Erguido em pouco mais de quatro meses para ser o pavilhão da França na Exposição de 1922, o elegante prédio em estilo neoclássico se destacava na ampla e ainda vazia paisagem da então Avenida das Nações, no Centro. Inspirado no Petit Trianon, de Versailles, o prédio foi doado pelo governo francês à Academia Brasileira de Letras (ABL) no ano seguinte e completa, na sexta-feira da semana que vem, um século como sede da Casa de Machado de Assis.
Passados os anos, o entorno do pequeno palácio mudou muito. Ao lado dos enormes prédios que surgiram na rebatizada Avenida Presidente Wilson, no entanto, o Petit Trianon segue se impondo na paisagem, agora justamente por suas dimensões modestas para os padrões atuais, pela beleza da arquitetura e sua história.
A primeira sessão da ABL no Petit Trianon foi realizada em 15 de dezembro de 1923, sob a presidência de Afrânio Peixoto. Desde sua criação, em 1897, era a primeira vez que a Academia tinha uma sede própria e adequada para receber os imortais e seu acervo. O prédio — diferentemente da maioria dos 13 edifícios provisórios erguidos por países participantes da exposição em homenagem ao centenário da Independência do Brasil — foi solidamente construído, já que a ideia do governo francês era deixá-lo como presente ao governo brasileiro.
— Ao saber disso, os acadêmicos da época se organizaram para reivindicar o prédio como sede da ABL. Em outubro de 1922 há registro de uma reunião na biblioteca da Câmara dos Deputados, na qual Graça Aranha e Afrânio Peixoto formulam uma pergunta: E se nós obtivéssemos o palácio da França na exposição para academia? A partir daí tem início uma articulação que foi muito bem-sucedida — conta o historiador e acadêmico Arno Wehling.
A história faz parte da pesquisa feita por Arno Wehling para a conferência “O Petit Trianon e seus significados”, que acontece na quinta-feira às 16h. Nela, o imortal pretende abordar a importância do palácio para a história da Academia, da cidade e das próprias relações entra Brasil e França.
— Os discursos da época ressaltam a ideia de tradição, a despeito de todas as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas que aconteciam no início do século XX. A Academia deveria representar a permanência, a estabilidade num mundo cada vez mais convulsionado e, nesse aspecto, o Petit Trianon era perfeito como sede da instituição — ressalta Wehling.
Livros e obras de arte
Reeleito anteontem, por aclamação, para mais um mandato como presidente da ABL, o jornalista e escritor Merval Pereira destaca a beleza e a adequação do prédio às atividades acadêmicas. — Termos esse palácio como sede é mais um pedaço da tradição que a gente conserva. O Petit Trianon é muito adequado para os rituais da Academia, que são fundamentais para instituições centenárias como a nossa. Além disso, é um prédio muito bonito — disse.
Bonito por fora e por dentro também. Finamente mobiliadas, as salas da sede da Academia são recheadas de obras de arte, objetos de valor histórico e, claro, de livros. Muitos livros. Só na Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça, localizada no segundo andar, são cerca de 20 mil volumes. Estão ali obras raras dos séculos XVI a XVIII e as coleções pessoais de personagens fundamentais da literatura como Machado de Assis, Olavo Bilac e Manuel Bandeira.
Foi pelas mãos de Bandeira, aliás, que a jovem Ana Maria Machado, então ainda uma estudante de Letras, entrou pela primeira vez no Petit Trianon. O momento ficou marcado na memória.
— A Cleonice Berardinelli (especialista em literatura portuguesa que foi integrante da ABL) era minha professora e disse a ela que gostaria de conhecer a Academia. Ela falou com o Manuel Bandeira e ele nos recebeu lá. Fiquei de queixo caído com a beleza daquele lugar, encantada mesmo — lembra a escritora que, anos depois, em 2003, também se tornaria uma imortal.
Presenças ilustres
O prédio foi entregue à ABL com apenas três objetos decorativos de porcelana remanescentes da exposição de 1922. As peças seguem expostas com destaque no saguão, cujo piso em mármore e um imponente lustre de cristal francês já dão ao visitante uma ideia dos ambientes que se seguem. No térreo, ficam ainda os salões Nobre e Francês e as salas Francisco Alves, dos Poetas Românticos, Machado de Assis e dos Fundadores.
Cada um desses cômodos do Petit Trianon acumulou história e identidade próprias ao longo do tempo. Afinal, são cem longos anos recebendo a nata da cultura — e da política — nacional. Nesse período, não foram poucos os presidentes que estiveram por ali. Alguns, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Getúlio Vargas, passaram a integrar o rol de imortais.
— Tenho muitas lembranças marcantes na ABL. Uma delas foi a presença do presidente Lula quando foi assinado o acordo ortográfico de unificação da língua portuguesa. Foi muito importante que ele tenha participado dessa cerimônia nas próprias instalações da Academia — lembra o escritor Arnaldo Niskier, que em março de 2024 completa 40 anos na instituição.
No Salão Francês, acontece um dos rituais mais marcantes da ABL, além, claro, do tradicionalíssimo chá que reúne os acadêmicos às quintas-feiras. Prestes a tomar posse, o novo imortal fica sozinho ali por uns instantes, em reflexão, até ser buscado por colegas para a cerimônia.
— O “momento de solidão” foi para me conscientizar da responsabilidade de pertencer a uma instituição a quem o Brasil muito deve e que ainda tem muito o que fazer — lembra o escritor Ruy Castro.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/12/09/doado-pelo-governo-frances-o-petit-trianon-sede-da-abl-completa-cem-anos.ghtml
09/12/2023