o olhar, de volta dos panoramas intelectuais em que se acham Unamuno, Ortega y Gasset, Nietzsche, Renan, Croce, Spengler, Shakespeare, Hegel, Pirandello, Machado de Assis, Claudel, Gide, Rui Barbosa, as vossas admiráveis meditações marginais, que vos colocam entre as grandes figuras do moderno ensaio brasileiro.

Tendes um compromisso a assumir com esta Casa: trazer do jornal para o livro, na unidade de toda uma vida consagrada ao gosto das Letras e das idéias, o vasto cabedal disperso, que a vossa modéstia converteu na luz por baixo do alqueire, da parábola das escrituras, mas que a Academia agora reclama, para o esplendor das suas novas glórias.

No dia de hoje, há sessenta e três anos, nasceu a Academia. Esta noite é, de si mesma, no calendário acadêmico, uma noite de apoteose. E traz consigo um motivo a mais de memória em nossas efemérides.

É esta a primeira vez que a Academia Brasileira abre os seus salões em sessão solene no Estado da Guanabara. E é expressivo que o faça para acolher um homem de Piratininga.

Considero altamente significativa esta circunstância, sinal de que deslocada para o Planalto Central a capital do País, aqui permanece a capital de nossa cultura literária, simbolizada nesta Instituição.

A fundação de Brasília, como sede administrativa e política da República, fez crescer as responsabilidades da Academia, na guarda de suas tradições intelectuais. Para que a Casa de Machado de Assis não perca a sua fisionomia nacional é preciso que não se interrompa a confluência de valores que, partindo de vários pontos da Federação, aqui por fim se encontram, identificados pela paixão das Letras na cidade que deu ao Brasil o seu mais perfeito escritor e o fundador desta Academia.

Vindes de São Paulo, Senhor Cândido Motta Filho, e nos trazeis com a vossa presença o testemunho de que pensais assim.

Na carta em que, a 11 de agosto de 1958, me confessastes, com uma ponta de diluída mágoa, a tristeza de vos ter faltado um voto para a vitória na vossa primeira candidatura a esta Casa, pusestes estas palavras, como fecho epistolar: “Como no final de Hamlet, ao som dos clarins de sua pompa fúnebre, digo: o resto é silêncio.”

Silêncio que se alongou, digo-vos eu agora, para que melhor se ouvissem, na sabedoria com que o destino constrói os seus caminhos – os aplausos desta consagração.

20/7/1960