Périplos do século XIX à ficção dos nossos dias mobilizam as aulas de Literatura Brasileira que o catarinense Godofredo de Oliveira Neto, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2022, ministra na Faculdade de Letras da UFRJ, no Fundão, onde é professor desde 1980. Com 23 livros em seu currículo como autor (incluindo os imperdíveis "Pedaço de Santo", "Grito" e "Menino Oculto"), o educador e romancista também promove viagens ambiciosas em suas narrativas literárias. É o que se pode conferir no exuberante "O Desenho Extraviado de Hieronymus Bosch" (Grupo Editorial Almedina), que ele autografa esta noite, no Rio de Janeiro, a partir das 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo, em frente ao Cine Estação. Seu novo romance acompanha o percurso de Luigi, espécie de solucionador de problemas de uma família que o vê como um mestiço, empenhado em encontrar o esboço de um quadro pintado entre 1475 e 1480. Nesse périplo, Luigi faz uma baldeação NY, Veneza e Floripa, levando suas culpas, seus demônios, mas também um certo senso de liberdade consigo.
Qual é o lugar que a literatura representa para alguém com a sua experiência em docência e de escrita? O quanto a literatura ainda consegue surpreendê-lo? Revelar um novo caminho pra escrita?
Godofredo de Oliveira Neto: A literatura desvela e decifra movimentos psíquicos. Ela concorre com o mundo real e ganha; se perder essa luta ela morre. A cada leitura, a cada releitura, descubro um novo mundo. A condição humana não aceita a estreiteza e a finitude da vida diante dos milhões de anos de existência da Terra, das marés, dos terremotos, das inundações, da variação das estações do ano, das catástrofes e, principalmente, da morte. Cria então um mundo para competir, através da arte, com esse que está aí. Chega assim à Eternidade e se arvora Deus.
A literatura dos outros sempre me surpreende e me ensina a escrever.De que maneira a figura de Luigi, seu protagonista, carrega elementos do seu próprio olhar sobre a brasilidade na figura de um herói em trânsito? O que esse périplo, da Itália até Florianópolis, expõe de (auto) geográfico no seu discurso?
Godofredo de Oliveira Neto: "O Desenho extraviado..." é também um romance de formação. Luigi é um homem de origem italiana, vivendo num estado com apenas 10% de população negra. Ele vai abraçar o movimento negro após sua viagem aos Estados Unidos. Para isso tem o total apoio da sua Ana Júlia. Saindo de seu casulo, da sua ilha, Luigi se enxerga em outro espelho. Descobriu-se negro para os americanos. E também não se sente latino-americano, pois a exposição sentimental de Maristela, sua namoradinha mexicana em Nova York, parece-lhe constrangedora e piegas para um brasileiro. Mas vai fundo nesse relacionamento casual, buscando equacionar a sua sexualidade incerta, como lhe foi jogado na cara por membros da sua família. É abrindo as malas simbólicas do viajante no exterior que Luigi tem acesso a sua subjetividade e aos seus sonhos e pesadelos
Que trânsitos conscientes, entre História, memória e fábula, a sua literatura têm feito? Onde o senhor é arqueólogo e onde é fabulador?
Godofredo de Oliveira Neto: A cultura é herdada, mais do que adquirida. Daí a necessidade dos estudos. A Universidade é um exemplo para sair desse cárcere. Luigi tenta fugir desse legado. São os clichês, os preconceitos, as visões livrescas de obras baratas de História, os ritos, as proibições e os aplausos imerecidos a pessoas e a pensamentos rasos, os falsos moralismos. As adoráveis lembranças da infância (o arqueólogo e o historiador), nem sempre adoráveis, tornam a gente vítima da nossa imaginação (o fabulador). Mas fabula-se com um material - a linguagem - que já é portadora de sentido antes de a obra ser escrita. O poder de ilusão da arte literária recalca e sublima o mundo social. O narrador se apaixona ao mesmo tempo que o rejeita. Luigi sofre por isso.
11/05/2023