A Acadêmica Ana Maria Machado foi escolhida para fazer a saudação a Alberto da Costa e Silva na sessão da Saudade na última quinta-feira, dia 30. Em sua fala, ela falou do assombro que teve ao ler a Enxada e a lança: A África antes dos portugueses, segundo ela um livro transformador de leitores e de toda uma cultura.
Também evocou a grandeza do Acadêmico morto na última semana como historiador, pesquisador minucioso e profundo, poeta sensível e crítico literário que não se deixava enganar. A sessão da Saudade contou com a presença de familiares de Costa e Silva, entre filhos, noras, neto, irmã e do monsenhor Sergio Costa Couto.
Leia abaixo o texto completo:
“Tentar evocar a grandeza de Alberto da Costa e Silva é um tremendo desafio. Não pretendo nem preciso fazer isso, pois todos nesta Casa reconhecemos a dimensão singular da inteligência e da personalidade desse intelectual brasileiro extraordinário que nunca hesitou em enfrentar desafios de todo tipo. De minha parte, sei perfeitamente do assombro que tive ao mergulhar na leitura de A enxada e a lança: A África antes dos portugueses, um livro transformador de seus leitores e de toda uma cultura. Sem favor nenhum, uma das grandes obras universais. Uma obra capaz de revelar nossas raízes ancestrais e de detectar o que nos torna singulares no mundo, mergulhando no patrimonio que nos chega desde Afonso Henriques e sua gente , de cara para o mar oceano, e desde Nok e a expansão dos bantos, numa Africa que não gravitara em torno do Mediterraneo. Um livro a nos mostrar quem somos e quem podemos ser, ancorado em pesquisa sólida, documentação escrita, material antropológico, e evidências arqueológicas concretas . Muito além do legado da mera oralidade, por mais rica que essa tradição possa ser. Como se não bastasse, esse estudo fecundo se prolonga e se ramifica em outros volumes gloriosos, como A Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700. Ou o maravilhoso Um Rio Chamado Atlântico:. A África no Brasil e o Brasil na África, com o qual coroou a trilogia alguns anos depois. Em seguida, como se fosse pouco, Costa e Silva surpreende seus leitores ao nos contar, despretensiosa e corajosamente, a história do Chachá, em Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos -- fruto de uma atenta garimpagem em que, como assinalou nosso confrade Caldeira, ”as fontes são fragmentos duramente minerados em trechos esparsos de uma infinidade de documentos que não têm o personagem como tema” mas conseguem revelá-lo em sua inesperada ambiguidade complexa, a mostrar que a realidade ultrapassa estereótipos e maniqueísmos. No entanto, o trabalho atento do historiador e do pesquisador minucioso e profundo nunca abafou em Alberto da Costa e Silva a sensibilidade do poeta, o domínio da linguagem criadora ou o espírito crítico do leitor de literatura que não se deixava enganar. Mais até do que a consagração vinda com o Prêmio Camões ou o reconhecimento do Juca Pato, são prova disso seus poemas, bem como suas páginas de reflexão ensaística sobre literatura, musica ou artes plásticas. Ou seus livros de memórias, pelos quais tenho especial predileção como leitora e repeti isso a ele algumas vezes, sabendo que a observação o deixava feliz. O memorialismo de Costa e Silva transporta o leitor ao tempo evocado, recusando-se a ser mero espelho de uma personalidade voltada para si mesma, construção de imagem para a posteridade ou lembranças individuais, mas funcionando como uma janela sobre outra época , capaz de revelá-la em seus detalhes significativos, seus traços coletivos, seus personagens únicos. Como poeta, sua voz é requintada e essencialmente lírica. Rigorosa no domínio da técnica. Valentemente amorosa, celebra com intensidade os meandros da emoção filial ou sua comovente dedicação a Verinha, amor da vida toda. Do diplomata Alberto da Costa e Silva, outros falarão com maior conhecimento e profundidade. Mas é impossível não celebrarmos seu papel admirável na construção e aprofundamento de relações culturais, nas sólidas amizades com intelectuais e políticos que soube estabelecer e manter em diferentes países onde serviu, no afeto e admiração cultivados com os melhores quadros locais, por toda parte em que andou. E nunca vou esquecer que foi com ele que aprendi que o diplomata, como o poeta, trabalha com as palavras. De todas essas qualidades, tivemos amostras constantes nesta Casa, no convívio amigo, inteligente e instigante de cada dia. Na bússola que Alberto foi para nossa navegação, como declarou o presidente Merval Pereira. Na sua capacidade de rabalho incansável e na atuação generosa em prol desta nossa Academia, instituição que Costa e Silva sempre entendeu e fez entender como um tecido vivo de permanência e transformação - concomitantes e simultâneas. Quando nela entrei, Alberto da Costa e Silva ocupava a presidência. Por coincidência, compromissos já assumidos levaram a que, na manhã do dia seguinte da eleição, viajássemos ambos para Buenos Aires onde se realizava uma feira literária e nos hospedamos na residência do embaixador Botafogo Gonçalves. Tivemos então alguns dias de imediato convívio intenso e conversas intermináveis que, para mim, representaram um mergulho direto no conhecimento da vida acadêmica , na compreensão do que significam a memória e o papel desta instituição, seus desafios, seus sonhos, suas possibilidades e percalços. Aí estabelecemos afinidades e uma espécie de cumplicidade confiante que se aprofundou com o passar do tempo e o afeto crescente. Aprendi a admirar a atuação de Alberto nesta casa, como acadêmico exemplar. Fortificados por seus conselhos, em sucessivas administrações demos ênfase e expansão à biblioteca, ao arquivo, ao setor de lexicografia. Quando a diretoria trouxe projetos ainda vagos de abertura nossa para parcerias com moradores de comunidades, projetos com presidiários, ou conversas sobre historia e cidadania com aspirantes em quarteis da PM, logo ele encampou tais ideias com entusiasmo. Da mesma forma que, anteriormente, estimulara convênios com universidades estrangeiras que estudassem obras de acadêmicos – e já dera o exemplo, concebendo e assinando o primeiro deles, com Oxford. Transitava entre o local e o internacional com igual desenvoltura, atento sempre aos interesses da ABL e do Brasil em primeiro lugar. Igualmente, como consultor editorial, foi um dos responsáveis por reedições críticas cuidadosas de obras de acadêmicos como Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles, encomendando prefácios primorosos que colaboram para mantê-las vivas no mercado. Em tudo desempenhava o papel precioso e fundamental de conselheiro experiente, encarnando a tão necessária função dos tradicionais conselhos de sábios anciãos da tribo, que ajudam a guiar as gerações mais novas e a levar adiante a trajetória humana. Reconhecemos todos a felicidade que tivemos em poder contar com ele. Sua experiência era um farol nas situações delicadas, orientando com sabedoria e discernimento – às vezes mostrando como reagir, às vezes indicando como calar e aguardar, mas já cuidando de ter a reação pronta para o momento oportuno. Exigente em matéria de ética, era um estrategista de mão cheia. Foi guia e mestre por um lado, mas também era um cidadão entusiasmado, sempre disposto a colaborar – fosse ocupando um cargo trabalhoso como diretor da biblioteca, fosse se dispondo a voltar à diretoria como primeiro-secretário, fosse apenas trocando ideias e aconselhando. Sua assiduidade e participação direta nas nossas sessões sempre foi generosa e atenta . Até o final, não se poupou, mesmo que isso lhe custasse. Mas não posso encerrar essa evocação sem um toque pessoal, pelo qual me desculpo. Alberto foi um grande e querido amigo, de uma amizade selada em conversas francas, bem humoradas e frequentes. Durante alguns anos eu lhe dei carona para vir e voltar da ABL. No caminho, íamos ficando cada vez mais próximos. Ele sugeria leituras e me emprestava livros. Fazia questão de comentar comigo em detalhes cada novo romance meu que saía, revelando-se um leitor atento, capaz de contextualizar suas observações num quadro amplo, que podia trazer de repente um exemplo inesperado de Manuel Bernardes ou um saboroso proverbio da cultura popular lusitana. Quando eu fiz oitenta anos, em plena pandemia, surpreendeu-me ao me explicar que se recusara a gravar um podcast para me festejar, porque se sentia inseguro em falar em público, já com os primeiros sinais das dificuldades de locução que depois iriam se acentuar. Mas fez questão de me confessar, quase ao pé do ouvido, o que pretendera dizer, se o tivesse feito: revelou que iria começar falando em minha obra de pintora, comentando quadros meus que vira muitos anos antes e dos quais se lembrava. Coisa que eu jamais poderia imaginar e me era trazida agora, como um presente carinhoso. Nos últimos tempos, quando nossas conversas foram rareando, propus que passássemos a nos comunicar por escrito, por email. Mas também isso foi ficando difícil. Vou continuar sentindo muita falta do amigo, com saudade dessas trocas pessoais. Mas sua herança inestimável aí está, intacta, para todos os brasileiros. Fica com todos nós. Um legado precioso, patrimônio coletivo sobre o qual me atrevo a afirmar que o tempo terá pouco poder de diminuir.”
01/12/2023