Lilia Moritz Schwarcz é uma intelectual preocupada com a imagem: trata telas e fotografias como documentos a serem analisados com rigor. No Instagram, em posts intitulados “De olho na foto”, mostra como políticos manipulam cenários para passar recados a suas bases. No entanto, a historiadora e antropóloga, professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, nos Estados Unidos, não acha a própria imagem tão interessante. Foi com timidez que posou para ELA.
Lilia é uma intelectual pop que não abre mão da vida acadêmica. Encerrada a sessão de fotos, a professora de 66 anos seguiu para a USP, onde deu uma aula do curso... Lendo Imagens! No dia anterior, proferira uma palestra no Ministério das Relações Exteriores sobre o legado do diplomata Alberto da Costa e Silva, grande estudioso da África, cuja cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL) assumirá em 14 de junho. Ela o chama de “pai afetivo e intelectual”.
Uma das mais respeitadas estudiosas das questões raciais no Brasil, Lilia já publicou quase 30 livros, entre títulos que escreveu sozinha — como “O espetáculo das raças”, a biografia “Lima Barreto: triste visionário” e o juvenil “Óculos de cor” —, obras em parceria e organização de dicionários temáticos. Em agosto, lança “Imagens da branquitude: a presença da ausência”, pela Companhia das Letras. A editora foi fundada por ela e pelo marido, Luiz Schwarcz, em 1986. Junto, o casal tem dois filhos: Júlia, de 42 anos, e Pedro, de 38, diretora editorial e editor na empresa, respectivamente. A seguir, Lilia conta o que aprende com as netas, ensina como ler e correr na esteira e defende que intelectuais sérios podem mudar de ideia
Você é uma estudiosa das imagens. Como se sente sendo fotografada?
As pessoas me pedem para aparecer mais no Instagram, mas acho que outras imagens são mais interessantes do que a minha. É com grande timidez que faço este ensaio fotográfico.
É vaidosa?
Não sou uma destituída de vaidade, mas sem exagero. Eu corro todo dia.
É verdade que lê na esteira?
É verdade. Desenvolvi uma técnica, que ainda vou exportar, de ler teses enquanto corro na esteira. Tem que manter a cabeça muito rígida. Dá até para grifar. Quando tenho que anotar alguma coisa, paro um pouco.
Você é uma intelectual pop. Como conciliar a academia com as redes sociais?
Acredito na educação pública. Gosto quando me chamam de professora. Fui para o Instagram provocada sobretudo por aquele ministro da Educação terrível, o Abraham Weintraub. Ele disse algo assim: “Imagina você dar tudo para um filho e um dia ele dizer que vai ser antropólogo”. Quis mostrar o que nós, cientistas sociais, fazemos. Percebi que estava indo bem quando começaram a me reconhecer na rua. Nunca vou abrir mão da academia. O conhecimento que produzimos lá é coletivo.
Você tem refletido cada vez mais sobre a branquitude. Por quê?
Por que os brancos classificam os outros sem pejo algum, mas não a si próprios? Por que racializamos o mundo e não a nós mesmos? Por muito tempo, o conhecimento produzido pelos brancos era tido como neutro. Precisamos politizar a branquitude. A escravidão vitimou os negros, mas o que significa para os brancos terem se acostumado com hábitos de mando, privilégio e poder? Estou interessada em estudar esse lugar, que é o que eu ocupo. No meu novo livro, “Imagens da branquitude”, analiso mapas, monumentos e até sapatos para mostrar como se deu a construção da democracia racial e a naturalização do privilégio branco.
O que sapatos têm a ver com a branquitude?
No Brasil, os escravizados andavam descalços. Em algumas fotos, sabemos quem são os grandes proprietários porque eles usam botas. Criou-se a ideia de que no Brasil as elites calçam meia e sapato e o povo anda descalço. Escritores viajantes contam que, após a Abolição, os libertos compraram sapatos, mas como não estavam acostumados, tiveram bolhas nos pés e foram vistos carregando-os a tiracolo, como se fossem símbolos da liberdade. Tudo isso está nas imagens, mas a gente não costuma enxergar.
Você era contra as cotas raciais e mudou de opinião. Por quê?
Até os anos 2000, pensávamos que os direitos tinham de ser universais. Meu trabalho e a militância me convenceram de que até podemos pensar utopicamente em termos universais, mas a própria Constituição reconhece a importância de atuarmos no sentido de minorizar as diferenças existentes no país. O Brasil não fica impune ao fato de ter sido o último país a abolir a escravidão mercantil. Nosso passado produziu o que, no presente, Silvio Almeida chama de racismo estrutural. A beleza do trabalho intelectual é que ele leva à mudança. Intelectuais que levam a sério a sua função mudam de ideia. A transparência faz parte do nosso trabalho.
No Instagram, você defendeu a legitimidade dos protestos pró-Palestina após presenciar um deles em Princeton. Sendo uma intelectual progressista e judia, você se sentiu pressionada a se manifestar?
Nesse caso, é difícil tomar distância dos extremos. Se sofro com os ataques terroristas do Hamas, isso não quer dizer que eu não sofra com o genocídio em Gaza. Para uns, não sou radical o suficiente; para outros, sou uma traidora. Sou a favor da solução dos dois estados e contra o antissemitismo, que é uma forma de intolerância que vem crescendo no Brasil. Talvez houvesse infiltrados e radicais no meio, mas o protesto que vi em Princeton pedia o cessar-fogo e o fim do genocídio. Esses protestos têm sido recebidos de acordo com a lógica bipolar da intolerância. Assim como o Vietnã, nos anos 1970, a guerra em Gaza divide o mundo e produz intolerância e radicalização à direita e à esquerda.
Você criou a Companhia das Letrinhas e já publicou livros para crianças. De onde vem sua ligação com a literatura infantil?
Meu avô era um grande contador de histórias. Eu também sempre gostei de contar histórias. Ouvia músicas com as minhas netas e traduzia erradamente a letra, dizendo que era sobre princesas e fadas. Tenho orgulho de dizer que acertei duas questões no vestibular por causa de “Asterix”!
O que você aprende com suas netas?
A mais velha, Maria Isabel, de 17 anos, está num internato na Inglaterra. É a única mulher na aula de ciência política e me ligou para pedir ajuda para convencer os colegas da importância do feminismo. A Alice, de 15, me ajuda com o Instagram. As duas gostam de história e são muito versadas em questões de gênero, me corrigiam quando eu errava o uso dos pronomes neutros. Também me indicam leituras, como “Os sete maridos de Evelyn Hugo” (de Taylor Jenkins Reid) e “Ah! Os lugares aonde você irá” (Dr. Seuss), que é o livro que mais me fez chorar na vida!
Como é ser editada pelo seu marido?
É como dormir com o inimigo (risos). O Luiz é um editor severo e carinhoso, muito preocupado comigo. Ele faz comentários como: “eu não merecia esse Foucault básico” ou “ressignificar: use com moderação”. Às vezes fico brava (risos). Ele tem um papel fundamental nos meus livros. Vários títulos são dele.
Por que você quis entrar na ABL?
Perdi meu pai muito nova, aos 18 anos. Fui adotada por Alberto da Costa e Silva, que foi para mim um pai afetivo e intelectual. Minha eleição é uma homenagem a ele. O Alberto ocupava um papel importante na ABL, o de historiador, de memorialista. Ele sempre se preocupou com as várias Áfricas que formaram o Brasil, era contra o mito da democracia racial e apoiou as cotas antes de mim. Entro na ABL para continuar essas discussões, na esteira do Alberto e do Lima Barreto, que tentou se eleger três vezes e nunca conseguiu. Sou a 11ª mulher na ABL. Ainda somos uma maioria minorizada, mas a instituição está se tornando mais plural e aberta.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/ela/noticia/2024/06/02/como-lilia-moritz-schwarcz-conquistou-a-academia-brasileira-de-letras-com-veia-pop-e-saber-profundo.ghtml