É com conforto, de tênis, que Heloisa Teixeira, ex-Buarque de Hollanda, vai to- mar posse. Usará o fardão naturalmente, apesar de decepcionada ao constatar que foi aposentado o tubinho, longo e molengo, com bordados acompanhando um decote em vê, criado para a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, a escritora Rachel de Queiroz. A roupa de Rachel para a posse fez o chá das cinco reverter-se numa arena de moda, num dos debates mais curiosos do fim dos anos 1970, como Heloisa constatou num delicioso artigo: “Do samba ao futebol, passando pelos políticos, a festa de Rachel ganhou um tom de conquista nacional, escreve e relembra a manchete da ‘Ultima Hora’ no 5 de novembro de 1977: ‘Posse de Rachel vira comício e povo derrota protocolo".
Nesta sexta é Heloisa Teixeira, com o nome da mãe incorporada ao dela, a professora, escritora, pesquisadora, editora, ativista e intelectual com agu- da sensibilidade para perceber o novo no horizonte político-cultural, quem será recebida com pompas na Academia Brasileira de Letras. Seguirá fielmente o coreografado ritual da posse, permitindo-se apenas uma pequena ruptura: nada de saltos para acompanhar a calça e o paletó do fardão. Mas não escapará de uma gracinha de Merval Pereira, presidente da ABL: “Elegemos Heloisa Buarque de Hollanda, empossamos Heloisa Teixeira”.
“A Helô Teixeira vai ser mais livre, só não sei como aparecerá esse nome novo nos livros. Difícll é se reconhecer vestida daquele jeito, queria voltar ao fardão da Rachel, não sei quando mudou, não acompanhava a ABL”, comen- ta neste “À Mesa com o Valor”, na varanda do Irajá Redux do Leblon.
A escolha dos pratos do cardápio tinha dois requisitos básicos: não acabar com o batom da boca, indispensável para a fotografia entre uma garfada e outra da próxima imortal, e ser leve mas consistente para ela aguentar um dia cheio de compromissos. Deu Irajá Burger, o prato com menos molhos, mas nada politicamente correto. “Devíamos ter pedido uma salada vegana. Hambúrguer é uma vergonha”, comenta Helô, rindo, quando a fotógrafa chega.
Mas já era tarde. Do almoço, ela emendaria um encontro para escrever um projeto a ser apresentado a uma agência de financiamento no dia seguinte e continuaria de noite com a prova do fardão. O discurso de posse está pronto, foi escrito de um impulso só, é muito pessoal e informal: faz a
memória dos antecessores na cadeira 30, como manda a tradição, e se fixa na última ocupante, Nélida Piñon, a primeira mulher presidente da ABL e muito amiga por longos anos da nova imortal. Depois, vai retraçar a sua trajetória de vida, falar das suas escolhas, incluindo esta última, a Academia.
Vista como transgressora por sua atuação na universidade e na cena cultural, a imagem de Helô, para muitos, não se encaixa com a da ABL, frequentemente criticada pelo conservadorismo. Como? Por quê? perguntaram-lhe inúmeras vezes desde o anúncio de sua eleição. Ela ri e confessa: já recebera muitos convites e sempre respondeu que só iria depois dos 90. “Tem vezes que é agora ou nunca, aí achei que já estava com 90”, mente e não conta que faria 84 só uma semana depois, no 24 de agosto.
“A ABL é o meu caminho natural, adoro uma instituição, eu sempre intervenho nas instituições, na universidade já inventei tanta moda. Não sei se é transgressor, é livre, no sentido de não levar em conta as regras.”
Uma pesquisa fez a conta das invenções de Helô: ela já realizou 80 projetos e publicou 50 livros. São documentários, programas de rádio, televisão, exposições e, principalmente, livros, antologias e projetos que incorporaram múltiplas vozes à pauta cultural, legitimaram movimentos antes de terem perfil definido e valor constituído.
Um exemplo? A Universidade das Quebradas, por onde já passaram 700 pessoas nos 14 anos de existência do laboratório da UFRJ, criado por ela para articular professores, pesquisadores e alunos da universidade com intelectuais, artistas, ativistas e produtores culturais das periferias. Nada é simples, mas a relação do saber acadêmico com o saber das periferias mudou.
“Neste ano, nosso tema é o Nordeste; o funk, as comidas, as visões do Nordeste, as mulheres nordestinas. Já trabalhamos muita cultura negra por causa da favela, mas nas periferias tem mais é nordestino, a maioria é migrante.”
Para ser “quebradeira”, não precisa ter nem ensino básico, entra quem quiser, sem necessidade de diploma algum. A maioria dos que passaram por lá hoje tem destaque na cena cultural: o primeiro a chegar foi Marcus Faustini, recentemente secretário de Cultura do município do Rio. Lá estiveram Leandro Maia, hoje no Museu do Amanhã, Raull Santiago, líder na comunidade do Alemão, e inúmeros outros.
Maior orgulho. É o projeto mais importante da minha vida. As pessoas me ligam e dizem sou fulana de tal, quebradeira. Trabalho com isso há 30 anos.
”Desde os anos 1990, Helô percebeu uma classe média emergindo nas periferias, com mais visibilidade por conta de novas manifestações artísticas e culturais. Era o hip hop entrando e ganhando prestígio nas comunidades, seguido pelos saraus poéticos, em paralelo à movimentação na literatura, tomada de surpresa com o lançamento de “Cidade de Deus”, romance de Paulo Lins. “Nele, já não se trata mais da favela idealizada e separada do asfalto, mas da violência aberta e do inconformismo existente nos conjuntos habitacionais, ou nas neofavelas, como Paulo
Lins define... Com o sucesso definitivo de ‘Cidade de Deus’, fica claro que alguma coisa irreversível tinha alterado a criação e o mercado editorial”, escreve Helô em “Crônicas marginais".
Antes disso, em 1993, ela já convocara um seminário internacional, chamado Sinais de Turbulência, em que reuniu DJs, pesquisadores, professores e botou junto muitos atores da cena periférica para discutir a nova cultura marginal.
“Foi uma loucura”, lembra. A partir daí, estudou funk, rap, frequentou as comunidades, participou de eventos culturais e, com facilidade, desenhou projetos de parcerias que se sucedem até hoje. Continua fascinada, vê che- gando a literatura contemporânea trazida por essa nova classe média.
“É impressionante como sai uma cultura potente de lugares tão complicados, reféns da violência, sem saneamento, sem aparelhos culturais, com uma vida tão precarizada. Esta cultura nova é pop, mistura o centro com a periferia, é transnacional, tem em todo mundo com cores locais. Não depende de raiz, trabalha e bota para andar a raiz.”
A formação de escritores vindos das periferias sempre esteve na sua mira. Apoiou a Flup – Festa Literária das Periferias, e na Universidade das Quebradas tem um projeto chamado Livres Livros, uma oficina literária e um fórum de discussão sobre literatura canônica, preta ou o que mais tiver,
misturada a um workshop de edição.
“O aluno sai um escritor independente, com um livro na mão e muitas informações”, diz. O programa da Universidade das Quebradas é apenas um dos laboratórios do Programa Avançado de Estudos Contemporâneos (PAC), um centro de pesquisa com zero formalidade, criado e dirigido por
ela. É um enorme espaço aberto, onde trabalham cerca de 70 pessoas, com liberdade total. Acoplados a ele existem mais quatro laboratórios, onde se testam as pesquisas de estudos negros, de estudo e práticas feministas, editoração e poesia. “Não tenho a menor dúvida de que a pesquisa sem objetivo é melhor, porque é por impulso, por desejo, por necessidade.”
Foi um pouco o mesmo movimento de ampliar o espaço do saber acadêmico que levou Helô a lançar nos idos de 1974, em plena ditadura, os “26 poetas hoje”, a mais importante antologia da época, mas motivo de escândalo entre os “bem pensantes” por legitimar a poesia marginal, aquela para a qual toda a crítica literária torcia o nariz e olhava com desprezo. Os poetas, como Cacaso, Charles Peixoto, Chacal, eram jovens universitários de classe média que produziam livrinhos rodados em mimeógrafos — um ancestral das impressoras — vendidos pela cidade, usando a palavra, a poesia e o humor como armas contra o apagamento e a violência da ditadura. Helô recebeu uma saraivada de críticas dos teóricos.
“Fiquei famosa, de repente, por causa desse livro. Famosa de tanto falarem mal. Para você trabalhar com um fenômeno muito novo, tem de ser cúmplice, a margem de erro é muito grande. A poesia marginal eu me aproximei porque todo mundo era muito contra,diziam não é poesia, não é poesia, é legitimar o palavrão. Mas o interessante da coisa é que você ajuda a dar visibilidade. Se botar um assunto em pauta, já fez seu trabalho, pode partir para outra. Imagina na universidade da época, a poesia marginal não ia entrar em pauta nunca”, reflete Helô.
Bem recentemente, ela repetiu o movimento ao lançar “As 29 poetas hoje”, com o trabalho da nova geração de poetisas. Muitas delas já apareciam no livro-ocupação de 2018, em que Helô percebeu uma “explosão feminista”. Foi de novo a primeira a constatar que a força das ruas tinha migrado para as mulheres e vinha chacoalhando tudo em 2015: a política, as artes, a universidade e o próprio feminismo. Pouquíssimo antes dessa explosão, Helô e as veteranas achavam que o movimento das mulheres ia morrer com a geração delas. “Até que um vozerio, marchas, protestos, campanhas na rede e meninas na rua se aglomeraram gritando contra as ameaças de vários retrocessos”, escreve ela.
No pós-2015, a política baseia-se e experiências pessoais que ecoam coletivas, o assédio é denunciado nas redes, os direitos são exigidos aqui e agora. Já estavam lá indígenas escrevendo sobre feminismo nas aldeias, as evangélicasquerendo reinterpretar a Bíblia à luz do movimento das mulheres, as trans, as asiáticas, as cristãs exigindo seus direitos. O feminismo negro já era o mais importante e continua sendo o que mais avança. Ali começou a legitimação do direito de ter direitos específicos.
“Estas vozes falam de um universo que ninguém conhece. A literatura das mulheres está bombando, ganhando tudo que é prêmio, vendendo muito, porque esta experiência social das mulheres é um tema novo, não é uma minoria se expressando, é um universo que ninguém conhece.”
Quando Helô entrou na faculdade, não era permitido usar cartas, diários, como objeto de tese. Mais tarde, ao usar a primeira pessoa na sua tese de doutorado, quase foi reprovada por causa do estilo. “Então era toda uma literatura feminina à disposição que não era considerada literatura e agora é uma onda gigante. Dá orgulho entrar nas livrarias e ver isso.”
Uma vez, o cientista Luiz Pinguelli Rosa disse que ela não trabalhava na universidade, mas numa ONG criada por ela na UFRJ. Ao procurar a expansão do saber, escapou da burocracia e fez de tudo em sala de aula. Na Frágil, butique meio hippie e meio artística em Ipanema, deu umas oito aulas de contracultura, em que todo mundo entrevistava todo mundo.
Durante um ano, na TVE, dirigiu um programa de televisão, estilo “TV Pirata”, com Regina Casé de repórter. Teve a cumplicidade de Afrânio Coutinho, um conservador de direita que lhe deu espaço para as suas invenções quando voltou os Estados Unidos. Em Nova York, trabalhou na Universidade Columbia, de onde descobriu um novo Brasil e se reconheceu feminista. Pouco antes de fazer 80 anos, Heloisa percebeu que tinha publicado três livros em seis meses e estava escrevendo mais dois. “O nome disso é pânico”, comentou na época.
Agora prepara-se para escrever sobre essa fase da sua vida, já com mais de 80 anos: “Vou escrever a partir de mim, porque estou tentando viver de verdade e como velha. Fingir que é jovem não convence ninguém. No rosto, você vê o botox a distância e na vida você continua com todas as dores. Fugir é bobagem, é uma fase da vida muito cheia de assunto”, diz.
Foi a geração de Helô que nos anos 60 transformou a juventude em um valor e agora ela vê a nova velhice como um momento privilegiado de incorporar tudo o que viveu. “Há muito tempo que digo a minha idade, digo que tenho 84 muito antes de ter essa
idade para quando chegasse lá já estar acostumada, porque agora é um corpo a corpo com a morte, você tem que fazer tudo enquanto dá tempo”, diz.
A cada vez que termina um dos inúmeros projetos ou livros, Helô costuma se pergunta: que momento é este?
Onde estou? Nesta última vez, a resposta veio fácil e rápida: “Estou entrando na Academia, uma experiência fantástica para mim. Desta vez, não tenho projeto, tenho uma curiosidade gigante de ver como é o lugar e como posso contribuir”.
Matéria na íntegra: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/07/28/o-que-levou-a-nova-imortal-da-abl-a-abandonar-o-buarque-de-hollanda-para-ser-heloisa-teixeira.ghtml
31/07/2023