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ABL na mídia - Folha de São Paulo - Octavio de Faria foi reacionário que demoliu família e narrou amor gay

 

Quase desconhecido hoje, desprezado nos meios intelectuais por suas posições políticas reacionárias, Octavio de Faria (1908-1980) ganha nova chance de conquistar leitores com a reedição de "Tragédia Burguesa". A série em 15 volumes, sem paralelo na literatura brasileira, é o oposto do que se poderia esperar do escritor: atrevida, repleta de personagens homossexuais e hedonistas, com críticas demolidoras à família e à Igreja Católica.

Octavio de Faria é um dos maiores enigmas da literatura brasileira. Muito do desprezo em relação a ele se dá mais por suas posições políticas conservadoras do que pela apreciação de sua obra. Foi cancelado sem ser lido.

Seus romances seriam tediosos e mal escritos —e ele próprio concordou em parte com isso, o que não condiz com a percepção de quem os lê hoje, longe das panelinhas católicas e/ou literárias. É um mundo ficcional muito rico a ser descoberto, que resiste aos enfoques da modernidade.

Um escritor único como ele, que abordou as classes dominantes do Rio de Janeiro durante o Estado Novo, não pode mais ser ignorado em benefício dos muitos regionalistas então na moda, por mais talentosos que estes eventualmente possam ser.

Octavio de Faria encabeçou uma polêmica com o grupo dos regionalistas, que em sua opinião se destacava mais por descrever festas e costumes folclóricos do interior do que por fazer boa literatura de ficção. "Chega de mandacaru, acarajé e chimarrão!", parecia gritar. Admirava, contudo, Graciliano Ramos e lamentava que a política (o autor de "Vidas Secas", como sabemos, era comunista) tenha impedido suas relações pessoais com ele.

Octavio de Faria nasceu no Rio de Janeiro, em uma família muito bem posicionada, com dinheiro e cultura. O pai, Alberto de Faria, foi membro da Academia Brasileira de Letras, onde ele mesmo entrou em 1972, já perto do fim da vida. Nunca precisou ganhar seu sustento, dedicando tempo integral à literatura, que encarava como uma missão.

Bem jovem foi simpatizante do fascismo e do integralismo, publicando livros em defesa dessas posições. Perto dos 30 anos converteu-se ao catolicismo por influência do cunhado Alceu Amoroso Lima e se dedicou a partir daí exclusivamente à literatura de ficção.

Podemos afirmar que é autor de uma obra única composta de 15 romances complementares, porém independentes, escritos nas quatro décadas seguintes e agrupados sob o título de "Tragédia Burguesa".

Evidentemente, uma obra tão vasta tem altos e baixos, mas alguns volumes se destacam pela excelência: o primeiro, "Mundos Mortos" (1937), o terceiro, "O Lodo das Ruas" (1942), o soturno sétimo, "O Senhor do Mundo" (1957), e "Atração" e "A Montanheta", escritos nos anos 1950/60, mas só editados postumamente, pelo temor do escândalo, nas obras completas (1985), como os volumes oitavo e décimo. Ambos tratam do homossexualismo masculino e ficaram praticamente desconhecidos.

Dez outros foram planejados para a saga, mas jamais escritos. Talvez haja sinopses no acervo do autor na Fundação Casa de Rui Barbosa. Os contos de "Novelas da Masmorra" (1968) podem ser considerados obra paralela.

Antes de ser ficcionista e ao mesmo tempo em que publicava seus ensaios reacionários, Octavio de Faria foi um dedicado cinéfilo, um dos fundadores do pioneiro Chaplin Clube, onde defendia a superioridade do cinema silencioso diante do falado e de onde saiu o jovem Mário Peixoto, diretor de "Limite" (1931), cultuado filme de vanguarda quase abstrato.

Durante décadas Octavio de Faria organizou uma sessão anual do filme na Associação Brasileira de Imprensa, ajudando a construção do mito que cercou o cineasta. Numa delas, em 1942, Vinicius de Moraes levou Orson Welles, fato registrado em artigo do poeta.

Octavio escreveu bastante sobre filmes, inclusive faroestes, e "descobriu" no Fluminense Futebol Clube, onde fez parte da diretoria, o jovem Paulo Cezar Saraceni, que desviou do futebol para o cinema. Não por acaso, este foi um dos poucos cineastas intimistas do cinema novo.

O mundo ficcional de Octavio de Faria é muito próximo ao de outro escritor também católico, Nelson Rodrigues, mas sem o sarcasmo e o humor ferino. Os dois dedicaram-se a demolir as classes média e alta cariocas. Estilisticamente, Octavio não é coloquial como Nelson, está mais próximo de intimistas católicos como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Marcos Konder Reis e o jovem Vinicius de Moraes, que as vespas da intriga apontam como uma paixão platônica.

Uma escrita que trata mais da psicologia dos personagens e bem menos de sua sociologia. Todo aparente ascetismo de sua obra é fruto de muito trabalho, nada é casual e espontâneo.

A leitura de todos os livros de Octavio de Faria reserva muitas surpresas. Não encontramos nenhum proselitismo político, nem mesmo nas entrelinhas, embora a ação se passe no final dos anos 1930, quando no Brasil a luta pelo poder era acirrada com Intentona Comunista, tentativa de golpe integralista e a implantação do autoritário Estado Novo de Getúlio Vargas, inspirado no salazarismo português.

Politicamente as ideias do escritor venceram, mas nada disso, felizmente, transparece nos romances. Outro ponto curioso: embora católico, o narrador não poupa críticas à igreja e a seus sacerdotes, em geral mostrados pejorativamente como gananciosos, fofoqueiros e prepotentes.

Um dos personagens principais é um jovem padre bem-intencionado que tenta enquadrar o mundo pelo ponto de vista religioso, mas sem perceber desencadeia verdadeiras tragédias. Se em alguns momentos, notadamente nos últimos volumes, o autor revela a presença velada de Deus e do Diabo, é sempre à revelia da igreja e do clero. Não somos conduzidos pelas situações ou pelos personagens, mas induzidos pelo narrador.

"Tragédia Burguesa" acompanha o destino de cerca de dez rapazes no Rio de Janeiro no final dos anos 1930 e como cada um enfrenta a chegada da vida adulta. Um deles, desiludido do amor, abandona o Rio por muitos anos. Temos um homossexual que se suicida e outro que se afirma; pai e filho disputando a mesma mulher; o conflito entre um católico e um hedonista. O jovem padre citado antes acaba banido para o interior. Há ainda um velho professor homossexual que foge com um aluno adolescente e acaba abandonado e preso. Enredos nada conservadores, como se poderia esperar.

O primeiro livro, "Mundos Mortos" (1937), começa com um adolescente afogueado em dúvida se a masturbação é ou não um pecado mortal. Do outro lado da cidade, um padre pensa se não foi muito rigoroso com o rapaz ao condenar o ato de modo tão veemente.

Há futricas no ginásio católico e também no laico do segundo volume, "Os Caminhos da Vida" (1939). Alguns suicídios e um assassinato permeiam a trama. Um adolescente é assediado por um fuzileiro naval em plena via pública e se inicia na boêmia homossexual do centro da cidade. O livro traz boas cenas da turma da praia, ambiente pouco presente na ficção sobre o Rio, embora emblemático na personalidade carioca.

Temos um narrador desconhecido e onipresente, que opina diretamente ao leitor, que só conheceremos nas últimas páginas do último volume. "A única saída para a burguesia é o suicídio, mas esse não pode ser praticado por ser um pecado mortal", lemos lá pelas tantas. Não há saída na tragédia de Octavio de Faria.

Nesta saga tão masculina, merecem especial atenção as personagens femininas. A ingênua que se casa com o primo homossexual; a mãe solteira, seduzida e abandonada; as diversas matronas, algumas conservadoras na defesa da família tradicional, outras conformadas com a decadência de sua classe social; a perua desfrutável; as cunhadas cobiçadas; a namorada ciumenta que defende seu amado do assédio de outro homem; a recalcada vingativa.

Nos volumes 11 e 12, "O Cavaleiro da Virgem" (1972) e "O Indigno" (1976), ocorre um inesperado parênteses temático. A aparição dos rapazes é quase episódica, sendo protagonista uma mulher que abandonou o marido por um amante e é pressionada pelos padres a voltar.

Há todo um interessante clima de época na série. Lembremos que o telefone era objeto ainda pouco comum, então uma parte da ação se desenrola através de bilhetes e páginas de diários. Os personagens andam de bonde e raramente de automóvel, frequentam bares e bilhares ambientados no centro, no bairro do Catete, na aprazível Petrópolis, em São Paulo, em sítios e chácaras, colégios e pensões.

Assim, o leitor vai sendo enredado em cada volume sem perceber. Se fosse um filme, "Tragédia Burguesa" teria, paradoxalmente, todas as emoções de um melodrama hollywoodiano concebido pelo barroco Douglas Sirk, mas filmado com a estética despojada de um Robert Bresson. Não há nada parecido na literatura nacional. É pegar ou largar.

Nos últimas décadas, "Tragédia Burguesa" ficou praticamente inacessível aos leitores. A edição póstuma e completa, organizada pelo crítico literário Afrânio Coutinho em quatro volumes, em 1985, está há muito esgotada. Para nossa sorte, uma pequena editora, a Sétimo Selo, está reeditando a série. Os seis primeiros volumes já foram relançados. É uma rara oportunidade para conhecer ou reexaminar esse importante autor maldito.

Octavio de Faria é, ao mesmo tempo, um cronista da juventude carioca dos anos 1930, um polemista católico e um ousado e atrevido escritor LGBT. Sua posição política conservadora não se reflete em uma obra que desafia os cânones literários de sua época (mais um ponto de contato com Nelson Rodrigues).

O tempo do cancelamento se esgotou e já é mais que hora de dissecarmos a "Tragédia Burguesa" e a colocarmos no lugar que merece nos estudos da literatura brasileira.

Artigo na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/08/octavio-de-faria-foi-reacionario-que-demoliu-familia-e-narrou-amor-gay.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo

12/08/2024