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Discurso de posse

O imoderado Saint Just, que pretendia defender as virtudes da inflexibilidade, nas tormentas da Revolução Francesa, afirmava, sem preocupação de paradoxo, que só a indulgência é feroz.

Bem sei, principalmente como jurista e magistrado, que há demasias nesta afirmativa. Chego, porém, a compreendê-la ao aproximar-me desta tribuna.

Germinada, agora, na inconfundível delicadeza patrícia, que é a vossa delicadeza, teve conseqüências terríveis nas agonias das minhas dúvidas. Acostumado a suportar, virilmente, decepções e derrotas, sinto-me perturbado quando a vitória é uma surpresa no destino, uma provocação à minha humildade ou, como neste acontecer, prêmio que me concedestes, quando não quisestes resistir aos meus empenhos de participar do mais alto cenáculo das Letras nacionais.

Quantas perguntas fiz a mim mesmo, para colocar uma ponte entre a minha pretensão e a vossa generosidade! Encontrei, entre as delícias do século XVIII, o discurso acadêmico em que Voltaire explica que a sua Academia se originou de uma reunião de amigos; em nossos dias, no meio dos disparates de Picasso, conhecedor genial de todos os segredos das artes plásticas, aquele que manda em primeiro lugar, escolher e, depois, explicar o escolhido.

Alongo meus olhos no roteiro das vidas que sucedo, sob o patrocínio de Bernardo Guimarães, e adquiro a certeza, com os compromissos que assumo, de que a Academia acolhe em mim, muito mais do que um valor pessoal, alguém que pode ser considerado fiel à sua geração, aos temas de seu tempo, e que procurou refletir em sua obra quase cotidiana o esforço comum pela adequação da cultura brasileira às exigências do mundo moderno.

Disse Aloísio de Castro, através de sua modéstia inexplicável, o que reitero aqui por amor à verdade: “Podem as circunstâncias o que noutra pode o merecimento.”

De qualquer forma, respondem à vossa acolhida muitas vozes, que me acompanham, daqueles que, na ternura da vida provinciana, me ajudaram a formar o espírito, pelo sangue e pelo estudo; daqueles que me forneceram os primeiros livros, como meu avô, mestre severo de latim; ou, como meu pai, que deixava as preocupações políticas, para ler em voz alta os romances de Alencar e os versos de Rostand; ou dos professores da velha e inesquecível Faculdade de Direito do Largo de São Francisco onde, desde os dias assustados das primeiras aulas, me vi cercado pelas evocações de Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves, Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa; por fim, dos que foram meus companheiros no movimento de renovação de 1822, quando deixávamos as noites de conjura, na neblina de Piratininga, para ir escandalizar, no Teatro Municipal, iluminado e repleto, uma vida literária e artística até então amortecida.

Há vários anos, ao receber-me na Academia de Letras da minha província natal, Cassiano Ricardo, imenso poeta com quem venho, dentro de inalterável amizade, olhar as surpresas do século, acentuou que eu ali estava como representante dessa insubordinada geração de 1922.

No empenho de salvaguardar os valores da cultura, a Academia Brasileira de Letras tem, sem dúvida, compromissos com a posição acolhedora, mas discreta, acentuada por Ernest Renan, quando a viu sem preconceitos e restrições, como um tecelão paciente a harmonizar o passado tranqüilo com o presente sempre inquieto.

Tão renovadora quanto conservadora, porque sempre renovou para conservar, fez do mito da imortalidade um culto singular a juventude da vida.

CONSERVAR E RENOVAR

Na festa ritual de acolhimento dos novos acadêmicos, a relembrar, em todos os transes, o desnorteante traumatismo dos nascimentos, a Academia solidifica, como um dogma, a tarefa de reviver o passado, de rememorar os esquecidos, de entrelaçar, no plano da palpitante atualidade, com os mesmos direitos à vida, os vivos e os mortos.

Pois haverá maior soma de mocidade do que a que se condensa na resistência acadêmica ao esquecimento e à morte?

Pois não patenteia as comemorações que se repetem o firme propósito de um recomeçar, que é, na verdade, um renascer?

E não se torna a Academia, de fato, uma Academia de renascidos? Com essa fisionomia se desdobra em alimentar a atualidade com as energias pretéritas, pela aproximação das distâncias e alçando metas mais largas pois, em países como o nosso, exerce uma influência providencial que longe estava de ser prevista pelo precavido Richelieu, para a Academia Francesa.

O Brasil, como todos os países do novo mundo, construídos por transferência de civilização, no ritmo desigual das aventuras de conquista, prefira o “amanhã” ao “ontem”, o que vai ser ao que já foi. Vive, em conseqüência disso, entre esquecimento e sonhos, de modo a fazer perigar a própria solidez de suas construções. A cada passo, vemos confirmar-se o quadro da terra instável da Amazônia, esboçado em página inesquecível por Euclides da Cunha e surgir um tipo de vida descomprometida com toda e qualquer tradição. Disse, em uma de suas obras, Antônio Sardinha, que, em nossa época, os verdadeiros revolucionários são os conservadores. No Brasil, nessa pressa americana de viver, nesse alvoroço pelo dia seguinte, nesse andar para a frente, sem dar conta do que ficou para trás –, conservar é revolucionar.

Entre os excessos dos povos que ruminam, na esterilidade de suas provações atuais, a ensombrada vida dos tempos passados e a nossa demasiadamente deles distanciada apresta-se à missão orgânica da cultura que as academias ostentam, pelo passado e pelo presente.

BERNARDO GUIMARÃES E RAIMUNDO CORREIA

Pois é o que está acontecendo. Bernardo Guimarães foi um ponto de partida. Sua figura, nas distâncias do Romantismo, fixa um rumo no terreno a percorrer. É ele a fonte inspiradora que vai conduzir, Raimundo Correia com certos e irrenunciáveis compromissos.

Entre Bernardo e Raimundo são tão grandes as diferenças que não há cotejo possível. Em duas épocas diversas eles representam duas sensibilidades diferentes.

Os que se reuniam por volta de 1880, preocupados com a nova encenação literária que o Parnasianismo oferecia, eram justificadamente antagônicos aos que se congregavam na fé inspirada pela libertação romântica, após os sucessos de 1830. Os primeiros visualizavam uma Arte acima das paixões cotidianas e invocavam a serenidade helênica, ao passo que os outros acreditavam que todas as paixões são fecundas e, por isso, criam na vitória do sentimento. Que veria, pois, Bernardo Guimarães, que pudesse ser visto com os olhos de Raimundo Correia? Contudo, este que trabalhava na feitura do verso e recebia, como definitivas, as lições dos que ainda, em 1860, tinham encontrado o termo “parnasiano” em nome da impessoalidade da Arte possuía uma outra visão do cosmo literário.

É bem certo que o Parnasianismo brasileiro tem suas características e nele os poetas conservam um certo gosto romântico. Raimundo Correia foi um grande sentimental: Sr. Raimundo! como chamou Afrânio Peixoto. Era um eterno preocupado com o comportamento humano. Quem conhece o poeta que ele foi, convencido de que o cuidado da forma é o processo exato para alcançar os dados essenciais da Poesia não encontra, de pronto, as razões pelas quais foi procurar Bernardo Guimarães para patrono. Ao considerar-se esse aspecto, ocorre-me aquele que pode parecer capricho feminino ou mistério da Academia.

Prefiro, entretanto, não ver nisso, nem capricho, nem mistério, senão um resultado da própria sociologia cultural: a Academia no esforço persistente de manter, através da diversidade das expressões literárias, a unidade saudável da Literatura nacional.

É por esse veio que se insinuam os motivos que levaram Raimundo a voltar-se para o desabusado romântico, que foi o autor de Jupira e de A Escrava Isaura.

Há, portanto, nessa escolha, uma fé patronímica, um apelo à inspiração das forças diferentes do passado, que se refazem tempo afora na marcha de uma procissão invisível.

UM JUIZ BOÊMIO E POETA

É certo que Raimundo Correia, juiz e poeta, poderia inclinar-se pelo juiz escritor. Mas Bernardo Guimarães foi juiz discutido. Era um boêmio. Couto Magalhães, ao querer hospedar-se em sua casa em Catalão, viu que isso não era possível, pela desordem e falta de acomodação, pois não encontra ali sequer moringa e cuia.

De uma feita, Bernardo Guimarães, como juiz, manda abrir as portas da cadeia, para soltar os presos, após um julgamento simulado, o que lhe valeu ruidoso processo!

Esse mineiro de quatro costados, imaginoso e trêfego, ao contrário de muitos de seus companheiros de Romantismo, era um guloso das coisas da vida espontânea. Se duvidava dos valores, se punha de reserva as convenções sociais, buscava na Natureza, sem afetação, uma amiga cordial. Estudante endiabrado e boêmio em São Paulo, assim se mostra em nome dos direitos da Natureza, que não se confundem com os direitos naturais do homem.

Como a maioria dos românticos, era um desleixado, não raro, um desabrido. Mas era poeta e poeta é que satisfaz a Raimundo Correia por sua imaginação, por sua riqueza plástica e sua visível preocupação de tirar, pela métrica, pela música e pelo uso dos termos, os maiores efeitos poéticos.

Percebeu-lhe a evolução, comparando os Cantos da Solidão e a Inspiração da Tarde com as poesias da última fase, reunidas em Novas Poesias e em Folha de Outono. Observou suas leituras, as influências da Escola Mineira, de Garret e de Gonçalves Dias.

Porque Bernardo Guimarães, desde que deixou o Planalto de Piratininga e se afundou nos segredos sertanejos, curioso de ver e sentir de perto a Natureza sem contaminações, quis realizar uma das mais almejadas aspirações românticas. Pôs-se a escutar o sussurro do arvoredo, a contemplar o verde negro das selvas, e a sentir com enlevo as solidões formosas da terra. Não foi um solitário à maneira de Álvares de Azevedo, que procura isolar-se na convivência das cidades, nem aceitou a Natureza com a religiosidade de Fagundes Varela. Mas nela ingressa, como quem regressa a sua casa, ao seu lar, à sua Pátria autêntica.

Trazendo nos lábios o que acontece no sertão sem acontecimentos, vai apurando, com o correr dos anos, seu conhecimento da paisagem humana, que distribui pelas páginas de O Seminarista ou de Ermitão de Muquem.

Aí o prosador e poeta se encontram. E a inquietação que o agita o situa nos planos de seus romances e narrativas, ora na Província do Rio, ora no Oeste de Minas e no Sul de Goiás. Assim amplia seu universo psicológico, tumultuário e inconseqüente, quando deixa o realismo perder-se nos caprichos da imaginação – aventureiros, garimpeiros, escravos, padres, fazendeiros, um desfilar de tipos interessantíssimos na configuração e no comportamento.

RAIMUNDO CORREIA E OSVALDO CRUZ

Se há porém diferenças enormes entre Bernardo Guimarães e Raimundo Correia, já não podemos falar em diferenças entre Raimundo e seu sucessor, o sanitárista Osvaldo Cruz. Não é este prosador, poeta parnasiano ou romântico, mas um cientista que põe sua Ciência a serviço dos homens da sociedade e do seu País. Acolhe-o a Academia, como quem conquista um valor raro, porque há uma aproximação natural entre poetas e sábios.

Raimundo Correia acreditava nas virtudes do espírito e na fragilidade dos homens. Estes se curvam ao vento dos acontecimentos como caniços pensantes. Vivem de sua fragilidade, porque viver é, para Raimundo, um exercício constante de sofrimento. O plenilúnio, para ele, é um reflexo sentimental da miséria humana que formula, incessantemente, os paradoxos da existência. O seu fim dramático parecia estar escrito na fragilidade de seu viver, desfeito na surpresa de um desastre.

Osvaldo Cruz, entretanto, homem convicto da eficácia da lógica dos sólidos, era homem de ação, criador de cenários. Nos trabalhos de pesquisa, na luta contra as doenças, no lidar com as desconfianças, malícias e preconceitos – tinha a alma dos grandes lutadores. A cidade do Rio de Janeiro era uma antes dele, ficou sendo outra depois dele. Bem podia, portanto, como disse Aloísio de Castro “cingir à cabeça douta o louro sagrado e a coroa dos poetas”.

Pelo fato de ser homem de ciência, e talvez, mesmo, por ter essas duas vocações, foi grande conhecedor da natureza humana. Assim, pois, com todos os dotes para ver aquilo que enchia de esperanças e desesperanças os versos de Raimundo Correia. Compreende-os, em seus motivos, ao nascerem de uma alma delicada, transportando para a construção parnasiana os últimos acordes do Romantismo.

Dotado de energia realizadora, podia, por isso mesmo, admirar nas Poesias de Raimundo a emocionante voz do queixume humano.

O poeta que compusera o “Mal Secreto” e “As Pombas” era o seu oposto, porque via no homem o pobre homem numa luta sem objetivos entre a piedade e a inveja, e que fez da Ciência o pretexto para mais uma desilusão. Nunca se deixaria Osvaldo Cruz, pela riqueza de seu temperamento, embotar pelas abstrações científicas ou por aquilo que alguém denominou desumanização da Medicina. E mesmo, com os sofrimentos que sofreu, com os desapontamentos que teve, foi uma objeção viva a essa humanidade desamparada, destituída de esperanças, dos versos de Raimundo Correia.

Conhecer Osvaldo Cruz pelas vitórias de sua sabedoria, pela sua obra de pertinácia e heroísmo, de estudos sem canseiras, de devoção imaculada, de inacreditáveis sacrifícios é imaginá-lo a ler, como realmente lera, emocionado, os versos de Raimundo Correia; é assistir ao encontro de duas eminências da vida nacional, só possível por um critério que as Academias podem ter.

OSVALDO CRUZ E ALOÍSIO DE CASTRO

Aloísio de Castro, ao saber de sua escolha, procurou, numa reação espontânea de sua sensibilidade, justificá-la mais pelas circunstâncias do que pelos seus méritos, muito embora eles já fossem reconhecidos e proclamados. É que, apesar de médico, como Osvaldo Cruz, tinha diferente visão das coisas, da vida e dos homens.

Desnecessário, portanto, colocá-los em termos de comparação, mas ficaria bem repetir que os dois médicos, dois estudiosos da Ciência do homem viram, realmente, o mundo cada um a seu modo. Se Aloísio de Castro dedicou-se à Ciência, não deixou de ser professor claro e persuasivo e um encantado com as magias da Arte.

Osvaldo Cruz era um cientista que punha todas as suas esperanças na Ciência, para solução dos problemas da existência e da coexistência. Para Aloísio de Castro, porém só a Ciência não basta, pois há um momento em que só a Arte soluciona os problemas da vida.

Eis aí até onde vai o dom magnífico da confiança acadêmica que chega a ter, muitas vezes, a aparência de uma desorientadora extravagância.

Ainda guardo, senhores acadêmicos, a impressão que recebi ao ler o discurso de posse na Academia Francesa pronunciado por Jean Cocteau que, em sua insubmissão literária, se imaginou equilibrista de circo, no tope de uma coluna de cadeiras, de diferentes tamanhos e estilos. Mas esse equilibrio não é uma habilidade do discutido jongleur das Letras francesas; provém, sem equívocos, do próprio gênico acadêmico, no seu esforço pela construção da consciência literária.

O equlíbrio se impõe apesar da resistência dos contrários e dos antagonismos sem que para ele seja necessária a habilidade dos equilibristas. A Academia é um painel primitivo, sem a preocupação de perspectivas. Nela não há distâncias maiores e menores com figuras mais diluídas ou mais desenhadas.

Ao lado dos contemporâneos de Aloísio de Castro, de Osvaldo Cruz , estão Raimundo Correia e Bernardo Guimarães. E, no mesmo plano, como se todos se situassem na mesma época aqueles que iniciaram no País que alvorecia os cânticos primeiros da vida brasileira.

Ninguém teve concepção mais exata da Academia que Aloísio de Castro. Pode-se dizer que foi acadêmico perfeito e acabado. E o foi mesmo antes de entrar para a Academia.

O professor admirável, cujas aulas magistrais tantas vezes freqüentei embevecido, era assim um acadêmico por direito de sangue.

Cresceu numa atmosfera cultural, no enlevo pelo pai, homem de letra da melhor cepa e professor dos mais exímios. A vocação, que lhe vinha da alma, era estimulada pelo meio que o cercava.

Desde criança, as figuras literárias de projeção lhe eram familiares. Muito cedo começou a respirar nas tertúlias intelectuais e viver na República das Letras.

Assim, antes de alcançar a idade do sonho e das aventuras sentimentais, já levava a sério o fato literário.

Quando se candidatou à vaga de Raimundo Correia, passou momentos de dúvidas, curtidos no mais íntimo de sua consciência. Animado por amigos e discípulos, procurou a um deles, que lhe disse representar sua presença na Academia a continuidade ao culto de Francisco de Castro. Foi quanto bastou. Ascendendo, na timidez de seus gestos, mais por esse motivo, depois justificou neste plenário, com elegância e humildade, as razões de sua vitória. Eis por que, no discurso de posse, ocorre-lhe lembrar a figura do Pai ilustre.

Pois, a esse tempo, Aloísio de Castro já era uma das mais lídimas afirmações da cultura brasileira. Seus méritos, como interno de Francisco de Castro e, depois, de Miguel Couto, grangearam-lhe um prêmio de viagem. Redobrara sua dedicação nos estudos, certo que honraria um compromisso que assumira para com a memória do Pai, cuja morte inesperada em 1901 lhe abrira uma ferida incurável. Em 1910, após um curso que marcou época, era nomeado professor catedrático de Patologia Médica e, em 1915, Diretor da Faculdade de Medicina. Possuía já uma obra literária conhecida e louvada.

Foi assim, o que foi – além de professor, Diretor do Departamento Nacional do Ensino, membro da Academia Nacional de Medicina e da Comissão de Cooperação Intelectual da Liga das Nações, membro de honra do Instituto Brasileiro de História da Medicina da Academia Pontifícia das Ciências, professor honorário das Faculdades de Medicina de Montevidéu.

O FILHO EXEMPLAR

A extraordinária veneração filial não se recolheu, um só instante, em toda a sua vida. Até morrer, fez questão de ser sempre o filho de Francisco de Castro. Sem o Pai ao lado, nas transfigurações da saudade, sentia-se na solidão, como uma criança perdida. Era a autoridade paterna, sua firmeza moral, sua bondade, sua sabedoria, que lhe serviam de guia.

Por isso mesmo, para ele, as gerações não colidem, mas integram desentendimento humano. Assinalando o que nos separa dos racionalistas e empíricos do Século XVIII, fez uma exposição de suas idéias, para explicar que o homem sempre compreende o homem.

Para Aloísio de Castro serviram as lições de filosofia aristocrática de Ortega y Gasset. Principalmente quando este, ao estudar o significativo das circunstâncias, sustenta que em todo presente coexistem, pela lei da contaminação, três gerações: a dos jovens, a dos modernos e a dos velhos, acrescentando, com o esplendor de seu pensar, que isso significa abranger a atualidade histórica, em rigor, três tempos distintos, três “hojes” diferentes, que vivem alojados no presente.

Por essa solidariedade feita de espontâneas inclinações dos moços dos modernos e dos velhos – é que a vitória do humano sobre o desumano da liberdade, sobre todas as escravidões se realiza com a ostensiva e impenitente colaboração dos trabalhadores intelectuais, que encontram na Academia uma resguardada trincheira.

Eis por que o tumulto contemporâneo, em ponto mais vasto do que aquele, visto no Renascimento, por Erasmo de Rotterdam, haveria de ceder ao império da natureza humana.

A sensibilidade requintada de Aloísio de Castro afastava, de tal modo, os conflitos, que afinal não lhe pareciam existir. Era médico mas não precisa tomar o pulso do homem atual para verificar uma vida, como toda vida humana em todos os seus tempos. Sentia-se demasiadamente no século XIX para concordar com Franz Alexander, quando disse que o mundo está a reclamar o império da psiquiatria, ou como o Conde Keizerling, quando afirmou que, originariamente a inteligência é um negócio subalterno.

O ESTÍMULO DE MACHADO DE ASSIS

Através do Pai, Aloísio de Castro recebeu o carinho e o estímulo de Machado de Assis. “Foi um dia”, recorda ele,que conheci o mestre de nossa geração literária, quando, menino de colégio,entrei com meu Pai na Livraria Garnier. Era uma casa velha e escura, cujo assoalho gretado tremia aos meus pés. A um canto folheava livros certo homem de grande aspecto a quem o Dr. Francisco de Castro logo se dirigiu com significações de estima. Não sabia quem era ele, mas recordo-me que lhe beijei a mão, ou porque adivinhasse que agradaria à vontade paterna, ou porque já nos mais verdes dos anos desponte, às vezes, o instinto das venerações.E ao avivar a posse de Francisco de Castro à direção da Faculdade de Medicina, evoca o diálogo com Machado: “Logo falamos de outras coisas,das casas do vetusto quarteirão que cruzávamos cheio de reminiscências coloniais.Como eu as taxasse de desgraciosas e tristes, corrigiu-me brandamente:‘São feias, são, mas são velhas.’”

O HÓSPEDE RUI BARBOSA

Com seu Pai, aproximou-se de Rui Barbosa e principalmente daquilo a que chamou a “beleza de seu gênio”. “Vão precisamente trinta anos”, relembra Aloísio de Castro, mas eu diria ontem. Bem me lembro que no dia imediato à declaração da revolta eu era meninote, meu Pai me tomou à parte, recomendando-me silêncio,porque se ia hospedar em casa um doente, que havia de vir de Minas. Fez-me espécie o aviso, porque eu me havia em conta de diabrete. O doente veio à noite mas eu o não vi. O que vi, no dia seguinte, muito de manhã “o que é que escapa aos meninos?” foi saírem juntos de casa, em carro que rolou célere,Rui Barbosa e Francisco de Castro. Quando meu pai regressou, havia deixado a salvo, na Legação do Chile, então à Rua D. Luíza, o seu grande amigo, que dali depois se embarcou para o Rio da Prata.

E comenta, como um cultor da malícia de France: “Não sei o que disse então meu Pai, mas foi como se dissera que a Medicina era grande coisa quando operava essas curas repentinas da noite para o dia.” Mais tarde, diz, depois de recordar-lhe as virtudes.

Concedei-me, contudo, que ao finalizar esta operação eu atravesse de novo os portais do Templo, onde vivi a minha mocidade para ali buscar a serena imagem de meu Pai, que hoje me reaparece entre as sagradas recordações.

Eis que estou a vê-lo na suavidade do gesto como aquele dia de meus dezoito anos quando na sua enfermaria do Hospital da Misericórdia, sendo eu aluno interno de sua clínica, o seguia, ouvido-lhe a lição. Ao retirar-se meu pai, finda a preleção, eu o despedira, beijando-lhe a mão e a fronte e era, como se me dissesse uma prece muda, afervorada de amor: – “Oh Pai, empresta-me teu coração, para que eu seja como és.

Para ele, a suprema felicidade seria essa de ouvir seu coração batendo, como se fosse o coração paterno. Sem essa sublime identificação, não sabia, de nenhum modo viver.

Foi, talvez, por isso, que o seu saber, sempre acolhedor, pusera nessa parte, em reserva, as conclusões de Freud. A rivalidade entre filhos e pais era extraída do inferno e não da verdade. Foi a impressão que me deu quando lhe expus algumas observações que eu audaciosamente lhe fizera sobre o Complexo de Édipo e sua sinceridade era tão espontânea tão grande, que não agradaria nunca ler ou ouvir o que acontecera a Baudelaire ou Maupassant e principalmente em nossos dias, a Kafka, com seus desagradáveis conflitos com o Pai.

O POETA ALOÍSIO DE CASTRO

Quando Aloísio de Castro começou a fazer versos, teve em conta as grandes linhas oferecidas pelos mestres. Lia e relia os maiores poetas da França e da Itália. Raimundo Correia era uma de suas leituras prediletas.

Percebia claramente o drama da transfiguração de Raimundo, ao procurar fugir da Literatura pessoal. Com sua concepção musical da vida, aborreciamlhe as expressões imoderadas. Era seu consolo confidenciar com o piano, como São Francisco confidenciava com a irmã Natureza; alimentava-se de Chopin, como Chopin se alimentava da Poesia. E com essa disciplina que graduava sua discreção, podia oferecer o seu Rimário, Os Carmes. As Sete Dores e as Sete Alegrias da Virgem, as tradições de Papcoli e dos “Cantos” de Leopardi.

Muito embora se consagrasse, com perícia e emotividade, ao verso, para Aloísio de Castro a Poesia não estava em fazer versos, mas em viver a Poesia ou em participar da exaltação poética. E rigoroso no construir, no joeirar os termos, em medir-lhes o alcance, em sentir-lhes a música, possuía corajosa e ampla visão da Poesia. “Seria apoquentá-la” – escreveu ele – “circunspor-lhe os estreitos limites das escolas, que tantas vezes tomam como pretexto para arvorar bandeira o gosto efêmero das modas, ainda as mais espaventosas.”

Tradutor de Leopardi, não podia aceitar a impassibilidade e tachou de despropósito o que diziam os teóricos do Parnasianismo. Preferia endossar os argumentos de Verlaine em favor da carne e sangue, quando em 1867 sacudia e agitava a poesia francesa com os Poèmes Saturniens.

Por isso recitava Baudelaire, para ele grande e magnífico, como foi além, anotando restrições aos exclusivismos de Valéry e aplaudindo alguns modernos desabusados.

O PROSADOR ALOÍSIO DE CASTRO

Mas, se passarmos da Poesia para a prosa de seus Discursos Médicos, de Notas e Observações Clínicas e de sua sempre interessante Semiótica Nervosa, encontramos a mesma fascinação pela Poesia. O escritor é correto e apurado. E a Ciência exposta com elegância e luminosidade.

Em 1958, ao oferecer-me os dois volumes que encerram os seus discursos, conferências e escritos vários, recordou, com um tom de melancolia muito sua, que esses dois volumes formavam seu inventário sentimental. Neles não só incluiu o discurso de recepção nesta Academia, como os proferidos em outras recepções. Chamou a minha atenção para o adeus aos mortos que tinham tomado parte em sua vida, Miguel Couto, Silva Ramos, Alfredo Pujol, Afrânio Peixoto, Oliveira Viana e, principalmente, para as palavras que proferira diante do corpo de Roquette-Pinto. “Cada um deles levou um pouco de minha vida” – concluiu.

Daí por diante sua vida entra no crepúsculo. O sorriso era-lhe esforço no rosto macerado; e seu andar começou a ser trôpego e difícil. Só falava no tempo, que lhe devorava as últimas resistências, e lhe aparecia como implacável fabricante de solidões. Reli, agora, a apresentação preambular desses dois volumes e nela encontrei essa sua tristeza, disfarçada em ira: “Há palavra”, escreve, “de todos os dias, mas há dias que tem suas palavras. Estas de um dia para outro, agora revividas, quando já apagadas pelo tempo não mudaram de sentido.” O autor as reafirma e se dá por contente, nelas procurando a imagem de outros anos. Velhas palavras lhe parecem novas. Todos somos assim, quando às vezes nos volta à presença o que já se diria perdido no turbilhão das coisas.

A ESTATUETA LELIANE

Nossa conversa fora longa, numa das salas de sua casa,em Botafogo. Na maneira de trajar roupa escura e colarinho engomado dava-me a impressão de sair de um retrato impressionista, como fosse um egresso da belle époque. E não só ele dava essa impressão como também o teor dos arranjos da sala, a cor dos estofos e tapetes, o gosto dos quadros e estatuetas. E, por falar em estatueta, uma que estava em cima do piano de cauda tinha uma história que ele relembrava sempre aos seus amigos e que serve para caracterizar uma sensibilidade que não mais existe. Batizou-a com o nome de Leliane. Encontrou-a em sua primeira viagem à Europa, num antiquário de Florença. Como era pobre não a pôde adquirir. Consolava-se num namoro prolongado e platônico. Porém afinal, já decorridos alguns anos, conseguiu adquiri-la num encontro, como dizia, entre a fidelidade e o destino. E daí o soneto que também no piano se encontra, da palavra de Alberto de Oliveira, inspirado em velha amizade e que ao surpreender conversa do mar com os morros da cidade assim termina:

E ao pé de um deles, tua casa, amigo,
Onde os olhos de louça entrecerrando,
Liliane está como a sonhar contigo.

O MUNDO COMO OBRA DE ARTE

Instalou-se definitivamente nesse estilo de vida. Pertencia de corpo e alma a um cenário articulado pelo Ocidente europeu otimista e progressista. Cria no amor e na paz entre os homens, na Arte como aprimoramento intelectual, na Ciência como salvadora do gênero humano, na ironia como alegria dos sábios e na tolerância como redenção dos crentes.

Era católico, mas o seu catolicismo jamais se agitou ao sopro das inquietações e das dúvidas. O mundo era uma obra de arte construída por Deus e por isso tudo fora feito com peso e medida e na hierarquia dos deveres erga omnia et erga Deum. Mesmo os pecados eram provas evidentes das verdades eternas. O conflito de vaidade, das conveniências, dos egoísmos, das rivalidades, das ambições não conseguiu jamais deslustrar a marca do divino, impressa na natureza das coisas. Num discurso de colação de grau, ainda em 1916, dizia aos moços:

Fazei conta que na vida a cada um se encontre um novelo com que há de urdir e fiar. Cada dia que passa, vai-se a meada estendendo e da teia surgindo o desenho de uma imagem. Primeiro são vagos os contornos do fio que na rede se entretece, depois a trama apertada e um dia após outro, umas vezes cedo, outras muito tarde, como a fortuna consente, do tecido broslado ressalta a figura em cujas formas se encerra o símbolo da vida entressonhada.

Tinha certeza de que os astros estavam no céu para dar o testemunho da vigilância do Criador.

Nascido em 1881, não podia escolher para sua juventude senão uma variedade descuidada de rumos. Quando começou a entreter relações literárias, encontrou os últimos boêmios, como produto de uma fauna extinta. Viu a cidade transfigurar-se ao sopro do progresso mundial, desaparecer a peste dos bairros saneados e surgirem as grandes obras executadas pelo governo Rodrigues Alves. A vida, para ele, aumentava em possibilidades. Em 1918, como diretor da Faculdade de Medicina, consegue instalá-la na Praia Vermelha e, com essa instalação, em Congresso Internacional de Medicina.

Havia nele por certo uma amargura inconfessada, que a beleza e a crença se encarregavam de transfigurar. Repetia com Ovídio que “o chorar é um grande gosto”. Ovídio, que no desterro achou descanso nas musas, pois “o espírito poético é mais alto que o humano infortúnio”.

Miguel Couto, num retrato magnífico em poucos traços, disse a Aloísio de Castro: “Homem de bem vos vi adolescente, no hospital, à cabeceira dos infelizes aprendendo piedosamente no sofrimento a curar o sofrimento.”

Para seus males próprios, em louvor à sua sensibilidade à flor da pele, havia ainda a contemplação da beleza. Não era, contudo, um esteta à maneira dannunziana, nem mesmo acompanhava o vago panteísmo de Graça Aranha. Deixava-se fascinar pela obra de arte, viesse de onde viesse, de um recorte da Natureza, de um templo grego, de um Théophile Gautier, de um Ruskin ou de um Stefan George.

Para Aloísio de Castro, a nossa época é cruel, de grande queda moral, de rebaixamento materialista. Mas o homem que concorre para tudo isso pode e sabe vencer tudo isso.

As indignações explosivas são inúteis. Um homem que se zanga e se exalta é obrigado a revelar um mau gosto abominável. Goethe, para Aloísio de Castro, é uma criatura como as outras, com suas decepções e revoltas. Seu valor está principalmente em ocultá-las numa serenidade helênica. Daí o seu gosto em assinalar o decoro e o temperamento em Raimundo Correia, mas sem esquecer seu natural nervosismo e justificada irritação de caráter.

Sabia de alguns de seus tormentos íntimos e os via misturados aos tons românticos de seu Parnasianismo. Consagrou-o como poeta da dor. Por sua vez, a cabeça branca de Osvaldo Cruz era, para ele, a de um lutador que suportara toda a sorte de sofrimentos e decepções.

MÉDICO POR VOCAÇÃO

Aloísio de Castro, médico e filho de médico, conhecia bem a dor sem constrangimentos. Nasceu em um meio em que se falava, mais que tudo, em Medicina. Adquirira, com o tempo, maior gosto pela profissão com a qual podia situar, mais do que ninguém, a verdadeira condição humana. Para ele o milagre de Lázaro não servia só para reatar, em nossos dias, as esperanças dos desgraçados Raskólnicov, porque a vida, para um médico, é sempre uma possibilidade de ressurreição.

Relembra, num de seus discursos, a perfeita compreensão do exercício da clínica que possuíam seus mestres inesquecíveis, e concluía: “Eu aprendi então que só há um prêmio para aspirar-se na clínica: o benefício do doente.” E dava o exemplo intemerato de Miguel Couto, sempre grande capitão nos perigos e surpresas das doenças, combatendo até o fim, sem esmorecer. Era pois médico por vocação e, falando sobre a Medicina, cita uma página de Anatole France em Vie en Fleur, quando confessa que não quis ser jurista, nem médico. E lhe vem à lembrança um bom-dia em Paris, quando caminhando pelo cais do Sena com suas caixas de velhos livros, pôs-se em conversa com um dos antiquários. “Perguntei-lhe” diz Aloísio, se conhecia pessoalmente Anatole France. Que sim, desde menino, e apontou para o cais Malaquias, onde fora a vetusta casa do livreiro Thibaut, pai do escritor. Houve um silêncio melancólico e o velho concluiu: “Convenho em que o rapaz foi longe nas Letras. Mas que pena não ter dado para livreiro!”

Aquilo que conhecia, pois, com o passaporte da profissão, fazia-o um admirador não do cético Anatole France, mas do escritor que era um esteta capaz de transfigurar em beleza os quadros da vida. E chegava à conclusão de que “a Arte é sentimento e só há uma Arte, a Arte humana”.

Mas, por assim ser, um homem capaz de compreender as dimensões do sofrimento, apresentava-se acadêmico exemplar, aquele que sabe manter sua personalidade intacta no respeito da convivência social.

Era discreto por índole, mas a Medicina fê-lo mais discreto ainda, pelo respeito ao pudor daqueles que lhe entregaram os sofrimentos.

No mister clínico, junto ao leito dos doentes, assistiu com o coração dessangrado às mais tocantes cenas de que é teatro o mundo, aflições, agonias, adeuses dos que ficam e dos que se partem. E aconselhava aos seus alunos: Respeitareis a majestade do sofrimento alheio como coisa sagrada sempre e cada vez mais, à maneira que ganhardes as experiências dessas tristezas infinitas.

Aloísio de Castro soube diluir na elegância sóbria do que escreveu seus impulsos pessoais. Aceitava o Modernismo mas via na rebeldia carbonária de Graça Aranha um mal, porque parecia negando um dos suportes da vida comum e da vida acadêmica: a tradição.

Para Aloísio de Castro a par de uma sabedoria acadêmica, que opera em campo próprio para conseguir o sentido global da cultura, há um compromisso acadêmico que retira o escritor de seu habitual monólogo para conduzi-lo a dialogar com a vida.

O intelectual arredio, prisioneiro do mundo interior, desligado da cordialidade humana, esse outsider, visto por Colin Wilson, deixa seu isolamento quando entra para a Academia. Não se recolhe a ela como a um convento, mas a um centro de amável ressonância onde a vida repercute com a voz humana do sino lendário de Ciro Alegria.

Mas um acadêmico, para Aloísio de Castro, não pode claudicar no que escreve ou no que afirma. Mas, também, não pode claudicar em sua conduta social. Não precisa ir aos requintes do fim do século, onde a sociedade prousteana de Paris foi um modelo, embaraçosa para muitos intelectuais, como nos conta Romain Roland. O próprio Proust, comentador de reuniões desse naipe, com grandes damas afeitas aos requintes da frivolidade, chegou a afirmar que, nelas, nem sempre a boa educação é freqüente, e que não faltam criaturas desprovidas de espírito, como a própria duquesa de Guermantes.

Pelo saudoso Alcântara Machado, seu mestre e amigo, soube de uma passagem de Pedro Luís, homem de salão e de gosto, que confidenciara a um amigo, após uma reunião elegante, onde dissera coisas indiscretas a uma gentil senhora: “Pratiquei hoje silabadas imperdoáveis!”

Era o que Aloísio de Castro achava que um acadêmico jamais deveria praticar. E com isso afastava a possibilidade da velhice:

Os tempos trazem o tempo. Mas, cada tempo seu viver, sua cor, suas idéias, suas lutas, suas esperanças. O espírito acadêmico é de seu natural cerimoníaco e conservador. Contudo, se guarda a lei antiga e os princípios inderrogáveis, perpetuando e aprovando na longa experiência, não é nesta Casa, espírito rotineiro, absolutista e ferrenho, firmado em velhos preconceitos; fechado aos pressentimento do futuro e às mudanças das novidades e do progresso.

AMOR AOS CLÁSSICOS

Cada acadêmico traz a sua contribuição, que é a sua maneira de cultivar as Letras. É o edificador e habitante de uma cidade livre, onde todos se entendem. Entre os dados indispensáveis para a vida desta cidade, considerou Aloísio de Castro as virtudes do Classicismo. Não que nos dê um modelo a ser copiado, mas nos apresenta uma experiência a ser aproveitada com a resistência que opôs à erosão dos tempos. “Relacionar os clássicos do nosso idioma”, sentenciava ele, não é reviver o arcaico e o cediço do português velho e relho, não é buscar o ridículo da pura imitação no falar e escrever à antiga, não é preferir o enfático,o guindado, o arrevesado, tudo isso que, em Portugal chamava Ricardo Jorge“escritura repuxada, prosa engomada e farfalhuda –”, é ressalvar, nas belezas daqueles inacessíveis modelos, o escrúpulo da língua que não pode ser exautorada aos seus fundamentos, nem na disciplina de sua boa regra.

O passado, realmente, não é quem manda ou dirige. Cada época tem seu modo de viver e, portanto, seu modo de expressar-se. Cada região exige o império de seus usos. Mas o presente é sempre uma conclusão, é sempre uma capitalização do passado. Se, para Nabuco, em todas as épocas há modernismo, e se, para João Ribeiro o Modernismo tem razões que as razões do passado não alcançam, para Aloísio de Castro há uma solidariedade entre as épocas literárias, mesmo entre as gerações, e assim, para ele, cultivar os valores do passado é seguir um programa natural, porque sem o passado o homem, que é um animal de experiências, torna-se mutilado, um ser destituído de humanidade. O que se passa nas Academias, também se passa na vida literária. Dante leva por guia a Virgílio, separados ambos por uma distância de treze séculos, como se entre o poeta pagão e o poeta cristão não houvesse diferenças irredutíveis.

OS MESTRES LATINOS

Nas suas leituras, incluía Aloísio como indispensáveis os grandes mestres latinos, exempla maiorum, para homologar as novas criações literárias. Mostrou-se um magnífico tradutor de Horácio e não hesitou em convocar os clássicos latinos para prestigiarem a ciência médica.

Relembrando seu mestre de latim, Dr. Fortunato Duarte, narra-nos a viagem dele a Roma. Descera ao Tibre, para banhar as mãos nas águas flavas, quando com elas viu se confundirem as lágrimas que pelo rosto lhe corriam...

Também era assim Aloísio de Castro, percorre a Itália, pelo que ela é e pelo que foi. E, muitas vezes, se comove até as lágrimas diante do depoimento da paisagem ao palmilhar o caminho de Capri ou ao divisar as ruínas do Forum romano.

O Horácio que traduz é como o Virgílio de Ernest Curtius, um amigo e companheiro. Descreve-o, como se tivesse conhecido pessoalmente, vagando pela Via Sacra, com os olhos entregues à imaginação. Retira-o dos livros e dos armários, para pô-lo em contato com os seus leitores:

Não mudou em dois mil anos. Eu estou a reconhecê-lo tal qual o encontrei há dez anos, quando, em Roma, me perdi o dia inteiro lá por Tivoli, em visita à casa do poeta. Pensei que era coisa de sonho ver-me ali, levado por ele entre hortas e vinhedos vergados de cachos. Mas não era: há realidade na ilusão.

Horácio aparece-lhe baixote a atarracado, de tez rosada, cabelos pretos, branqueando já nas fontes, a sofrer nos olhos grandes e negros blefarite crônica. Ao lado dele, Virgílio, alto, esmagriçado, moreno, cabelos curtos, olhos encovados, mento saído.

O modo de Aloísio de Castro viver o passado deu-lhe certa originalidade que nada teve de intencional – Era dos que achavam que a preocupação de originalidade é mais apropriada às naturezas frívolas e inconseqüentes.

Na cátedra, na tribuna das sociedades científicas e literárias, nas reuniões mundanas, era um homem inconfundível. Construiu a sua maneira de ser, como a aranha constrói a sua teia; o meio, as circunstâncias e os próprios acontecimentos abriram espaço para que ele passasse. A compostura literária de Aloísio de Castro era, conseqüentemente, um resultado do compromisso com a vida que lhe foi dado viver.

O Classicismo que alimentava era a defesa de um civilizado, prevenido contra os destemperos da invasão do barbarismo. Era dos que acreditavam que, a partir de Atenas foi que o mundo, pela obra de seus artistas e escritores, se livrou do predomínio da natureza absurda e inconseqüente.

Atravessou a mocidade imune às inquietações literárias, provocadas pelos novos espetáculos da vida, porque confiava na eficácia do termo exato, da palavra apropriada, no sucesso do equilíbrio e da harmonia das cores, para a fixação de suas verdades, tudo o que dera a imortalidade a Virgílio, cuja sonoridade musical lhe encantava os ouvidos. Ele e Horácio não só ofereciam pela virtude romana e pelo amor grego à beleza um triunfo ao Classiscismo, como também constituíam uma das primeiras fontes do Romantismo.

Resguardado pela sua fé religiosa, por suas firmes convicções sobre o destino do homem, não o perturbavam as conseqüências da revolução industrial, da revolução social, da revolução filosófica e científica, porque, apesar de todos os erros e castigos a humanidade saberia recompor-se e reafirmar-se. Talvez assim quisesse pôr em relevo seu nenhum gosto pela Política e sua paixão pelas Artes. Nunca esteve em seu programa solidarizar-se com as agitações impostas pela vida moderna. Tinha em mente a postura do homem clássico, a maneira pela qual Horácio, com suas Odes e suas Epístolas, se libertava das paixões e das conseqüências da guerra civil. E se insistíssemos com ele, com algumas objeções contra a restauração do passado perdido, respondia:

Vivamos com o nosso tempo, mas não nos escravizemos a ele com nossas criações. Se o homem pode viver, pelo milagre do pensamento, a vida universal dos séculos, o múltiplo na sua unidade, o mistério de muitas vidas, o mistério do tempo e do espaço, porque se há de dar à Arte o sentido de um momento jungido à hora atual, de seu dia, atada aos horizontes de seu meio?

E afirmava, como afirmou em um dos seus trabalhos: “Nem só o presente, nem só o passado.”

NA CASA DE HORÁCIO

De uma feita, em Tivoli, num trenzinho a vapor, seguiu em visita à casa de Horácio. Lá se foi pela campina romana, deslumbrado com o desfilar das sugestões. E confessou:

Quando volvi a mim, na vida de hoje, dei com o guia ao meu lado. Senti-lhe a intenção de me deixar enganado, quando me disse: “Nem tudo é certo. Terá sido ali mesmo a casa de Horácio?” A sinceridade pareceu-me detestável. Olhei com enfado aquele homem, no fim de contas, igual aos outros, que vivem a tirar ilusões a quem as tem. Então me recordei o que me ensinara Gaston Boissier: A quinta do poeta ficava muito além, a 8 milhas de Tivoli perto de Vicovaro (Vincus Varia) no vale da Digência. Assim o provara,em 1777, com uma dissertação de maça e mona, um devoto de Horácio, o abade Capmartin, de Chapy. Que me importa a mim o abade? Fiquei com Chateaubriand que há cem anos visitara o mesmo lugar onde estive. Sim! Ali deveria ter sido a quinta sabina que Horácio elegera para moradia de sua velhice,encomendando a Septímio regasse com devidas lágrimas as cinzas do poeta.

Aloísio de Castro ampliou assim as distâncias de sua discreta curiosidade. Extraiu das vocações do mundo antigo dados úteis para uma compreensão global da vida. Soube colher, como poucos, os resultados de seu saber como a capacidade de sobrepor-se àquilo que encontrou de inexpressivo na linguagem arcaica e convencional dos rapsodos. E, com essa Arte, foi distribuindo aos que o conheceram, amigos, discípulos e leitores, os frutos de sua graça e saber.

Em suas conferências, no seu dizer, nas palestras mundanas e mesmo em suas ações, jamais deixou de refletir os encantos da ternura e uma harmoniosa visão das coisas contraditórias.

Percorrendo-lhe a obra, não encontro o eco de qualquer conflito. Tudo é harmonia e lisura. A luta entre antigos e modernos serviria quando muito, como pensava, para encher as páginas dos sábios da História literária e não para contentar poetas e prosadores.

ALOÍSIO DE CASTRO E A MÚSICA

Convém ressaltar que a música não lhe foi apenas uma distração, mas um dado essencial para a conquista da vida, envolvida ao enredo das atribulações. Tinha-a na mesmo plano que os livros. Com ela se recolhia a si mesmo. Por meio dela punha-se em contato com as coisas. Lembra que Hipócrates aplicara a noção de harmonia musical aos processos de desenvolvimento corpóreo e que nunca se pôs em dúvida que a música adoça os costumes. E tinha, para tanto, como melhor companheiro, por mais de acordo com suas fibras sentimentais o melancólico Chopin.

Para Aloísio de Castro o dizer é sempre limitado pelas palavras, ao passo que, com a música, tal não acontece. Há na verdadeira música – diz ele – uma expressão maior de sinceridade que nas palavras e se, com estas acontece mentir-se, não se mente com a música.

Assim, esse homem mundano e galante nunca estava com sua solidão. Vivia com os homens, com a imaginação, o livro, a música. Possuía uma virtuosidade extraordinária, aquilo que Spengler chama de “técnica de comunicação”, a faculdade de amoldar as expressões dos outros a si, e as suas aos outros. Nos últimos tempos de sua vida, já não ia, com freqüência, ao piano. E à medida que o ia deixando, ia morrendo...

Disse-me, num dos últimos encontros, que lera a minha conferência sobre Giovani Papini e que sentira como que sufocado, ao imaginar o escritor italiano bloqueado pela paralisia, mudo e surdo. E exclamou: “Que solidão atroz!”

Voltava-lhe a consciência ainda lúcida, quando seu andar se tornava cada vez mais difícil, sua tese para a Faculdade de Medicina, intitulada “Das Desordens da Marcha e seu Valor Clínico”. Nesse trabalho, que é fascinante até para os leigos, acentua o valor do movimento no fenômeno da vida. E fixa, então, o fenômeno que ia dramatizar sua velhice, e já assim o avisara a lição dos fisiologistas com afirmar que uma sem outra são coisas que não têm razão de ser.

RIO – SOCIEDADE ORQUESTRAL

O Rio de Janeiro não tinha nesse triste anoitecer de sua vida perdido ainda o cetro de seu imperial comando sobre a ordem política brasileira, recinto que fora dos grandes acontecimentos, nas pompas da Monarquia e da República.

Era o cenário que mais aprazia a Aloísio de Castro. Bastava vê-lo ao sair da sua casa da rua D. Mariana com olhos enternecidos por tudo o que a luz do sol carioca iluminava, desde as montanhas distantes até o mar, buscando distâncias...

Numa manhã domingueira, ao me ver sair da Missa, na Capela do Colégio Santo Inácio, atravessou a Rua São Clemente, com ares de quem estava em seus domínios para me fazer ver os caprichos da paisagem matutina.

Era a sua cidade orquestral, a cidade onde recolhia suas musas dispersas, a cidade em que viveu seu pai, sua família, seus mortos, os fundadores da Academia; a cidade de Machado de Assis, onde também encontrava suas figuras diletas, Rui, Miguel Couto, Alberto de Oliveira.

Agora senhores acadêmicos, eu vos falo, entre constrangimento, da Cadeira que era dele, situo-me na sua cidade já despedida das tradicionais prerrogativas de capital da República. E vos trago, além de nossas diferenças intelectuais, minhas emoções contraditórias da nova capital sertaneja de onde vim e onde tudo é um começar audacioso e desbravador na inocência indiferente de uma paisagem despovoada.

Ao ver, sob o baixo céu sanguíneo, no doce crepúsculo do Planalto, límpida formação militar de garças brancas; e ao imaginar-se onde se aproximam nas cabeceiras dos grandes rios da unidade nacional, cheguei a lembrar-me do sertanejo Bernardo Guimarães, alma insubmissa e sonhadora, que havia adivinhado, dentro do silêncio das solidões minerais e goianas, uma forma de vida que exprimiu nestes versos:

Na face deste solo imenso e belo
Tempo virá em que nessa valada
Onde flutua a coma da floresta,
Linda cidade surja branquejando
Como um bando de garças na planície.

Que dirá Bernardo Guimarães, voltado para o futuro, ao ver agora o que vejo, por entre discussões e entusiasmos? Po sua vez, que reação produziria na alma urbana de Aloísio de Castro esse descomunal improviso, ou mesmo a notícia da capital planaltina – massa de edifícios modernos, em uma cidade funcional em pleno sertão?

As perguntas se justificam, principalmente para mostrar neste mundo pequeno como se encontram os espíritos, e como o meu inesquecível antecessor e eu estamos em cenários inteiramente diversos, nesta hora histórica na vida desta Companhia.

E por sermos diferentes, Aloísio de Castro, com suas virtudes, e eu sem encontrar as minhas, é que pude amá-lo, pelo desinteresse da admiração.

Sou de uma geração problemática. Prende-me a ela todas as razões do meu ser, com ela comprometido nas tempestades de um século em que fermenta o ódio político e em que palpitam, portanto, as tristes misérias das paixões humanas.

É certo que essas misérias sempre existiram. Mas nunca existiram assim.

Henri Bergson relembrou, em seu discurso de posse na Academia Francesa, a tormenta que desabou sobre a cabeça de Émile Olivier, em 1870. Fez ver, porém, como motivo central de seu discurso que, no túmulo de Olivier, havia uma inscrição: Magna quies in magna spe – um grande repouso, numa grande esperança.

Ficamos com as esperanças. Mas nunca tivemos repouso. Continuamos a nos inspirar, como Lessing, no grupo de Laocoonte e, por isso, não esquecemos do livro II, da Eneida de Virgílio.

Viram meus olhos as desmedidas transformações operadas pelos inventos, pela técnica, pelas guerras, pelo despertar de classes e povos oprimidos, e meus ouvidos, desde a infância, ouviram os desesperados brados da vida periclitante. E neste fogaréu, as promessas de um mundo melhor, mais generoso e mais simples.

Procuramos, em nossos processos artísticos, na dissociação plástica, na repulsa às fórmulas consagradas, uma linguagem capaz de decifrar os novos segredos, e tropeçamos, não raro, com os ardis da ignorância e da leviandade.

Nesta noite, contudo, quando a Academia festeja 63 anos de existência, falamos juntos, Aloísio de Castro e eu, ele a atrair para meu lado as sombras amadas desta Casa. Falamos juntos, na compreensão afetuosa da solidariedade acadêmica; ele com sua proverbial gentileza a pedir por mim e procurando fazer ver a todos os que me escutam as razões da minha posse, para que me perdoem naquilo que vos disse em demasia, sem poder oferecer o que vos devo, em louvor e glória da Academia Brasileira de Letras.

20/7/1960