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ABL na mídia - O Globo - Aos 80 anos, Rosiska Darcy diz 'compreender' etarismo: 'Também já olhei os mais velhos com compaixão'

 

Jornalista, educadora, escritora e militante feminista, Rosiska Darcy chegou aos 80 anos nesta quarta (27) com um pé no passado e outro no presente. Com exceção dos quase 15 anos em que ficou exilada na Suíça, essas oito décadas foram vividas em um casarão dos anos 1940, construído por seus pais em um canto de paraíso da Estrada da Pedra Bonita, no Alto da Boa Vista, no Rio.

A residência fica num meio-termo que lhe convém. Mergulhada na vegetação e no silêncio, parece parado no tempo, mas com rotas de fugas para a “cidade”. A menos de 20 minutos de carro dali (sem trânsito), Rosiska já tem o Leblon ao seu alcance, com cinemas, teatros, livrarias e academia de ginástica. A cerca de uma hora de distância, fica a sua segunda casa, a Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro.

A instituição vem organizando uma série de comemorações pelo aniversário da imortal. A mais nova delas é ao mesmo tempo um presente para Rosiska e para os fãs. Sua amiga Adriana Calcanhotto fará uma apresentação aberta ao público, nesta quinta (28), às 17h30, acompanhada do guitarrista Pedro Sá.

— Aos 80 anos, você tem que desenvolver uma flexibilidade — diz a escritora, sentada em uma poltrona na varanda de sua casa, de frente para um jambeiro. — Você descobre que, apesar de estar vivendo uma mudança de era, é de fato inevitável pensar no passado. A criança, a adolescente, a mulher adulta e madura, todas elas estão vivas e convivem em você. Elas se apresentam e dialogam. Fui criada por uma avó do século XIX, vivi o século XX e agora tenho 24 anos de século XXI. São três séculos e uma experiência histórica que poucos tiveram.

A capacidade de Rosiska em dialogar com diferentes épocas inspirou a atriz e cineasta Bianca Comparato a dirigir o documentário “Elogio da liberdade”, que retrata algumas das principais lutas da escritora pela igualdade de gênero ao longo das décadas. A produção exibe em primeira mão diversas imagens de arquivo capturadas com câmera Super 8 nos anos 1960 e 1970 pela própria Rosiska, na época uma aspirante a cineasta. Alguns registros históricos são preciosos, como o de uma Guiné recém-tomada pelo poder anticolonial.

Luta humanitária

Produzido em 2019 para a HBO, o longa teve semana passada a sua primeira exibição pública, em uma sessão na ABL. No dia 15 de abril, às 19h30, no cinema Estação Net do Shopping da Gávea, uma nova exibição encerrará as comemorações de aniversário, seguida de um bate-papo de Bianca e Rosiska na Livraria Janela.

— Rosiska estava sempre à frente abrindo caminho para muita gente — diz Bianca. — A sua atuação pela luta das mulheres não excluía outras coisas. Era também uma luta humanitária, uma ideia que está muito conectada aos dias de hoje.

— A questão do corpo sempre foi um dos fundamentos da mulher — diz ela. — Escrevi muito sobre as violências sofridas no corpo, que não é só o estupro e a pancada. A violência é o que você ouve sobre o corpo. Não conheço uma só uma mulher que, com ou sem razão, não tenha um dia na vida, numa situação qualquer, temido um estupro.

Rosiska sorri ao ouvir falar em etarismo (“Isso é uma palavra nova, né”). Mas considera até “compreensível” o preconceito aos mais velhos.

— Também já fui jovem e também olhava para os mais velhos com uma certa compaixão, que nós na verdade não merecemos — diz ela. — Existe uma ideia difusa de que uma pessoa de 80 anos tem que se comportar de uma certa maneira. Mas acho que os mais velhos se submetem cada vez menos a isso. Como aconteceu com todas as outras discriminações, a pessoa acaba se acostumando com o fato de que o outro não é o que ela acha que ele deve ser. O outro é o que ele quer ser.

Formada em Direito pela PUC, Rosiska iniciou sua trajetória nos anos 1960 como jornalista em veículos como Revista Senhor, Jornal do Brasil e O GLOBO. Exilada pela ditadura, redirecionou seu caminho para a área da educação após conhecer Paulo Freire e Jean Piaget em Genebra. Nos anos 1970, participou ativamente do movimento feminista, com livros publicados em francês sobre a valorização da cultura feminina.

De volta do exílio, trabalhou como assessora especial do vice-governador Darcy Ribeiro e fundou a Coalizão de Mulheres Brasileiras. Em 1995, foi nomeada presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Profundidade

Visita constante na casa de Rosiska é Adriana Calcanhotto. São vizinhas, afinal. A cantora se diz especialmente impactada por suas ideias sobre “Antígona”, a peça de Sofócles que serve de leitura para o papel político-social no mundo atual.

— Me impressiona o pensamento e a profundidade da visão que ela tem — diz a cantora. — Rosiska como professora de “Antígona” abriu um mundo inteiro pra mim, e cada vez que a ouço falar do assunto, acontece de novo. E pela fundamental importância de Rosiska nas lutas pelas mulheres e pelas liberdades, é uma honra ter sido escolhida por ela para cantar na ABL.

Rosiska diz ter os reflexos de quem vive no sítio (“Até galinheiro eu tenho”, conta). O silêncio lhe ajuda a trabalhar de madrugada. Ela se mantém conectada com o mundo graças às novas tecnologias, apesar da falta de luz frequente. A relação com as novas tecnologias está bem explorada em seu último livro de ensaios, “Liberdade”, de 2021. Rosiska também é editora da Revista Brasileira, publicada pela ABL, que dedicou sua última edição ao tema da inteligência artificial.

Confesso que essa vida virtual me pegou um pouco desprevenida — diz. — Porque sou de uma imaginação analógica e essa vida virtual tem regras, códigos, maneiras de viver que não são amigáveis, né? Então é como se aprender uma língua estrangeira, uma língua que falo, mas não é a minha. Acho que somos as últimas testemunhas de uma mudança de era. É um privilégio testemunhá-la e tentar interpretá-la.

Rosiska se diz assustada com a influência das novas formas de comunicação no pensamento.

— Tudo aquilo que representa o campo da nuance, que é o campo do diálogo possível, deixou de existir — diz. — Hoje, você ou é a favor ou é contra alguma coisa. E isso foi criado por esse modo de comunicação que é “like” ou “deslike”. Não há mais dúvidas, só a minha verdade, e eu mato por ela. Mas é na dúvida que você dialoga com as pessoas para esclarecer a cabeça.

Sempre conectada, Rosiska analisa de perto as mudanças sociais. Um fato que a toca pessoalmente é a campanha de ódio promovida contra seu mentor Paulo Freire. Já em seu primeiro ano na presidência, Jair Bolsonaro anunciou que iria retirar o nordestino do seu posto simbólico de patrono da Educação. Rosiska vai quase às lágrimas ao defender Freire:

— Trabalhei 15 anos com Paulo Freire, quando ele já era um dos brasileiros mais respeitados do mundo. Lá fora eram Pelé e Paulo Freire. O Paulo influenciou o sistema educacional na África, na Ásia, na Europa... Como esse homem brilhante, apaixonado pelo Brasil, pode ter virado símbolo do demônio em seu próprio país? Ficam chamando ele de comunista, coisa que nunca foi. Logo ele, um católico devoto de Santa Teresinha!

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/03/27/aos-80-anos-rosiska-darcy-diz-compreender-etarismo-tambem-ja-olhei-os-mais-velhos-com-compaixao.ghtml

28/03/2024