DISCURSO DO SR. OSVALDO CRUZ
Constitui sempre motivo de prazer o encontrar oportunidade para manifestar reconhecimento pelo que de bem se nos faz. Tanto maiores são esses sentimentos de gratidão, quanto sou o primeiro a reconhecer que razões de especial indulgência foram os móveis dos atos e feitos que motivaram a minha presença hoje aqui.
É próprio, porém, dos homens não medir a extensão de suas manifestações, já no louvar, já no censurar, e tanto mais acerba é a censura e tanto mais acrimoniosa a invectiva, quanto mais enérgica, quanto mais intensa, quanto mais exagerada, mesmo, será a reação contrária: a censura se transfigura em elogio, a injúria em louvor, a ofensa em encômio. Tudo isto se deu neste caso concreta por um desses caprichos costumeiros da sorte, que faz mudar a direção da corrente das opiniões. A reação é sempre mais intensa que a ação, fenômeno, aliás, que a Biologia consagrou numa lei, que de Weigert tomou o nome.
Foi por isto que um modesto homem de laboratório, um trabalhador que só tem o mérito de prezar, antes de todas as coisas, a profissão que abraçou, depois de atacado com veemência, no começo de sua vida pública, se vê elevado à culminância que hoje atinge tomando – lugar entre os que formam a élite da intelectualidade brasileira. Verdade é que este que hoje se sente feliz em mostrar o fundo do coração, bem sabe, bem sente, que a suprema honra, que lhe é conferida, tem menos em mira sua insignificante personalidade que os médicos, higienistas e experimentadores abnegados, que abraçando o ideal de que foi ele apenas o porta-bandeira, quiseram acudir ao apelo de um Governo previdente e sábio e empregaram o melhor de sua atividade e talento, uns, no libertar nossa pátria de uma mancha vergonhosa que a enlutava, e outros no lançar entre nós, de maneira sólida, as bases da Medicina experimental.
O acaso e um conjunto feliz de circunstâncias fizeram com que o mais humilde dentre eles fosse o depositário da forca e confiança dos que governavam. Toda a honra, pois, todo o brilho que emana da suprema distinção que ora se concretiza, cabe, em realidade, aos verdadeiros fatores da obra, que a necessidade de sintetizar atribui a quem se aproveita desta ocasião para vos dirigir, senhores acadêmicos, um muito sentido obrigado. Aqui está, pois, quem receberá desta Casa todo o brilho que dela emana, e que, infelizmente, em nada poderá contribuir para aumentar aquele que daqui parte e já nos ofusca.
Cabe ao recipiendário de hoje a árdua tarefa, e para ele difícil, de rememorar aqui, – o que faz com profunda emoção – o que foi aquele, cuja herança pesada lhe coube nesta ilustre agremiação.
A cadeira de Bernardo Guimarães, onde se sentou Raimundo Correia, está de luto e de luto ficará, porque o poeta genial que a ilustrou não teve substituto. Sua vaga, como acadêmico, foi apenas preenchida.
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No julgamento de um autor podem ser seguidos dois caminhos: analisar a obra através do indivíduo ou idealizar o indivíduo pelo estudo da obra.
Esta segunda vereda foi aqui a trilhada.
Não logrou, quem vos tem a honra de falar, a ventura de conhecer, em pessoa, a Raimundo Correia. Nem puderam mesmo ser utilizadas aqui as idéias que, à simples vista da personagem, se costumam formar. Raimundo Correia foi julgado por sua obra e pelas informações que amigos seus diletos bondosa e gentilmente quiseram pôr a serviço da verdade – pelo que ora se lhes rende o mais sentido preito de gratidão.
A personalidade do nosso biografado será encarada sucessivamente como homem, como juiz e como poeta. Esta última separação se tornava especialmente necessária, porque ele assim, em vida, ciosamente a fazia. Não tolerava que lhe falassem em poesia, quando funcionava como magistrado. A esse propósito conta-se, mesmo, um fato interessante que com ele se passou, quando promotor público. Foi procurado certa vez, em São João da Barra, por um chefe político, que com ele desejava se entreter em particular: – “Contaram-me, doutor, – disse, – uma coisa muito grave a seu respeito, mas, confesso-lhe, não acreditei. Para tranqüilidade minha, porém, desejo ver a verdade surgir de seus próprios lábios” – e trêmulo de emoção, confuso, receando proferir injúria ou blasfêmia, murmurou junto ao ouvido de Raimundo Correia: – “Disseram-me que o senhor é poeta, mas eu não creio, repito.”
Escusado é dizer que o Dr. Promotor defendeu-se com veemência contra a ofensa que se lhe fazia e autorizou o amigo a lançar aos quatro ventos o mais formal desmentido.
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A 13 de maio de 1860, a bordo do vapor S. Luís, na baía de Mangunça, nas costas do Maranhão, nascia Raimundo da Mota de Azevedo Correia. Depois dos indispensáveis estudos de Humani¬dades, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde, em 1882, recebeu o diploma de bacharel. Abraçando a magistratura, exerceu os cargos de promotor público em São João da Barra, juiz
municipal em Vassouras (Estado do Rio), pretor da 2.a Pretoria da Capital Federal e, finalmente, juiz da 3.a Vara Cível do Distrito Federal. Foi secretário do Governo da então província do Rio de Janeiro, quando presidente o Conselheiro Carlos Afonso, diretor de secretaria e professor da Escola de Direito de Ouro Preto, quando presidente do Estado o Conselheiro Afonso Pena, professor e diretor do Ginásio de Petrópolis, durante o Governo Alberto Torres. Na Presidência Prudente de Morais, foi nomeado adido de Legação em Portugal.
A bondade era o traço dominante do caráter de Raimundo Correia. Em todos os atos de sua vida, quer como chefe de família, quer como juiz, quer como professor, era ela a característica desse espírito, que se movia num ambiente por ele impregnado daquele sentimento. Irritado por vezes, reagiam dolorosamente sobre ele os atos que um transitório arrebatamento fazia nascer, mas que logo se transfiguravam em fatos que a sua inesgotável bondade exagerava, procurando fazer esquecer aquilo que dali par diante lhe era motivo de constantes nevralgias de alma. Sofria, e, com carinhos inexcedíveis, procurava fazer esquecer o mal, que, por arrebata¬mento de um instante, pensara causar, magoando quem quer que fosse, amigo ou não.
Impressionável em excesso, tudo se lhe aumentava, e sofria mais que outros, de coisas em aparência insignificantes.
Tinha verdadeiro pavor das moléstias contagiosas, não por si, mas pelo perigo a que ficaria sujeita sua família.
Certa ocasião, de caminho para Ouro Preto, teve que pernoitar na Barra do Piraí. Ao descer à cidade encontrou-se com um doente, que lhe informaram estar atacado de varíola. Perdeu imediatamente toda a alegria, ficou pensativo, indagava dos amigos o que sabiam sobre a sintomatologia inicial da terrível peste. Não se alimentou e ao recolher-se ao aposento, em casa do amigo que o hospedava, mostrou-se inquieto, desassossegado, o que naturalmente provocou interpelações: – se lhe faltava alguma coisa, – se de algo carecia? Ao que, tímida e veladamente, Raimundo Correia respondeu: que nada lhe faltava, que estava bem, mas que desejava saber, caso se sentisse mal à noite, de que recurso deveria lançar mão para chamar alguém. Não havia instalações de campainhas elétricas, nem de telefônios internos.
Deram-lhe uma bengala e convencionado ficou que, se carecesse de alguma coisa no correr da noite, deveria bater com o bastão de encontro ao soalho até que o atendessem. Ficou assim convencionado, e, como a noite já ia adiantada e o cansaço convidava ao sono, retiraram-se todos para os aposentos que lhes estavam reservados. O silêncio invadiu a morada, os ecos da conversa da há pouco desapareceram nas espaçosas salas da casa de campo. Mas, se houvesse alguém desperto, este teria ouvido passos abafados no quarto de Raimundo Correia. O poeta não dormia, embora extenuado por longa viagem. A vela continuava acesa. Contava as pulsações, sentia a cabeça a estalar, estava nauseado e torturava-o intensa dor de cadeiras. Não havia dúvida, era a sintomatologia da varíola, de que lhe tinham falado. Estava febril. Ia incomodar os amigos, mas, paciência; se o não fizesse, não se trataria a tempo e infectaria a família querida e os amigos dedicados. Às 3 horas da madrugada, toda a casa despertava com o bater repetido da bengala de Raimundo Correia sobre as tábuas do soalho do quarto.
Acudiram pressurosamente os amigos e difícil foi convencer ao impressionável poeta que as dores de cadeiras eram muito naturais, após tão extenuante viagem, que a cefaléia era fatal com tão longa vigília, e a preocupação era justificativa mais que razoável para as acelerações do pulso. Que se acalmasse, a impressão podia fazer com que suas resistências naturais sofressem e poderia então adoecer, e, desta, vez, seriamente. Com os bons argumentos de que a boa amizade sabe sempre lançar mão, voltou a tranqüilidade àquele espírito impressionável, que vibrava sempre às menores solicitações.
A indecisão constituía um outro traço do seu temperamento. Mas é a indecisão lógica, argumentada, é a conseqüência de trabalho cerebral meticuloso, que analisa com cuidado, antes de resolver, e que sofre quando, por motivos imprevistos, a análise não pode ser completa e quando se convenceu de que a. resolução era ainda passível de modificações.
Recorda-se um fato da vida de Raimundo Correia, que vem, de modo grosseiro embora, mostrar a que ponto levava a minúcia da análise, mesmo nos casos mais simples, da vida diária. Recolhia-se Raimundo Correia ao lar, de volta de uma excursão que fizera em virtude de desempenho de obrigações do cargo que exercia. Poucos minutos faltavam para a partida do comboio. Quis adquirir um par de calçado para pessoa de família. Pressuroso, um amigo o levou à casa mais próxima, onde se poderia encontrar o objeto desejado. O negociante trouxe a coleção completa que possuía. Todas as cores e delas os matizes mais vários estavam representados. Tratava-se de escolher. Começou a dificuldade.
Foram abandonadas, lentamente, uma a uma, diversas cores e a escolha teria que se fazer, finalmente, entre o vermelho e o azul. O trem dera o primeiro sinal de partida e Raimundo Correia fazia passar as cores escolhidas pela fieira de seu julgamento de poeta. O vermelho – dizia – tem a cor do sangue e o sangue é a vida, é com ele que a natureza tingiu os lábios da mulher; vermelho era o cravo provocante da Cármen sensual, vermelha era a toga dos romanos, é a púrpura cardinalícia, é uma cor evocativa de vida, de vigor, de glórias passadas e de honras atuais. Decidir-se-ia pelo vermelho... Mas, não – o vermelho é o sangue que do inocente faz correr o assassino, é a papoula que simboliza o sono eterno, vermelho é o véu que envolve a cólera e a peste – vermelha é a varíola. Não, vermelho, nunca – prefiro ainda o azul, que é a cor do céu, que é o matiz dominante das asas das nossas borboletas, azul é a miosótis expressiva da lenda do Reno e que agora bem traduz a intenção de meu pensar. O trem dava sinal de partida, o calçado foi envolvido às pressas num pedaço de jornal. Após a escolha, o poeta, que se conservara mudo e pensativo, tomava rápido o trem, já em movimento, sem mesmo se despedir dos amigos. Eis que, nervoso, ele assoma à janela de um dos vagões, e os amigos, que esperavam o adeus, que se não dissera e a despedida que se não fizera, viram ao longe Raimundo Correia, que, agitando o embrulho, gritava-lhes: “Antes tivesse trazido os vermelhos.”
Tinha por hábito forçar a inspiração com usos de excitantes cerebrais. Veio a moléstia e os médicos proibiram o uso deles: quando se tratou, porém, do fumo, Raimundo relutou: “Se deixo de fumar, deixo de cantar – dizia – e não cantando sei que mais rápido morrerei”, e não deixou de fumar, e, poeta, morreu, cantando, reclinado sobre o seio da esposa amantíssima, após um passeio ao evocativo jardim das Tuilleries.
Foi para Raimundo Correia enorme tortura quando certa reforma judiciária veio estabelecer o julgamento de alguns crimes pelos juí0zes singulares. Teria, por si só, de resolver da sorte e da liberdade de indivíduos, visto que fora investido das funções de pretor, a quem competiam julgamentos tais. O menor pleito judiciário era para ele verdadeiro caso de consciência. Pesava todas as circunstâncias, procurando sempre se apegar àquelas que fossem atenuantes, quando não podia encontrá-las dirimentes. Sabia, pelo estudo da história da Criminologia, que as provas materiais, mesmo as que parecem as mais nítidas, as mais eloqüentes, podem não valer coisa alguma. Ciente estava que seu julgamento podia, se não destruir a vida, ao menos aniquilar a honra de um indivíduo, ou, o que é mais, de uma família. Quando tinha de se pronunciar de modo categórico, o nosso “bom juiz” sofria, torturava-se e sempre que era possível absolvia o réu.
Naturalmente, se assim o fazia, é que, mesmo nos casos patentes de crime, se tinha podido apegar a uma dessas nugas que a pragmática forense exige, e cuja não observância pode tornar nulo um processo ou insubsistente uma ação judicial. As agitações íntimas que se desencadeavam no cérebro e coração de Raimundo Correia eram verdadeiras procelas. Muitas vezes, a razão votava, condenando, mas o coração absolvia e nessa dificílima conjuntura, em que espíritos menos perfeitos vacilariam em se resolver ou pelo cérebro ou pelo coração, o nosso juiz encontrou uma fórmula verdadeiramente milagrosa, ditada pelo coração com pleno assentimento da razão e que deve servir de norma, de roteiro para aqueles que têm de exercer o dificílimo mister de julgar e punir. Raimundo Correia, com sua inteligência primorosa, com sua cultura jurídica perfeita, sabendo a fundo o valor das leis, o por quê e para que foram elas feitas, pensou – e pensou muito bem – que o juiz não deve ser um autômato, que se não deve cingir exclusivamente ao texto escrito, senão interpretar e aplicar, com inteligência e bondade, ao caso concreto as disposições legais correlatas.
Assim, pensava que o castigo, a punição e o público vexame só valiam como tais. Para certos espíritos, essas medidas eram contraproducentes; obrigavam a seguir sempre pelo caminho do mal indivíduos que, dotados de bom temperamento, foram vítimas de reflexo de momento, que fez com que incidissem em penalidades dos códigos, tornando-se eventualmente delituosos. Ora, observou Raimundo Correia, conhecedor como era da psicologia humana, que para tais pessoas mais valia que se lhes reconhecendo o crime não se lhes desse o público castigo a que tinham feito jus, segundo a lei escrita. Absolvia.
Com um apelo em regra aos bons sentimentos que restavam, e, por vezes, sobravam, entregava o criminoso de novo à sociedade, cobrindo-o com o véu protetor da bondade. Com o estimulo que fazia dos bons sentimentos, despertava-os, e, assim acariciado, e preso pela gratidão, fazia bom e útil tal indivíduo, que num desvario de momento se tornara criminoso ou a tal outro, que mal orientado na vida, sem o apoio de uma palavra ou conselho amigo, se tornara, quase inconscientemente, culpado, ou ainda aquele que, vítima da injustiça humana, se fazia criminoso por vindita contra uma sociedade toda cheia de falhas e que se arvora em puritana para torturar os infelizes que a desgraça momentânea, ou o mau entender do que seja a moral social, tornou criminosos. Em casos tais Raimundo Correia absolvia ainda.
Dada, porém, a liberdade em público e para o público, chamava em particular o delinqüente a seu gabinete, e, portas a dentro, a sós, com os ferrolhos corridos, sem testemunhas, exprobrava forte e dolorosamente o criminoso, mostrava-lhe as bases fundadas que tinha para condená-lo, e, com a lógica acolchoada de bondade, com sua palavra meiga, com seu espírito de poeta, fazia um pedido, solicitava, implorava ao infeliz que abandonasse o mau trilho em que se metera. Dizia que lhe dera a liberdade em troca da promessa formal que estava certo de obter, de que não reincidiria na culpa e que se tornaria um cidadão prestável. Acabava sempre solicitando que não consentisse que a sociedade o acoimasse, a ele, de juiz injusto e mau, que abria as prisões para soltar no seio da sociedade os criminosos, quais outras “feras”, destinadas a destruí-la. E os argumentos calavam fundo, e, não raro, as lágrimas que corriam aos pares dos quatro olhos que se fitavam, eram o selo do pacto que tacitamente se firmava... e a sociedade lucrava um elemento são que a ela de novo se assimilava como quantidade útil e produtiva, e o juiz sentia o indizível prazer do dever cumprido, satisfazendo plenamente sua consciência, ao passo que o coração se dilatava, cônscio de ter efetuado obra meritória.
E assim eram os julgamentos de Raimundo Correia.
É indubitável que não faltam espíritos irredutíveis que julgam que a espada de Têmis deve ser maciça, pesada e inflexível, que não pode ter a maleabilidade do florete, que é preciso ferir sempre fundo o coração e não pode provocar arranhadura compatível com a conciliação. Espíritos há que pensam que o crime, quando crime existe, só encontra remédio nos formulários dos códigos e que só estes são capazes de trazer a cura para essa moléstia social. Se assim fosse, não havia mister de juízes. Bastava que se encomendasse ao inesgotável gênio inventivo dos americanos do Norte certa máquina, destinada a fazer julgamentos, e em que se entrasse com o fato argüido de criminoso e os artigos do Código.
Qualquer operário boçal daria à manivela e a pena seria distribuída pelas entrosas do maquinismo. Não é essa a função do juiz e nem há código possível que pretenda encarar todas as faces do problema, tão multifária é a psicologia humana. Os códigos são somente instrumentos grosseiros para avaliar os fenômenos psicológicos. Devem consignar as oscilações máxima e mínima a que pode ser levado o espírito do juiz, mas não devem constituir um aparelho de precisão para medir delitos e distribuir justiça.
Os remédios que aconselham, por mais anódinos que pareçam, são por vezes recursos últimos e ainda muito grosseiros e de que os juízes só devem lançar mão como medidas supremas e que, praticamente, devem dormir na gaveta dos que julgam. A persuasão, as boas palavras, a convicção, a tolerância bem entendida e ampla, o exemplo e a justiça que na balança de julgamento use como peso a bondade e a clemência, colocando-se sempre, no julgar, o juiz na posição do réu, eis as boas normas que devem seguir aqueles a quem é confiada a dificílima tarefa de julgar e a mais difícil ainda de punir.
Esse modo de encarar a justiça no julgamento das culpas, quando abandonado, deu por vezes lugar a resultados verdadeiramente desastrosos. Se folhearmos a coletânea criminológica, vemos que muitos dos criminosos célebres se tornaram tais como represália à injustiça de que foram vítimas par ocasião da primeira culpa. Muitas vezes era esta perfeitamente justificável e sobre ela bem se poderia deixar cair o esquecimento. Assim, menos criminosos e mais homens proveitosos haveria na sociedade. O tipo do “Plumitas”, o bandido célebre, temor da Espanha, tão bem estudado por Blasco Ibáñez, em seu livro Sangre y Arena, é um desses monstros sociais filho da injustiça humana. O genial Victor Hugo encarna na figura simpática do tão bom quão infeliz Jean Valjean a vítima dos juízes que só julgam pela razão. Essa maneira de interpretar a Justiça concretizou Hugo ainda na figura mesquinha, de horizontes limitados, do impoluto executor da Justiça humana, Javert, que preferiu a morte a analisar à luz serena da bondade a decisão dos Tribunais que condenou ao cárcere aquele que furtou um pão.
De monstros, filhos da maneira ilógica de distribuir a Justiça, estiveram e estão ainda cheios os sertões de nosso país.
Os sertanejos honestos, de ontem, hoje cangaceiros criminosos, por vingança, acham, por ignorância de nossa moral social, que castigar o indivíduo que os injuriou é ato meritório, não passível de pena. Punidos, preferem romper com a sociedade e se tornarem bandidos. Assim surgiram o Jesuíno Brilhante e o famigerado José Antônio, do Fechado, no Ceará, e o terror atual dos nortistas, Antônio Silvino, que ainda hoje rega de sangue os sertões adustos dos ressequidos Estados do norte do Brasil. O ponto de partida da vida ensangüentada dos cangaceiros foi quase sempre um desses rigores mal interpretados na aplicação da Justiça em crime inicial passível de tratamento que entre nós instituiu o juiz-poeta, que foi Raimundo Correia, que tão bem soube aliar os ditames da razão aos do coração, sem subordinar um ao outro.
Com a prática desses sãos princípios as penitenciárias teriam menos habitantes e a sociedade lucraria outros tantos elementos de utilidade... Quando muito, haveria mister de mais alguns lugares nos manicômios: – são os casos incuráveis.
As idéias diretrizes dessas considerações já impressionaram certos países, como a França, que fez incluir nas suas leis a denominada lei Béranger, que só dá a condenação moral sem exigir o cumprimento da pena aos que, gozando de bons antecedentes, cometeram a primeira falta. É o reconhecimento, de um lado, da falibilidade da Justiça humana e de outro lado da confiança no estímulo às forças de regeneração de caráter dos culpados.
As conseqüências práticas desta benéfica lei não têm ainda o alcance considerável da solução que ao problema deu entre nós Raimundo Correia, que absolvia publicamente e condenava em segredo e juntava, assim, no seu condenado todos os sentimentos íntimos e esparsos que formam o brio e obtinha a cura de seu doente moral.
Naturalmente, o sistema de terapêutica jurídica de Raimundo Correia não pode ser substanciado em lei, é uma ação personalíssima: o remédio é o juiz. Seria necessário que desaparecesse: primeiro, o julgamento pelas coletividades como o “júri” – teoricamente instituição admirável, na prática péssima; que, segundo, todos os julgamentos fossem feitos por juízes singulares que deviam pautar seu proceder pelo do inolvidável juiz que foi Raimundo Correia, o médico leigo dos espíritos, que mais fez, absolvendo, que os outros condenando.
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Raimundo Correia sentia-se melhor escrevendo o verso que a prosa. São escassas até as páginas que deixou não metrificadas. Não obstante, quando se tratava de um amigo, não trepidava em abandonar a lira e, polemista vibrante, saía a campo, como, por exemplo, se deu quando tomou a defesa de Valentim Magalhães con¬tra a crítica do romance Flor de Sangue, crítica que lhe pareceu má e injusta. Ou então, em sentidos períodos, escrevia em prosa admirável a biobibliografia de Lucindo Filho, seu companheiro e amigo querido.
Primeiros Sonhos – Sinfonias – Versos e Versões – Aleluias e Poesias. Pelas páginas desses livros do mais formoso lirismo, Raimundo Correia, em aperfeiçoamento gradual e progressivo, deixou gravadas em versos burilados as vibrações de um espírito de escol, onde a idéia não é sobrepujada pela forma, nem a forma é sacrificada à idéia.
Nos versos de primorosa beleza onde o sentimento artístico enleva e a pureza de estilo encanta, não se encontra, como norma, o fraseado nebuloso e o escrever arrevezado que caracterizam o estilo falso, afetado, absurdo e gongórico. O poeta quis mostrar que, se não adotou esse modo de escrever, fizera-o por estética e não por desconhecê-lo, e a prova está na “Ode parnasiana” onde, na feitura dos verses primorosos em que a Musa, atendendo à sua evocação: “Em rapto audaz, nos rêmiges possantes transporta o meu ideal”, usou de termos empolados e alambicados, abandonando o vocabulário simples e sonoro que constitui, entre muitos, um dos encantos da poesia de Raimundo Correia.
A obra de nosso poeta é um hino constante ao “Belo”, quer a beleza se encarne na mulher – a obra-prima da Natureza – quer ela se concretize na paisagem encantadora com que o Criador dotou este nosso recanto abençoado do mundo, o Brasil. E no cantar a mulher, mãe, esposa, filha ou amante, ou no cantar a Natureza: céu, luz, flor ou verdura, fez vibrar tão intensamente os sentimentos amorosos, que bem podemos cognominá-lo: “o poeta do Amor”. E todo esse encanto, que nos deleita o espírito e que nos faz palpitar de emoção, está envolto em tênue bruma de doce melancolia que nos vem trazer suave repouso ao espírito quando se empolga de entusiasmo, vibrando fortemente em uníssono com as harmonias que se desprendem das primorosas estrofes do nosso Benevenuto do verso.
A obra poética de Raimundo Correia é o evangelho do Amor, sentimento delicioso, que ele estuda sob todos os aspectos. É o Cântico dos Cânticos. A força indomável surge no “Eviterno amor” e, ao nascer, já é tão forte que resiste à cólera divina. É o amor de nossos primeiros pais que, surpreendidos aos beijos e aos no Éden pelo Bíblico Deus, severo e rigoroso, sofre o castigo desse Deus que sobre ambos, vingadora a destra estende. Arrependem-se os culpados, mas o amor, que nasce, não finda, “pois o par amoroso se arre¬penda de ter amado, mas... amando ainda”, e assim nasceu o primeiro amor com o primeiro casal que veio à terra. E o sentimento que surgiu tão cheio de viço, vigor e força se foi alastrando pelo mundo afora, e ressurge cada dia, ou na donzela que como “Jéssica” ao sair do ninho espera o Romeu que lhe venha beijar “a púrpura em flor dessa pudica boca”, ou quando incandesce de desejos o adolescente, que, nas suas primeiras vigílias, sente o fervor de paixões no peito e, a gemer, exclama: Abeirai-vos de meu 1eito, ó sensuais visões da adolescência.
O amor desabrochado vai crescendo em cada um – porque o Amor é único, mas só vive em dois. – Já nos idílios do “Madrigal” suas metades se procuram.
E o amor criança se torna adolescente e vai progredindo, criando raízes e como a liana de nossas florestas enlaça os entes que se aproximaram e já no “Passeio matinal” o apaixonado lança o convite à sua bela para que desperte e venham fazer juntos o passeio matutino “cantando e rindo pelo bosque afora”, e com almas tão unidas que ele já não sabe “qual seja a tua, nem qual seja a minha”. O amor se fortifica, cresce a olhos vistos. Na “Missa da Ressurreição” Raimundo Correia nos leva, por uma madrugada de abril, através de uma de nossas perfumosas matas, onde a natureza, ainda mal desperta, se estremunhava nas frondes. Os jasmins alcatifavam a trilha por onde passava a Ema querida, embuçada na capa que a envolvia toda e de tal modo que unicamente:
Dois olhos de azeviche enamorados
E a ponta de um nariz mimoso eu via.
As árvores sonolentas despertavam e os ventos remexiam-se:
Pelos bambus em bamboleios lentos
E na espata e nas palmas dos coqueiros.
Assiste-se ao romper da aurora, ao partir gárrulo das aves que entoavam seus hinos amorosos, fornecendo o leitmotiv do amor, que era secundado pelos fulvos enxames zumbidores dos besouros, das moscas, marimbondos e vespas.
Pintando com as cores as mais adequadas o amanhecer de um de nossos brilhantes dias de abril, prolonga o poeta o passeio para prolongar o enlevo amoroso com a bem amada que chega à Igreja, já finda a missa da Ressurreição, quando “as girândolas rápidas voavam” e “da igreja ondas de povo borbotavam”.
A evolução do amor pelos diferentes estádios da vida humana é estudada progressivamente. Raimundo Correia nos faz presenciar a cena do casamento de “Zulmira”, e mostra-nos o amor paterno na dor dos pais ao se separarem da filha querida, que era o mimo, a frescura, a mocidade.
E como epílogo do amor puro que Raimundo Correia cantou desde a origem até a realização do casamento que une com os vínculos sociais e religiosos os amores amadurecidos, entoa o poeta o hino à maternidade na sua bela poesia “Fantina”.
E continua a cantar o amor. Mais tarde, quando a existência começa a bruxulear e os desenganos a envenenarem a vida, o velho de cabelos brancos, já despido dos belos sonhos e ilusões da mocidade, ainda sente palpitar no peito o amor da neta, em que vê ressurgir duas vidas. E a “Luizinha”, gárrula e ridente, ameiga como um alívio:
O avô – ancião de rosto austero e duro,
De níveas barbas e cabelo níveo.
Mas o amor não vive livremente. Parasitas se prendem à árvore em que frutifica, atrasando-lhe o desenvolvimento, fazendo-a definhar e matando-a, mesmo: a desilusão, a traição, o ciúme, o ódio são todos cantados sentidamente nas deliciosas estrofes de “Sóror Pálida” – “Vulnus” – “Missa aldeã” – “Beijos do céu” – “Continua” e... e tantas outras pérolas desse escrínio inigualável, que é a coletânea poética de Raimundo Correia.
Mas toda essa obra é coberta de nevoeiro diáfano de melancolia, que ora se condensa em lágrimas suaves como nas “Peregrinas”, ora, como nas “Pombas”, envolve os sonhos que céleres voavam e “que ao coração não voltam mais”, ora amortalha a mocidade que, como no “Vinho de Hebe”, passa por nós “e não torna atrás o seu caminho”.
Outras vezes, vai até o fundo do coração e da “alma, esponja de lágrimas e fel”. A “estrela funesta” das “Harmonias de uma noite de verão” envenena o espírito que sucumbiria se “uma alma compassiva” não fizesse que todos os males se cristalizassem na dor que destilada no coração deu a lágrima consoladora que tremula e reluz. “Subiu do coração, dos olhos vai cair” e se transforma em prantos, último alívio de quem chora e que leva o nosso poeta a bendizer a dor que pôde, como no “Bálsamo dos prantos”:
Na aridez desses olhos sempre enxutos
Duas fontes de lágrimas rasgar.
E saudades, e esperanças, e desilusões, e temores se sucedem e se entrechocam nos versos maviosos e formam a essência desse véu brumoso, tecido de tristeza, que envolve a obra máscula do “poeta do Amor”.
Mas Raimundo Correia é brasileiro, nasceu na terra que a natureza dotou com as maiores belezas que se conhecem e que imaginar se podem. Por isso, poeta, – exímio pintor, – que sabe dar com a pena os coloridos vivos e quentes de nossa natureza, traçando as mais belas paisagens de nossa terra; – cenógrafo incomparável – emprestou ao colorido de nosso céu, às infinitas variantes de nossa verdejante vegetação, às cambiantes de nossos incomparáveis crepúsculos o cenário em que canta o poema inesgotável do Amor, acompanhando-o das sinfonias compostas do sussurro de nossas fontes, do cantar de nossos pássaros, do ciciar das brisas pelas frondes dos coqueiros. Tudo nos faz cair em místico panteísmo diante do esplendor de nossa natureza e de nossa poesia.
Na técnica do verso Raimundo Correia foi de admirável correção. Seus versos de ductilidade pasmosa não são forçados e correm da pena fáceis e cheios de graça e de belezas outras, que não exclusivamente a da forma métrica.
Soube, com um malabarismo admirável dos vocábulos, tirar deles efeitos surpreendentes. Usou das figuras por contraposição com elegância e parcimônia. Colocava, um ao lado de outro, termos de contraste que se realçam mutuamente e que dão maior destaque à idéia a que servem. Outras vezes na sucessão dos vocábulos vêem-se colidir idéias antagônicas com o mesmo intuito de fazer ressaltar a idéia diretriz. Lembra a feitura desses versos a aplicação das leis dos contrastes simultâneos, sucessivos, e mistos das cores, de que o imortal Chevreul soube tirar tão grande partido e cujas leis estabeleceu em bases tão científicas. Esse modo de empregar palavras que nos fazem a impressão de serem coloridas, nos dá idéia da disposição conjunta das cores complementares que nos proporcionam as harmonias do contraste e se fazem sobressair mutuamente, dando mais vida ao assunto tratado. É como a colocação, lado a lado, do vermelho e verde, do alaranjado e azul, do amarelo e violeta.
Pode-se afirmar que poucos em nossa língua levaram mais longe o apuro do verso. Seus decassílabos e redondilhas, principalmente, são de inexcedível perfeição. Muito poucos são os poetas que, como ele, souberam variar ou deslocar nos versos as pausas, por necessidade de melhor expressão ou por quebrar a monotonia do ritmo.
O emprego parcimonioso e artístico do transbordamento (enjambement) é outra de suas admiráveis qualidades.
O adaptar com precisão o vocábulo á idéia ou sentimento a exprimir, o acerto dos epítetos, fazem de Raimundo Correia, neste particular, êmulo digno de Garção e Tolentino, em cujas poesias raro se poderá substituir com vantagem, por outro, tal verbo ou qualificação. Suas rimas, nunca vulgares ou pobres, têm excelsa nobreza. Sente-se que elas nasciam sem esforço e já opulentas e belas, esmaltando, quais gemas preciosas, suas estrofes inimitáveis, verdadeiras jóias celínicas.
Havia em Raimundo Correia um poeta que, se escrevesse na língua que adotou Heredia, seria capaz de ter produzido a coleção dos Trophées; mas aí estão suas Poesias para encher de patriótico orgulho os que falam a suave língua que embalou a nossa infância.
Quanto à escola poética, era sincero e fervente entusiasta do parnasianismo francês, como aliás consta da profissão de fé exarada no prefácio da primeira edição das Poesias, e como se manifestou praticamente na execução da sua obra poética.
Relanceemos por essa escola e vejamos quais os estádios de sua aclimação nos países de língua portuguesa, mormente no Brasil.
Em 1865, em Paris, certo número de poetas novos rimava, obedecendo à orientação de alguns nomes que tinham conseguido primazia entre eles.
Eram mestres Leconte de Lisle, em torno do qual se grupavam Sully-Prudhomme, J. Maria Heredia, Armand Silvestre e Léon Dierx. Outros obedeciam à orientação de Catulle Mendès, o poeta proteu, o rei do símil, o corrupião da literatura, que ora tomava a pompa de Victor Hugo, ora se confundia com Gautier, na admirável memória dos vocábulos, ora se tornava encantadoramente diabólico como Baudelaire, ora era Heine na sua divinização mórbida da mulher, ora Zola no seu realismo, por vezes revoltante. Catulle Mendès fundara uma revista, a Revue Fantaisiste, em que publicaram seus versos François Coppée; Albert Glatigny, Villiers de l’Isle-¬Adam, Mérat e Vallade.
O livreiro Lemerre, que se fizera editor de um jornal de Louis Xavier Ricard, intitulado L’Art, entrou em acordo com os representantes desses diversos grupos de poetas, que se afastavam francamente do velho romantismo que até então preponderara na poesia francesa, e lembrou a idéia de se fazer da revista um repositório poético como os que se encontravam no século XVI. Publicá-lo-ia em fascículos, que pudessem ser ulteriormente reunidos em volume. A idéia foi aceita, e, discutindo-se o título da nova revista, acordaram em que se lhe desse a denominação de Parnasse Contemporain, como um cartel atirado aos críticos. Com efeito, a este nome Parnasse a poesia do século XVIII e do império tinha afivelado a idéia do ridículo.
O novo jornal de arte poética deveria ser para a poesia, segundo o desejo de seus fundadores, o que o Salon era para a pintura. Fundado o Parnasse Contemporain em 1866, nele começaram a aparecer os versos das escolas reformistas de Leconte de Lisle e Catulle Mendès, e mais os de outros poetas que se grupavam em torno dos nomes de Th. Gautier, de Théodore de Banville, de Char¬les Baudelaire. Todos eles se tinham reunido ali sob a égide e à sombra do grande carvalho da poesia francesa: Victor Hugo.
O Parnasse Contemporain se apresentava como reformador e, como tal, logo alvejado pelos mais acerbos ataques. Foram, então, os poetas que nele colaboravam intitulados pela crítica mordaz de parnasianos, vocábulo que corria nos dicionários da época como significando fabricante de versos ridículos.
A escola que então se instituía, se apresentava, sobretudo, como vestal do estilo, ciosa antes de mais do ritmo e da beleza plástica do verso. Era o renascimento poético, sucedendo ao romantismo esgotado. E como a forma correta e a pureza do estilo constituíam preocupação capital da nova escola, foram os seus adeptos cognominados pejorativamente de estilistas, formistas, fantasistas (alusão à Revue Fantaisiste, de onde tinha tomado uma de suas origens).
O ridículo, lançado sobre os novos, caíra no domínio do povo. A coisa chegou a tal ponto, que, conta Catulle Mendès: Por ocasião de um atropelo de carros numa rua de Paris, um dos cocheiros que se disputavam – porque o disputar é próprio dos cocheiros de Paris – depois de esgotado o enorme vocabulário de insultos populares, atirou a seu adversário vencido essa injúria suprema, contra a qual não havia a retorquir: Parnassien, va!. E assim eram tratados os parnasianos, que, segundo Catulle Mendès, só tinham o crime de não ignorarem completamente a sintaxe francesa e se deleitarem com o som das boas idéias.
Pouco a pouco os poetas do Parnasse se foram dispersando e readquirindo liberdade, formando escolas outras. Dentre os talentos mais originais, que momentaneamente se tinham grupado em torno do programa da nova revista e que se foram libertando para constituir novos centros, cumpre citar Ch. Baudelaire, Sully Prudhomme, Fr. Coppée, Stéphane Mallarmé e Paul Verlaine. O evolver destes dois últimos teve repercussão especial e imprimiu grande força sobre a direção do recente movimento poético francês, a que pertencem os poetas a que se têm dado sucessivamente as denominações de decadentes, deliqüescentes e simbolistas.
E foi assim que se originou a escola parnasiana.
Ao mesmo tempo que em França se fazia a reação a favor da forma e do estilo, em Portugal, igual movimento se processava.
Antônio Feliciano de Castilho, em carta que dirigiu ao editor do livro Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, acusa de falta de bom senso e bom gosto os literatos que, em Coimbra, se tinham filia¬do ao grupo capitaneado por Antero do Quental, Teófilo Braga e Vieira de Castro.
Essa carta deu início à denominada questão coimbrã – 2 de novembro de 1865. Ao escrito de Castilho, que contava então 60 anos, responde Antero do Quental, que tinha apenas 25, com outra carta intitulada “Bom Senso e Bom Gosto”. Aí se faz o mais agressivo ataque ao ancião ilustre. É acusada a escola lisboeta, de que era chefe Castilho, de não ter idéias e de não serem seus adeptos se¬não “adoradores da palavra que ilude o vulgo e desprezadores da idéia que muito custa e nada luz”.
São os lisboetas considerados “apóstolos do dicionário que têm como evangelho um tratado de metrificação”. Antero de Quental julga que o ataque da escola de Lisboa não visa à escola coimbrã, senão “à independência irreverente dos escritores que entendem fazer por si seu caminho sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e sua consciência”.
Assim se travou em Portugal, no terreno literário, uma das mais apaixonadas lutas em que, de parte a parte, houve os maiores excessos de linguagem e injustiças de julgamento. Não cabe aqui assinalar os marcos desta luta que envolveu quase todos os literatos da terra de nossos antepassados e nem se pretende fazer alusão aos numerosos folhetos e pasquins que então se publicaram, e onde corre o fel duma discussão envenenada e agressiva.
Lisboa batia-se pela forma, pelo bom estilo, pela sintaxe, pela beleza da língua. A escola coimbrã achava que a idéia sobrepuja a tudo, mesmo quando era nebulosa e exposta em estilo falso e afetado. E o era de tal modo, que Bulhão Pato, a ele se referindo, dizia que uma das maiores provas de absurdo daquele estilo é “que até para o defenderem precisavam de o abandonarem”.
A refrega continuou e nela tomaram parte saliente, além de outros, Pinheiro Chagas, Júlio de Castilho, Camilo Castelo Branco, Teófilo Braga e Ramalho Ortigão. O resultado favorável não tardou em se manifestar e as letras portuguesas só tiveram que lucrar.
Foi por volta de 1830 que aqui no Rio se reuniam, no antigo Café Cruzeiro, alguns talentos que se formavam promissores das celebridades que hoje nos honram, para ouvir as impressões e a palestra amena daquele que transplantou para o Brasil o parnasianismo francês, e que aqui fez a sua aclimação. Artur de Oliveira, que privara na intimidade dos que freqüentavam a redação do Parnasse contemporain e que se identificara com as diretrizes da escola, referia a nossos jovens poetas como os parnasianos intentaram estabelecer na França o culto da forma, como se trabalhava ali no burilar do verso, como se afinava a pena para obter a música dos sons, como se combinava a sílaba aguda à grave na harmonia dos vocábulos. Prelecionava com entusiasmo sobre a composição do verso, sobre a maneira de vestir a idéia com graça e donaire, e não deixá-la andrajosa e analfabeta. Foi aí, nesse Café, que se acrisolou entre nós o núcleo dessa poesia artística onde os novos admiravam e pensavam fazer no verso o que na estatuária fizera o imortal autor do Perseu, que enriquece a “Loggia del Lanzi”, na capital artística da Itália.
Nessas palestras, Artur de Oliveira relatava a emoção que experimentara quando foi apresentado a Victor Hugo e o horror que sofrera ao se sentir em casa de Hugo caricaturado por Gustave Doré: a caricatura – a prostituição do semblante – como ele dizia horrorizado.
Ouviam-no recitar as belas peças de poesia parnasiana, entre outros Teófilo Dias, Raimundo Correia e o mais brilhante dos parnasianos, a glória mais pura da poesia brasileira contemporânea, cujo nome vejo brotar dos lábios de todos e que não declino, medroso de ofender a pureza de sua modéstia, tão grande quanto o talento que originou a “Ode ao Sol”.
E foi assim que se fundou entre nós a escola parnasiana, de que Raimundo Correia foi um dos mais lídimos representantes.
Homem – personificação da bondade que se cristaliza no juiz que corrige, perdoando. Poeta mavioso – que entoou o mais empolgante hino ao Amor, em estâncias em que as mais belas idéias são vestidas da mais impecável forma. Conhecedor profundo das belezas de nossa língua. Estatuário da poesia, cinzelador do verso, pintor de nossa natureza, músico das mais harmoniosas e sonoras rimas, Raimundo Correia foi glória puríssima das letras pátrias: estilista, formista, fantasista, parnasiano – injúrias de outros tempos; hoje, títulos de invejáveis glórias.