Faz dois meses que o romance "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, foi recolhido de escolas em Goiás, Santa Catarina e Paraná. Poucas semanas depois, o infantojuvenil "Aparelho Sexual e Cia." foi jogado no lixo pela prefeita da cidade catarinense de Canoinhas, Juliana Maciel, do PL, em vídeo publicado nas redes sociais.
Não por acaso, o mesmo livro é perseguido desde 2016 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, do mesmo partido, que reproduziu até em entrevista ao Jornal Nacional a informação falsa de que o título faria parte de um suposto kit gay.
"Desde o governo Bolsonaro, a censura se agravou", afirma João Luís Ceccantini, professor da Universidade Estadual Paulista, a Unesp, e um dos principais pesquisadores brasileiros de literatura para crianças e jovens. De acordo com ele, vivemos hoje tempos de perseguição sistemática a obras para esse público —fenômeno que também encontra eco em outros países, como os Estados Unidos.
"A proteção à infância é sempre usada como desculpa para a censura, tanto pela direita quanto pela esquerda", diz Ceccantini. Ele usa o exemplo de Monteiro Lobato. "Seus livros infantojuvenis foram atacados nos anos 1940 por serem chamados de comunistas. Agora, são perseguidos por outros grupos. As proibições não são um embate entre esquerda e direita, mas de adultos versus crianças."
O pesquisador é um dos organizadores de "Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira", catatau de mais de 500 páginas que reúne artigos assinados por diferentes nomes ligados a universidades brasileiras. Neles, são analisados movimentos de censura, autocensura, ataque ou tentativa de cerceamento de ao menos 30 obras para crianças e jovens.
Estão lá "Chapeuzinho Vermelho", "Sítio do Picapau Amarelo", de Lobato, e histórias de autores clássicos como Maurice Sendak, Lygia Bojunga e Roald Dahl.
Feitos com a urgência e o calor do jornalismo, os capítulos discutem também produções mais recentes —entre elas, o próprio "O Avesso da Pele" e "Enfim, Capivaras", romance juvenil de Luisa Geisler lançado há cinco anos e que foi proibido de circular entre estudantes da cidade gaúcha de Nova Hartz. A justificativa foi que as personagens falam palavrões.
Na época, um dos vereadores do município afirmou que ouvido de criança não é privada. "Muitas das proibições nascem assim, de um adulto que não entende nada de infância ou adolescência, mas presume saber como o livro vai ser lido por essa faixa etária", diz Ceccantini. "Ele censura porque subestima o leitor. Crianças e adolescentes não são quadros em branco onde despejamos ensinamentos morais."
"Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira" será lançado nesta sexta, na livraria Megafauna, em São Paulo, com a presença do pesquisador e dos outros organizadores da coletânea, os professores Eliane Galvão e Thiago Alves Valente.
"Vivemos um momento assustador de conservadorismo no Brasil", diz a escritora e historiadora Mary del Priore, integrante da instituição e uma das idealizadoras do seminário que reunirá boa parte do time titular da literatura infantojuvenil brasileira contemporânea.
Subirão ao palco os professores Marisa Lajolo e José Carlos Sebe, os membros da APL Ruth Rocha e Mauricio de Sousa, os escritores Pedro Bandeira e Ilan Brenman, além de Ana Maria Machado, imortal da Academia Brasileira de Letras. O evento é gratuito.
Machado, aliás, foi mais uma das vítimas da onda crescente de cancelamentos. Em 2018, seu livro "O Menino que Espiava pra Dentro" foi acusado de supostamente incentivar o suicídio, o que gerou uma onda de ódio contra a autora, que é uma das mais premiadas do país e venceu o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil.
O motivo? A personagem decide engasgar com um pedaço de maçã para entrar no mundo da imaginação.
"Editores estão pisando em ovos. Autores praticam autocensura. O impacto é grande na criatividade dos livros publicados", afirma Del Priore. "A cena da prefeita que descarta livros no lixo é patética. Nossos sinais amarelos estão acesos."
06/05/2024