A Revista Brasileira, a mais antiga do país, vinculada à Academia Brasileira de Letras (ABL) e cuja primeira edição remonta a 1855, está sob nova direção desde o ano passado. A escritora, ensaísta e jornalista carioca Rosiska Darcy de Oliveira, que em 2013 se tornou a oitava mulher a ocupar uma cadeira na ABL, assumiu a publicação com o intuito de torná-la contemporânea.
Rosiska vem a Belo Horizonte participar do projeto Sempre um Papo, nesta segunda-feira (5/6), para lançar a nova edição da Revista Brasileira, cujo tema é a democracia. O encontro dela com o público terá mediação da escritora mineira Carla Madeira (autora do best seller “Tudo é rio”) e de Afonso Borges, criador do projeto.
A acadêmica e jornalista promoveu mudanças no projeto gráfico, no formato e no conteúdo da publicação. Agora, cada edição coloca em foco um assunto crítico da realidade do país, por meio de textos escritos por importantes pensadores, estudiosos e artistas.
Além da própria Rosiska, a Revista Brasileira – Democracia traz colaborações de Caetano Veloso, Itamar Vieira Junior, Antonio Cicero, Sérgio Abranches e Eugênio Bucci, entre outros articulistas.
Reforma radical
A jornalista e escritora observa que a publicação tem lastro importantíssimo, mas, ao longo de mais de um século, acabou perdendo o compasso de seu tempo.
“Ela já teve como colaboradores Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e por aí vai. Posteriormente vieram Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, enfim, todos os grandes nomes que já compuseram a Academia. Com o passar do tempo, foi se tornando uma revista não muito contemporânea. Fiz uma reforma radical, de forma e conteúdo”, destaca.
A editora ressalva que a Revista Brasileira mantém a herança do que sempre foi, com destaque especial para a literatura e a cultura em geral. “Ela debateu, historicamente, a sociedade e os costumes de sua época. Hoje estamos discutindo o nosso tempo, colocando em pauta questões prementes da atualidade, chamando para isso aquelas pessoas que atendem, no nosso entendimento, ao critério de excelência”, pontua.
A pertinência do tema do novo número reside no fato de que a democracia está em crise, de acordo com Rosiska. “Existe a dificuldade em dar conteúdo preciso para esta palavra e a dificuldade em transformá-la de um conceito abstrato em realidade cotidiana, da vida real. Isso se faz enraizando a democracia em demandas de direitos – direitos humanos e todos os direitos constitucionais, por exemplo”, destaca.
A publicação da ABL não se limita ao tema central. Dois artigos do novo número, assinados por Sérgio Rodrigues e por Jom Tob Azulay, tratam da dicotomia entre a língua portuguesa e a língua brasileira. “A língua portuguesa, que é base de nossa formação, não dá conta de toda a língua brasileira, que está em construção, porque as coisas estão sendo nomeadas ainda. Nós temos herança africana, temos herança indígena, quer dizer, são interferências na língua, ou melhor dizendo, enriquecimentos para além da língua portuguesa clássica”, diz Rosiska.
“Os dois artigos tratam desse jogo entre tradição e inovação na língua que se fala no país”, pontua. Tal discussão vai ao encontro do que ocorrendo, em âmbito estadual, na Academia Mineira de Letras (AML).
Em março, Ailton Krenak se tornou o primeiro indígena a ocupar uma cadeira da AML. O novo presidente da instituição, professor Jacyntho Lins Brandão, proporá mudança estatutária para que a Academia não só preserve, estude e divulgue a língua portuguesa, mas também as outras línguas do Brasil.
Rosiska Darcy de Oliveira afirma que o enriquecimento da língua brasileira por parte de povos indígenas sempre foi discutido na ABL, mas ao longo dos últimos anos isso vem tomando outros contornos. “Na medida em que os próprios povos originários começam a ser mais reconhecidos como cidadãos, ocupando lugares de destaque na sociedade, suas diferentes línguas passam a ganhar importância muito maior”, destaca.
Feminismo e democracia
Com a reformulação da Revista Brasileira, é de se esperar que pautas feministas ganhem maior destaque, pois Rosiska é uma das principais pensadoras do feminismo no Brasil, tema que perpassa praticamente toda a sua obra.
A escritora ressalta que houve mudanças ao longo dos últimos anos – e também permanências. “Questões referentes ao corpo e à sexualidade a partir do lema do movimento feminista nos anos 1970, ‘nosso corpo nos pertence’, acho que isso se afirmou em termos de maior liberdade sexual e de maior difusão da contracepção”, observa.
Por outro lado, aponta, o feminismo ainda não conseguiu quebrar o que ela considera “uma das mais desastrosas barreiras”: a criminalização do aborto. O recrudescimento da violência contra a mulher – a despeito de avanços como a Lei Maria da Penha – tem lugar central na pauta feminista na atualidade, reforça.
“O fenômeno do feminicídio é inacreditável, é inadmissível que esteja acontecendo da maneira como está. Ele é o sintoma mais claro da chaga que segue latente, e da necessidade da luta contínua”, aponta.
De acordo com Rosiska, o movimento feminista foi e continua sendo um grande sucesso. “Foi uma das revoluções mais importantes – senão a mais importante – do século 20. Por outro lado, creio que foi e continua sendo uma das razões da onda conservadora. O sucesso do movimento criou medo muito grande em toda a ala conservadora, que passou a evocar os costumes e a opor uma reação extremamente violenta, inclusive no sentido físico, contra a liberdade das mulheres”, ressalta.
Atualmente com 79 anos, Rosiska foi exilada na Suíça em 1969, depois de denunciar a tortura infligida a opositores da ditadura civil militar. Participou da criação do movimento feminista naquele país e, de volta na década de 1980, encampou essa luta no Brasil.
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher no governo Fernando Henrique Cardoso, ela criou o Centro de Liderança da Mulher. Sua trajetória está contada no documentário “Elogio da liberdade”, dirigido pela atriz Bianca Comparato e lançado em 2019.
Autora dos livros “A libertação da mulher” (1975), “O elogio da diferença: o feminino emergente” (1991) e “Liberdade” (2019), Rosiska considera a violência o principal nó a ser desatado no que tange aos direitos femininos.
“A agressão permanente às mulheres não pode persistir, a agressão física, o assassinato. Isso é uma pauta que mudou, no sentido de se tornar mais urgente e mais grave. Temos isso entranhado em uma pauta nova, a luta contra o conservadorismo, a luta antifascista”, ressalta.
Avanço tecnológico e retrocesso político
O próximo número da Revista Brasileira vai abordar a inteligência artificial (IA). A editora considera que essa é a ponta de lança dos fenômenos relativos ao avanço tecnológico. Também diz que outro fenômeno – o das redes sociais – se impôs como debate incontornável na atualidade.
Para ela, as redes sociais foram utilizadas “no sentido de se promover determinadas lavagens cerebrais”. A criação de guetos virtuais, que não dialogam entre si ou o fazem de forma agressiva, é outro malefício, aponta.
“O pensamento binário que as redes sociais instauram quando colocam o 'curtiu' e o 'não curtiu' sem nenhuma nuance – é sim ou não – torna tudo muito pobre, muito pouco complexo. Mas a vida real é complexa, ela tem uma gama, e é justamente essa gama que a democracia representa. Se há um efeito redutivo disso, estamos falando, sim, de ameaça à democracia”, destaca.
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
• Lançamento de novo número da Revista Brasileira, no Sempre um Papo
• Nesta segunda-feira (5/6), às 19h30, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi)
• Entrada franca