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Osvaldo Cruz

 

                                        HIGIENE PÚBLICA

As condições higiênicas e o estado sanitário da Gávea

O estado sanitário do bairro da Gávea, mormente o da rua do Jardim Botânico e suas colaterais, tem-se tornado nestes últimos anos cada vez menos satisfatório.

Se é verdade que a febre amarela quase que, por assim dizer, poupou o arrabalde durante a lutuosa epidemia que assolou a nossa cidade no verão passado, não é menos verdade que o impaludismo atacou e mesmo vitimou grande número de pessoas, [...]. Não é só o impaludismo que tem mostrado quanto está necessitada a Gávea de trabalhos imediatos de saneamento; as manifestações típicas e a disenteria, que ora começa, atestam-no igualmente.

Procuraremos mostrar no correr destas linhas quais as causas que têm contribuído para o atual estado de cousas e lembraremos quais os corretivos que se poderão opor a elas. Em síntese podemos formular a seguinte tese: o mau estado sanitário da Gávea é motivado pelo aumento rápido e crescente de sua população, sem que os recursos higiênicos tenham aumentado proporcionalmente.

Detalhemos os fatos e procuraremos devassar a origem desta insalubridade.

É a rua do Jardim Botânico atravessada por dois riachos que vão ter à Lagoa Rodrigo de Freitas; são eles o rio Cabeça e o Macacos, que, bifurcando-se, corta-a em dois pontos.

Estes dois riachos ao atravessar a rua do Jardim estão quase secos porque suas águas são represadas para alimentar os reservatórios do mesmo nome e esta circunstância é agravada no verão, pela seca que cada ano se acentua mais.

O leito lodoso desses riachos acha-se a seco, quase em sua totalidade; a pouca água existente está quase estagnada, tão numerosos são os embaraços para o seu escoamento, embaraços que são representados não só pela abundante vegetação que existe no próprio leito descoberto, como pelos troncos, folhas secas, etc. que, sendo acarretados pelas enxurradas, ficam depositados nas curvas.

A estas causas que favorecem a decomposição pútrida, junte-se ainda que quase todas as casas que se acham nas imediações desses rios lançam neles não só águas servidas, como até materiais fecais. Todas essas matérias orgânicas depositadas num solo úmido e aquecidas pelos raios dum sol estival bastariam para tornar insalubre toda a vizinhança. Qualquer transeunte que lance as vistas para estes córregos imundos verá como a pouca água que têm parece estar em ebulição, tantas são as bolhas de gazes que se rompem em sua superfície infecta!

Não é só! As sarjetas das ruas estão em alguns trechos transformadas em valas, mormente perto das estalagens onde os moradores, por falta doutro escoadouro, lançam as águas de lavagens de roupas. Nessas valas, que exalam cheiro nauseabundo, crescem algas e outros vegetais inferiores, que, quando se faz a evaporação da parte líquida, entram em decomposição pútrida.

Mais ainda; muitos habitantes das casas que orlam as ruas depositam o lixo nelas ou nos terrenos baldios da vizinhança, que na maioria são capinzais adubados com excremento fresco de várias espécies de animais! Estas vastas superfícies cobertas de matérias orgânicas da pior espécie infectam o ambiente.

Não há latrinas suficientes para a população consideravelmente acrescida, de modo que, durante a noite, os transeuntes, sem que alguém os impeça, satisfazem as necessidades corporais nas margens das ruas, nos terrenos baldios, etc.

Com seu contigente para a insalubridade concorre o deplorável estado de conservação da rua do Jardim Botânico, cujo calçamento primitivo, existente só em parte e feito pela Companhia Ferro-carril do Jardim Botânico, está completamente estragado pelo trânsito considerável de carroças, havendo grandes buracos e enormes desnivelamentos, onde estagnam as águas de chuva, que, além dos inconvenientes das águas paradas, umedecem o solo favorecendo a evolução dos germens morbígenos que nele possam existir.

Em muitos terrenos veem-se fossos infectos cobertos de vegetação e destinados a dar escoamento, não só às águas das chuvas, como também às de uso doméstico.

As ruas, hoje em dia percorridas por numerosos veículos, são apenas capinadas. Os animais que servem para a tração desses veículos lançam no solo suas dejeções que, não sendo removidas totalmente, fermentam e contribuem largamente para aumentar a infecção do solo já tão infeccionado.

Se as condições higiênicas da rua do Jardim Botânico são más, piores, muito piores ainda, são as da rua de D. Castorina, e aí agravam-se elas mais, pelo fato de ser nesta rua onde vive a maioria da população proletária do arrebalde, por isso que nela acham-se situadas uma fábrica de tecidos, que ocupa cerca de 1.000 pessoas, e uma vila destinada à habitação de 1.000 operários.

A rua, que não é calçada e por onde transitam numerosos e pesados carroções, está em parte completamente estragada. Por ocasião das chuvas é ela transformada em vasto atoleiro sulcado de carris, em cujos fundos a água estagna e corrompe-se; no verão, a menor agitação provocada pelo trânsito ou pelo vento levanta uma colossal e sufocante nuvem de pó fino, onde não hão de ser raros os germens morbígenos.

Isto não é nada ainda em relação às valas existentes na estrada de D. Castorina. Logo no começo, do lado direito, a sarjeta está transformada numa vala imunda que recebe toda a sorte de líquidos das casas que lhe ficam fronteiras.

                                                     [...]

Eis o triste estado a que está reduzido o célebre bairro da Gávea, legendário por sua salubridade, o antigo refúgio dos convalescentes que vinham banhar no ar oxigenado e vivificante de suas montanhas os pulmões gastos pelo ar confinado dos centros populosos. O estado sanitário atual é muito mau como acabamos de ver, pior será quando começarem a funcionar mais três fábricas, que ocuparão cerca de 4.000 operários, e que estão em construção.

Nas palavras que acima deixamos não vai a menor acusação nem censura às autoridades sanitárias; pelo contrário, somos testemunha do quanto se têm elas esforçado pelo saneamento da parte do Distrito de que tratamos; a maioria dos fatos acima consignados tem sido matéria para reclamações daquelas autoridades; porém nada ou muito pouco se tem conseguido até hoje. É verdade que um grande passo já foi dado com a colocação de esgotos, porém, mais adiante, mostraremos o que podemos atualmente contar com este grande melhoramento.

                                                   (“Relatório”, in Opera omnia, 1972)

                      

ELOGIO A RAIMUNDO CORREIA

                                                   [...]

Mas Raimundo Correia é brasileiro, nasceu na terra que a natureza dotou com as maiores belezas que se conhecem e que imaginar se podem. Por isso, poeta, exímio pintor, que sabe dar com a pena os coloridos vivos e quentes de nossa natureza, traçando as mais belas paisagens de nossa terra; cenógrafo incomparável emprestou ao colorido de nosso céu, às infinitas variantes de nossa verdejante vegetação, às cambiantes de nossos incomparáveis crepúsculos o cenário em que canta o poema inesgotável do Amor, acompanhando-o das sinfonias compostas do sussurro de nossas fontes, do cantar de nossos pássaros, do ciciar das brisas pelas frondes dos coqueiros. Tudo nos faz cair em místico panteísmo diante do esplendor de nossa natureza e de nossa poesia.

Na técnica do verso Raimundo Correia foi de admirável correção. Seus versos de ductilidade pasmosa não são forçados e correm da pena fáceis e cheios de graça e de belezas outras, que não exclusivamente a da forma métrica.

Soube, com um malabarismo admirável dos vocábulos, tirar deles efeitos surpreendentes. Usou das figuras por contraposição com elegância e parcimônia. Colocava, um ao lado de outro, termos de contraste que se realçam mutuamente e que dão maior destaque à ideia a que servem. Outras vezes na sucessão dos vocábulos veem-se colidir ideias antagônicas com o mesmo intuito de fazer ressaltar a ideia diretriz. Lembra a feitura desses versos, a aplicação das leis dos contrastes simultâneo, sucessivo e misto das cores, de que o imortal Chevreul soube tirar tão grande partido e cujas leis estabeleceu em bases tão científicas. Esse modo de empregar palavras que nos fazem a impressão de serem coloridas, nos dá ideia da disposição conjunta das cores complementares que nos proporcionam as harmonias do contraste e se fazem sobressair mutuamente, dando mais vida ao assunto tratado. É como a colocação, lado a lado, do vermelho e verde, do alaranjado e azul, do amarelo e violeta.

Pode-se afirmar que poucos em nossa língua levaram mais longe o apuro do verso. Seus decassílabos e redondilhas, principalmente, são de inexcedível perfeição. Muito poucos são os poetas que, como ele, souberam variar ou deslocar nos versos as pausas, por necessidade de melhor expressão ou por quebrar a monotonia do ritmo.

O emprego parcimonioso e artístico do transbordamento (enjambement) é outra de suas admiráveis qualidades.

O adaptar com precisão o vocábulo à ideia ou sentimento a exprimir, o acerto dos epítetos, fazem de Raimundo Correia, neste particular, êmulo digno de Garção e Tolentino, em cujas poesias raro se poderá substituir com vantagem, por outro, tal verbo ou qualificação. Suas rimas, nunca vulgares ou pobres, têm excelsa nobreza. Sente-se que elas nasciam sem esforço e já opulentas e belas, esmaltando, quais gemas preciosas, suas estrofes inimitáveis, verdadeiras joias clínicas.

Havia em Raimundo Correia um poeta que, se escrevesse na língua que adotou Heredia, seria capaz de ter produzido a coleção dos Trophées; mas aí estão suas Poesias para encher de patriótico orgulho os que falam a suave língua que embalou a nossa infância.

Quanto à escola poética, era sincero e fervente entusiasta do parnasianismo francês, como aliás consta da profissão de fé exarada no prefácio da primeira edição das Poesias, e como se manifestou praticamente na execução da sua obra poética.

Relanceemos por essa escola e vejamos quais os estádios de sua aclimação nos países de língua portuguesa, mormente no Brasil.

Em 1865, em Paris, certo número de poetas novos rimava, obedecendo à orientação de alguns nomes que tinham conseguido primazia entre eles.

Eram mestres Leconte de Lisle, em torno do qual se grupavam Sully-Prudhomme, J. Maria Heredia, Armand Silvestre e Léon Dierx. Outros obedeciam à orientação de Catulle Mendès, o poeta proteu, o rei do símil, o corrupião da literatura, que ora tomava a pompa de Victor Hugo, ora se confundia com Gautier, na admirável memória dos vocábulos, ora se tornava encantadoramente diabólico como Baudelaire, ora era Heine na sua divinização mórbida da mulher, ora Zola no seu realismo, por vezes revoltante. Catulle Mendès fundara uma revista, a Revue Fantaisiste, em que publicaram seus versos François Coppée, Albert Glatigny, Villiers de l’Isle-Adam, Mérat e Vallade.

O livreiro Lemerre, que se fizera editor de um jornal de Louis Xavier Ricard, intitulado L’Art, entrou em acordo com os representantes desses diversos grupos de poetas, que se afastavam francamente do velho romantismo que até então preponderara na poesia francesa, e lembrou a ideia de se fazer da revista um repositório poético como os que se encontravam no século XVI. Publicá-lo-ia em fascículos, que pudessem ser ulteriormente reunidos em volume. A ideia foi aceita, e, discutindo-se o título da nova revista, acordaram em que se lhe desse a denominação de Parnasse Contemporain, como um cartel atirado aos críticos. Com efeito, a este nome Parnasse a poesia do século XVIII e do Império tinha afivelado a ideia do ridículo.

O novo jornal de arte poética deveria ser para a poesia, segundo o desejo de seus fundadores, o que o Salon era para a pintura. Fundado o Parnasse Contemporain em 1866, nele começaram a aparecer os versos das escolas reformistas de Leconte de Lisle e Catulle Mendès, e mais os de outros poetas que se grupavam em torno dos nomes de Th. Gautier, de Théodore de Banville, de Charles Baudelaire. Todos eles se tinham reunido ali sob a égide e à sombra do grande carvalho da poesia francesa: Victor Hugo.

O Parnasse Contemporain se apresentava como reformador e, como tal, logo alvejado pelos mais acerbos ataques. Foram, então, os poetas que nele colaboravam intitulados pela crítica mordaz de parnasianos, vocábulo que corria nos dicionários da época como significando fabricante de versos ridículos.

A escola que então se instituía, se apresentava, sobretudo, como vestal do estilo, ciosa antes de mais do ritmo e da beleza plástica do verso. Era o renascimento poético, sucedendo ao romantismo esgotado. E como a forma correta e a pureza do estilo constituíam preocupação capital da nova escola, foram os seus adeptos cognominados pejorativamente de estilistas, formistas, fantasistas (alusão à Revue Fantaisiste, de onde tinha tomado uma de suas origens).

O ridículo, lançado sobre os novos, caíra no domínio do povo. A coisa chegou a tal ponto que, conta Catulle Mendès: Por ocasião de um atropelo de carros numa rua de Paris, um dos cocheiros que se disputavam, porque o disputar é próprio dos cocheiros de Paris - depois de esgotado o enorme vocabulário de insultos populares, atirou a seu adversário vencido essa injúria suprema, contra a qual não havia a retorquir: “Parnassien, va!”. E assim eram tratados os parnasianos, que, segundo Catulle Mendès, só tinham o crime de não ignorarem completamente a sintaxe francesa e se deleitarem com o som das boas ideias.

Pouco a pouco os poetas do Parnasse se foram dispersando e readquirindo liberdade, formando escolas outras. Dentre os talentos mais originais, que momentaneamente se tinham grupado em torno de programa da nova revista e que se foram libertando para constituir novos centros, cumpre citar Ch. Baudelaire, Sully-Prudhomme, Fr. Coppée, Stéphane Mallarmé e Paul Verlaine. O evolver destes dois últimos teve repercussão especial e imprimiu grande força sobre a direção do recente movimento poético francês, a que pertencem os poetas a que se tem dado sucessivamente as denominações de decadentes, deliquescentes e simbolistas.

E foi assim que se originou a escola parnasiana.

Ao mesmo tempo que em França se fazia a reação a favor da forma e do estilo, em Portugal, igual movimento se processava.

Antônio Feliciano de Castilho, em carta que dirigiu ao editor do livro Poema da mocidade, de Pinheiro Chagas, acusa de faltos de bom senso e bom gosto os literatos que, em Coimbra, se tinham filiado ao grupo capitaneado por Antero de Quental, Teófilo Braga e Vieira de Castro.

Essa carta deu início à denominada Questão Coimbrã - 2 de novembro de 1865. Ao escrito de Castilho, que contava então 60 anos, responde Antero de Quental, que tinha apenas 25, com outra carta intitulada Bom senso e bom gosto. Aí se faz o mais agressivo ataque ao ancião ilustre. É acusada a escola lisboeta, de que era chefe Castilho, de não ter ideias e de não serem seus adeptos senão “adoradores da palavra que ilude o vulgo e desprezadores da ideia que muito custa e nada luz.” São os lisboetas considerados “apóstolos do dicionário que têm como evangelho um tratado de metrificação”. Antero de Quental julga que o ataque da escola de Lisboa não visa à escola coimbrã, senão “à independência irreverente dos escritores que entendem fazer por si seu caminho sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e sua consciência”.

Assim se travou em Portugal, no terreno literário, uma das mais apaixonadas lutas em que, de parte a parte, houve os maiores excessos de linguagem e injustiças de julgamento. Não cabe aqui assinalar os marcos desta luta que envolveu quase todos os literatos da terra de nossos antepassados e nem se pretende fazer alusão aos numerosos folhetos e pasquins que então se publicaram, e onde corre o fel duma discussão envenenada e agressiva.

Lisboa batia-se pela forma, pelo bom estilo, pela sintaxe, pela beleza da língua. A escola coimbrã achava que a ideia sobrepuja a tudo, mesmo quando era nebulosa e exposta em estilo falso e afetado. E o era de tal modo, que Bulhão Pato, a ele se referindo, dizia que uma das maiores provas de absurdo daquele estilo é que até para o defenderem precisavam de o abandonarem.

A refrega continuou e nela tomaram parte saliente, além de outros, Pinheiro Chagas, Júlio de Castilho, Camilo Castelo Branco, Teófilo Braga e Ramalho Ortigão. O resultado favorável não tardou em se manifestar e as letras portuguesas só tiveram que lucrar.

Foi por volta de 1880 que aqui no Rio se reuniam, no antigo Café Cruzeiro, alguns talentos que se formavam promissores das celebridades que hoje nos honram, para ouvir as impressões e a palestra amena daquele que transplantou para o Brasil o parnasianismo francês, e que aqui fez a sua aclimação. Artur de Oliveira, que privara na intimidade dos que frequentavam a redação do Parnasse Contemporain e que se identificara com as ideias diretrizes da escola, referia a nossos jovens poetas como os parnasianos intentaram estabelecer na França o culto da forma, como se trabalhava ali no burilar do verso, como se afinava a pena para obter a música dos sons, como se combinava a sílaba aguda à grave na harmonia dos vocábulos. Prelecionava com entusiasmo sobre a composição do verso, sobre a maneira de vestir a ideia com graça e donaire, e não deixá-la andrajosa e analfabeta. Foi aí, nesse Café, que se acrisolou entre nós o núcleo dessa poesia artística onde os novos admiravam e pensavam fazer no verso o que na estatuária fizera o imortal autor do Perseu, que enriquece a Loggia dei Lanzi, na capital artística da Itália.

Nessas palestras, Artur de Oliveira relatava a emoção que experimentara quando foi apresentado a Victor Hugo e o horror que sofrera ao se sentir em casa de Hugo caricaturado por Gustave Doré: a caricatura - a prostituição do semblante - como ele dizia horrorizado.

Ouviam-no recitar as belas peças de poesia parnasiana, entre outros Teófilo Dias, Raimundo Correia e o mais brilhante dos parnasianos, a glória mais pura da poesia brasileira contemporânea, cujo nome vejo brotar dos lábios de todos e que não declino medroso de ofender a pureza de sua modéstia tão grande quanto o talento que originou a "Ode ao Sol".

E foi assim que se fundou entre nós a escola parnasiana, de que Raimundo Correia foi um dos mais lídimos representantes.

Homem - personificação da bondade que se cristaliza no juiz que corrige, perdoando. Poeta mavioso que entoou o mais empolgante hino ao Amor, em estâncias em que as mais belas ideias são vestidas da mais impecável forma. Conhecedor profundo das belezas de nossa língua. Estatuário da poesia, cinzelador do verso, pintor de nossa natureza, músico das mais harmoniosas e sonoras rimas, Raimundo Correia foi glória puríssima das letras pátrias: estilista, formista, fantasista, parnasiano - injúrias de outros tempos; hoje, títulos de invejáveis glórias.

 

                       (Discursos acadêmicos, vol. II, 1907-1913, vol. II, 1935)

 

                                              TESTAMENTO

Desejo com sinceridade que não se cerque a minha morte dos atavios convencionais com que a sociedade revestiu o ato da nossa retirada do cenário da vida. Pelo respeito que voto ao pensar alheio não quero capitular de ridículo esses atos: julgo-os para mim completamente dispensáveis e espero que a família que tanto quero, se conforme com esses inofensivos desejos que nasceram da maneira pela qual encaro a morte, fenômeno fisiológico naturalíssimo ao qual nada escapa. Tão geral, tão normal, tão banal é que julgo absolutamente dispensável de frisá-la com cerimônias especiais. Por isso desejaria que se poupasse aos meus a cena da vestimenta do corpo, que bem pode ser envolvido em simples lençol. Nada de convites ou comunicações para enterro, nem missa de sétimo dia. Nem luto tampouco. Este traz-se no coração e não nas roupas. Peço encarecidamente aos meus que não prolonguem o natural sentimento que trará minha morte. Que se divirtam, que passeiem, que ajudem o tempo na benfazeja obra de fazer esquecer. Não há vantagem alguma de amargurar com lágrimas prolongadas os tão curtos dias de nossa existência. Portanto, que não usem roupas negras, que além de tudo são anti-higiências em nosso clima; que procurem diversões, teatros, festas, viagens, a fim de que desfaçam essa pequena nuvem que veio empanar a normalidade do viver de todos os dias. É preciso que nos conformemos com os ditames da Natureza.

A meus filhos peço que se não afastem do caminho da honra, do trabalho e do dever, e que empunhem como fanal e o elevem bem alto o nome puro e honrado e imaculado que herdei como o melhor patrimônio da família, e que a eles lego como o maior bem que possuo.

À minha esposa querida, tão sensível, tão impressionável, tão difícil de se conformar com as dores da nossa vida, peço que não encare a minha morte como desgraça irreparável; peço que se console com rapidez e não deixe anuviado pela dor esse espírito vivaz, inteligente, espirituoso, que constituía a alegria do nosso lar e o lenitivo pronto para os sofrimentos que por vezes deparávamos.

Aí ficam nossos filhos, outros tantos rebentos em que vamos reviver, garantias seguras da nossa imortalidade que se encarregarão de levar através do espaço e do tempo as porções de nosso corpo e de nosso espírito de que os fizemos depositários, quando ao mundo vieram.

Quanto aos bens de fortuna que deixo, espero que sejam divididos por minha esposa entre os filhos. Espero e rogo que nunca a questão de bens materiais venha trazer a menor discórdia entre os meus: seria para mim a mais dolorosa das contingências. Peço aos meus filhos que acatem sem discussão a divisão que deles fizer minha esposa.

                                                                                  (Opera omnia, 1972)