Antonio Risério foi o “ponto”, e afirmou que o identitarismo acha que tem a verdade absoluta, que todos devem se ajoelhar diante de seus dogmas, que é portador do destino histórico da humanidade, como faz uma combinação terrível de ignorância e sectarismo. Eduardo Giannetti, fez o “contraponto”, salientando que Risério toma a parte pelo todo e descreve o identitarismo como se fosse um movimento homogêneo que não é, e que há uma distância entre lideranças e seguidores. Edmar Bacha foi o mediador, no debate sobre identidade e identitarismo no ciclo “Ponto e Contraponto – discursos em tensão”, que aconteceu na última terça-feira, dia 13, na ABL. Houve, no entanto, momentos em que ponto e contraponto convergiram, como sobre importar conceitos políticos da academia norte americana para o contexto brasileiro e sobre a dificuldade dos identitaristas de aceitarem os que não pensam como eles.
O mediador Edmar Bacha fez uma provocação a Risério, afirmando que, pela análise e pela forma que apresentou a questão, especialmente quando disse que estamos importando conceitos racistas dos Estados Unidos e que deveríamos voltar à esquerda tradicional com sua preocupação com as classes sociais, parecia estar adotando a perspectiva de que são as classes que importam, e não as raças. O antropólogo respondeu que não se pode dividir, como estão dividindo no Brasil, opressão de classe com opressão de raça. “Não se pode falar que a desigualdade social é um problema da mulher, ou problema do negro. A coisa é muito mais complicada”, afirmou.
Leiam aqui os principais pontos do debate. A íntegra pode ser vista no canal da ABL no Youtube.
Falando online direto da Ilha de Itaparica – por motivo de doença, não pôde viajar - o antropólogo Antonio Risério começou contando o que pensa a respeito do identitarismo, segundo ele, “uma onda de absolutização de identidades grupais e de sacralização desses mesmos grupos, todos supostamente “oprimidos” pela civilização ocidental e a sociedade capitalista.“A postura identitarista, diante de qualquer crítica, é forçar o crítico ao silêncio. É procurar desqualificá-lo, atacá-lo como machista ou supremacista branco, acusá-lo de lutar apenas por seus próprios interesses e privilégios. Afinal, o identitarismo tem a maquete da sociedade perfeita nas mãos e não vai perder tempo discutindo o assunto com quem pensa diferente. Quem pensa diferente, na verdade, sofre de algum insuperável déficit moral e é inimigo da felicidade humana.”
A primeira premissa de Risério para justificar sua opinião é de que raras vezes, na história política e social recente do planeta, um movimento ocidental, partindo de causas fundamentalmente justas, terá se perdido e se pervertido tanto, pelos descaminhos da mentira, da fraude, da trapaça, da ignorância, da violência e do autoritarismo.
Partindo daí, ele sugere que não teremos como construir um futuro coletivo comum com base no fragmentarismo, na guetificação, no neorracismo e no neossegregacionismo que caracterizam ostensivamente a práxis multicultural-identitarista, hoje ideologia dominante tanto no “establishment” político-acadêmico, quanto no “establishment” midiático-empresarial. “Em tela, a negação da nação. Partindo de Hegel, o filósofo esloveno Slavoj Zizek vai ao ponto central. A identificação primária do sujeito é com a comunidade “orgânica” primordial em que nasceu. O sujeito supera este vínculo primário quando se identifica com uma comunidade maior, secundária, “artificial”, “universal”, que é a nação. A nação nasce, portanto, de uma nacionalização do étnico. E o que o multicultural-identitarismo propõe é o percurso inverso: a etnização do nacional. E o modelo aqui são os Estados Unidos, país que nasceu multicultural, onde o Estado-Nação é cada vez mais vivido como mero marco formal para a coexistência de uma multiplicidade de comunidades étnicas, sexuais, de estilo de vida, etc. Para não falar do Canadá, que, antes de ser uma nação, é uma espécie de condomínio, onde, se Québec obtiver a independência, aquilo provavelmente se desintegra. É neste sentido norte-americano que se pretende reordenar o Brasil.”
Risério lembra que há 20 anos, quando lançou seu primeiro livro de crítica e de alerta a propósito do identitarismo, o historiador carioca José Roberto Pinto de Góes, num pequeno artigo de jornal, avisava: “o Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial. Mas isso só poderá acontecer à custa de muita desinformação sobre o nosso passado. “E sobre o nosso presente”, acrescento. “A menos que os mestiços brasileiros, que formam a imensa maioria da população do país, se assumam como tais. O que é cada vez mais difícil.”
No começo deste século, continua Risério, o sociólogo identitarista Antonio Sérgio Guimarães dizia que, pelo simples fato de pretos serem socialmente estigmatizados, mestiços brasileiros jamais se diriam negros. “Respondi na época que diriam, sim: desde que houvesse vantagens objetivas – emprego e renda, principalmente –, a “lei de Gerson” iria se impor. E é o que vemos hoje: com patrocínios do poder econômico privado e benesses do poder público, tudo quanto é mestiço corre para se declarar “negro”. Ser mestiço, hoje, não dá camisa a ninguém. O negócio é ser negão, mesmo que a pessoa não tenha uma só gota de sangue negro em suas veias.”
Eduardo Giannetti dividiu o roteiro de sua fala em cinco proposições:
A primeira é a concordância com a luta contra os preconceitos de gênero, de cor e de orientação sexual do movimento identitarista. “São causas fundamentalmente justas”, disse, complementando que a defesa da igualdade perante a lei, da igualdade de direitos e de oportunidadessão o objetivo maior das causas identitárias. “Me solidarizo com os identitários no movimento de denúncia, de crítica, e de combate intransigente a manifestações de preconceito e de desigualdade que são parte da nossa vida e que não podem ser escamoteadas como foram durante muito tempo, inclusive na chamada ideologia da democracia racial.
Nas outras quatro proposições, ele se posiciona no que aponta de errado, de problemático e de questionável nos identitaristas. A segunda fala sobre a cultura do cancelamento e o espírito inquisitorial obscurantista que muitas vezes toma conta das lideranças do movimento. “O que restará a quem decidir aceitar e se interessar apenas por criações intelectuais e artísticas de pessoas ótimas, de pessoas exemplares? Não restará ninguém. Podem escolher; Marx, Shakespeare, Fernando Pessoa, Dostoievsky, Picasso. Todos eles não passam no crivo dessa santimônia que toma conta de boa parte do identitário. Karl Marx falou coisas horrorosas sobre os povos latinos e eslavos; Shakespeare tem duas peças em que transparece o antissemitismo – O Mercador de Veneza – e racismo contra latinos e caribenhos – A tempestade. Fernando Pessoa, misógino, antissemita. Dostoievsky, defensor do maior obscurantismo politico do czarismo russo. Picasso, que agora querem banir por conta da sua maneira extremamente violenta contra mulheres. Não sobre ninguém. Isso é um obscurantismo e um retrocesso e não posso aceitar.
A terceira proposição ele diz que aprendeu lendo o livro de Antonio Risério, “A utopia brasileira e os movimentos negros”. O equívoco que significa importar categorias e conceitos políticos da academia norte americana para o contexto brasileiro. Na essência, a negação da realidade que talvez mais nos defina: o caráter mestiço da nossa gente, da nossa cultura, da nossa vida, em todas as dimensões.
Giannetti fez uma autocrítica em relação às cotas raciais, pois no primeiro momento foi contra. “Hoje, examinando o impacto delas, vejo que provavelmente estava equivocado. É um movimento forte, importante, de incorporação e de resgate de uma dívida que temos com essa população, que sofreu uma brutalidade inominável durante séculos e que continua extremamente aquém de um mínimo de respeito.
A quarta proposição é o perigo que representa a sedução do juízo binário, a ideia de que podemos, em tudo o que se apresenta, estabelecer com clareza uma postura de nós contra eles. Como se o mundo, com sua complexidade, coubesse nessa binaridade. O juízo binário tem raízes arcaicas e profundas no cérebro e na mente humana. Não podemos, na politica, embarcar nessa simplória redução da complexidade a um mundo de nós contra eles, e muito menos à ideia de que, se não está perfeitamente alinhado conosco, está contra nós. Não estou perfeitamente alinhado com o identitarismo, mas reconheço nele a expressão legítima e bem intencionada no combate a problemas muito centrais da convivência brasileira no tocante ao preconceito e à desigualdade.
A quinta proposição é o enorme risco de fragmentação e dispersão que representa o identitarismo quando ele se torna excessivo, sectário e quando deixa de reconhecer aspectos essenciais da vida brasileira, como a mestiçagem e a desigualdade que está por trás dos indicativos de desigualdade que claramente mostram a existência de grupos sociais totalmente privados do acesso a direitos elementares.
15/06/2023