Luciana Hidalgo
O GLOBO (8.12.2001)
A escritora Zélia Gattai, viúva de Jorge Amado, foi eleita ontem (7/12/2001) para a Academia Brasileira de Letras (ABL), passando a ocupar a cadeira 23, antes pertencente ao marido. (...)
A cadeira de Jorge Amado carrega a mística de ter como patrono José de Alencar e como fundador Machado de Assis.
Zélia Gattai chegou perto da unanimidade, elegendo-se a quinta mulher da Academia e a primeira viúva de acadêmico a ter uma cadeira na ABL. Sobre este fato, o presidente Tarcísio Padilha comentou:
- Não pesou na votação o fato de Zélia ter sido mulher de Jorge, pois ela é uma escritora de personalidade própria. Eles formavam um casal, mas tiveram trajetórias separadas. Além do mais, ela tem uma enorme capacidade de comunicação. Há escritores que escrevem muito bem, mas, quando o livro acaba, deixa uma sensação de vazio. Ela não, ela capta a alma. E é uma grande figura humana.
Escritora é a quinta mulher eleita para a Academia
A escritora Nélida Piñon, que ao sair da sessão foi quem contou, pelo celular, a boa nova a Zélia, estava contente com a eleição de mais uma mulher na ABL (as outras são Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, além de Dinah Silveira de Queiroz, já falecida).
- Zélia ganhou como escritora e como notável, pois é uma grande personagem da vida cultural do país - elogiou Nélida, antes de partir para a festa que celebraria essa vitória, em Copacabana.
Escrever sempre com o coração
Cecilia Costa
Tudo veio tarde. Começou a dirigir aos 45 anos, escreveu o primeiro livro aos 63, furou as orelhas aos 80, foi operada de apendicite aos 83. E, agora, aos 85 anos, Zélia Gattai está tendo a maravilhosa surpresa de se tornar imortal, ocupando a cadeira que era do marido. Emocionada, diz que ele foi o seu mestre. A literatura, comenta, sempre será necessária no mundo. Só não tem força contra bombas atômicas.
Zélia, chegou a imaginar que se tornaria imortal?
ZÉLIA GATTAI: Nunca poderia imaginar que eu seria a primeira mulher a ocupar a cadeira do próprio marido. Eu estava numa tristeza profunda, como se tivesse caído num vazio, pensando como ia continuar minha vida na casa do Rio Vermelho sem Jorge. Não pensava em nada, nem de longe estava pensando na Academia, quando alguns amigos, como Eduardo Portella, Arnaldo Niskier, Antonio Olinto, insistiram para que eu me candidatasse. Portella é amigo de mais de 40 anos. Jorge chamava ele de Príncipe e ele o chamava de Jorgito. Ele está presente em meu livro "Códigos de família", homem de grandes frases, que faz a gente rir com imensa facilidade. Nunca diz que um amigo entrou pelo cano, diz que tubulou...
Seus filhos a apoiaram...
ZÉLIA: Tanto a Paloma quanto o João Jorge. "Você tem que se inscrever, mãe", insistiram. "Você vai ocupar a cadeira do pai. Ele esteve 40 anos lá, ia ficar tão contente. Toda vez que ele foi à Academia você freqüentou com ele, você conhece o ambiente, você estima a Academia, faz parte daquela casa".
Mencionaram a obra, sua trajetória, não foi?
ZÉLIA: É verdade, também afirmaram: "Você já é uma escritora, você não vai lá dizendo de cara, ah, eu sou herdeira dele e quero tomar conta, não é questão de ser herdeira porque isso não existe. Você pode ir porque você tem seus leitores, seus livros se sucedem" . E é verdade. "Anarquistas, graças a Deus", por exemplo, já está na 40 edição. Corre o mundo.
São 13 ao todo?
ZÉLIA: Sim, escrevi romances, três livros infantis e publiquei um livro de fotografias. Durante muitos anos tive laboratório em casa. Há fotografias de Jorge em capas do livro do mundo inteiro, tiradas por mim.
Voltando à Academia, entende este frisson por todo o Brasil, esta sedução da casa?
ZÉLIA: Não, não entendo este movimento para entrar na Academia. Quando me inscrevi como candidata eu não tinha nenhum conhecimento de que tivesse havido outro candidato antes. Por exemplo, Jô Soares, que é uma pessoa da minha maior estima, eu não sabia que ele estava interessado. Nem Paulo Coelho, escritor com um sucesso formidável. Foi com a insistência da Paloma, do João, de Portella, Niskier, Antonio Olinto, Murilo, que me inscrevi. E depois começou aquela coisa toda. Paulo Coelho me telefonou, me escreveu uma carta, dizendo que não havia outra pessoa para substituir Jorge.
A inscrição a ajudou a sair daquele terrível vácuo?
ZÉLIA: Daquele buraco me levantou um pouco, sim. Teve aquele falatório todo. As cartas que recebo de leitores, mais de 30 por mês, eram todas dirigidas neste sentido. "Queremos que você vá para a Academia, não dê confiança às más línguas". Pessoas revoltadíssimas contra quem falou mal de mim. Uma coisa me deixa assombrada. Como é que pode ter esta repercussão tão grande? Até mesmo fora do pais. Ainda agora eu fui ao México e todo mundo falando sobre a alegria que seria me ver na Academia. "Não tem conversa, não tem dúvida, é você quem vai entrar", diziam. E não eram só brasileiros que falavam isso comigo. Os mexicanos também. Na Bahia é loucura. Uma coisa do povo. Quando saio de casa até o vigilante da rua comenta. No supermercado me falavam: "queremos ver a senhora lá". Isso me conforta.
Zélia, o homem às vezes atrapalha a criação literária da mulher. Jorge tinha ciúmes da mulher-autora?
ZÉLIA: Jorge era exatamente o oposto. Sendo o grande escritor que era, um homem que estava acima de tudo, se não fosse por ele eu não teria escrito nenhum livro. Foi ele quem me animou a escrever. Eu só contava as histórias. Quando começo a contar, vou longe. Uma história puxa a outra. E tenho o que contar. Tive uma vida muito rica.
Ele a estimulou, então?
ZÉLIA: Ele disse: "Escreva o livro da sua infância. Você tem muito a contar. Agora, lhe dou um conselho. Não tente fazer literatura. Você não é uma literata. Você é uma pessoa simples". Ele viu umas páginas que eu tinha escrito para a Paloma e me disse: "Escreva do jeito que você escreveu essas páginas. Escreva com teu coração, com teu sentimento. Escreva a história de São Paulo, da tua infância. Quando começaram a chegar os primeiros automóveis. Quando ainda não existia arranhas-céus, tua vida no meio dos imigrantes de todas as nacionalidades. Tuas experiências. Você tem tanta coisa para contar, minha filha, que você pode fazer um livro com teu coração, não com literatura. Porque literatura barata é uma desgraça". E você vê, me disse ele, eu também escrevo com o coração. Com emoção. O livro bom é aquele que emociona a gente. Durante 56 anos Jorge foi meu marido, foi meu mestre, foi meu amor. Ele me ensinava as coisas. A procurar a palavra exata. Por causa dele escrevi sempre com o coração, sem usar citações, buscando palavras simples. E ele ficava encantado com o meu sucesso.
Jorge deve estar feliz lá no céu...
ZÉLIA: Toda manhã vou ler os jornais ao lado dele, perto da mangueira, no banquinho que costumava me sentar, e leio todas as notícias em voz alta. Eu falo: "Você estaria, eu sei, muito aborrecido com esta guerra". Converso com ele. Botei junto dele os sapos de que tanto gostava. Acho que a literatura será sempre necessária. Mas não neste momento de guerra. Estou assustada com a possibilidade de que, num momento de desespero, joguem bombas e acabem com o mundo.
07/06/2006 - Atualizada em 06/06/2006