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ABL na mídia - Diário de Petrópolis - In Memoriam de José Murilo de Carvalho

 

Foi com surpresa – e extremo pesar – que tomei conhecimento da morte do historiador José Murilo de Carvalho (JMC), na madrugada de domingo, 13/08/2023. Eu o conheci pessoalmente nos idos de 1992/1993, meses antes da realização do plebiscito ocorrido em 21 de abril de 1993. Desde então, acompanhei sua brilhante carreira de historiador e professor, mantendo eventuais contatos pessoais. Num desses encontros, ainda me lembro de um comentário dele sobre alunos de mestrado, naquela época, para quem a História do Brasil havia começado com a Revolução de 1930.

Ao tomar conhecimento de sua obra, sempre observei seu cuidado em ir às fontes primárias em suas pesquisas para os muitos livros que publicou, 19 no total. “A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial”, “Os Bestializados” e “A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil” são livros de leitura obrigatória. Eles me abriram os olhos para muita coisa mal contada em nossa História do século XIX, época em que o País tinha rumo. Na mesma tecla, bate Heitor Lyra em sua monumental “História de Dom Pedro II”, recém-reeditada, em volume único, também imperdível.

No plebiscito de 1993, embora JMC reconhecesse que havia um diferencial político-institucional a favor das instituições do Império, reconhecido,em 1889, por presidentes latino-americanos, como Rojas, da Venezuela, ele não via uma real possibilidade de vitória para o parlamentarismo monárquico. E a razão era pública e notória. Havia uma mídia completamente tomada pela esquerda de então, em que se tratou essa possibilidade como piada. Era o apagão de nossa memória histórica em seu triste esplendor. Felizmente, hoje, este clima mudou.

É fato que JMC, em seus últimos anos de vida, em duas entrevistas, uma dada em 2019 a Zuenir Ventura, e outra, em 2022, ao jornalista português Manuel Carvalho, que lhe perguntou se “O Brasil vive um ambiente de desistência cívica?”, ele respondeu a ambos que estava pessimista em relação ao futuro do País. Fez a ressalva de que talvez resultasse de sua idade avançada. E deu razões sólidas para tal, basicamente resumidas na incapacidade histórica de a república cuidar da educação pública de qualidade e de reduzir significativamente a desigualdade num ritmo de crescimento pífio do PIB.

Na entrevista dada ao Zuenir Ventura, JMC estava pessimista inclusive em relação a seu ofício de historiador: “Hoje já não se fala mais da História como mestra da vida. A própria ideia de que a História deve descobrir a verdade caducou”. Por certo, ele conhecia a visão do famoso orador romano Cícero (106-43 a.C.), em seu livro “Da Oratória”, onde era categórico sobre a História como mestra da vida: “A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mensageira do passado. Que voz, se não a do orador, pode torná-la imortal?”.

É fato que, desde o século XIX, o historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886) defendeu que a História tivesse uma metodologia e uma teoria, como forma de respaldar seu caráter profissionalizante, sério e ao mesmo tempo uma tendência à cientificidade. A História deixaria de ser uma narrativa de exemplos provenientes dos grandes homens e dos grandes feitos. Outro historiador e filósofo, Jörn Rüssen, propunha fazer uso da utilidade do saber histórico. Usar o conceito da práxis: ter poder para agir intencionalmente. Na verdade, é a proposta de Marx de transformar o mundo e não de simplesmente interpretá-lo. Leandro Karnal nos fala da História como um banco de exemplos para não repetir os erros do passado. Hoje, muitos não acreditam nisso, vendo as lições da História como como algo inútil, dada a frequência da repetição de tantos erros. Mas Karnal nos diz que Cícero continua vivo, e que as pessoas em conversas reafirmam sua visão.

É a velha lenga-lenga marxista de propor uma nova História, passando pela luta de classes (ditadura do proletariado) para chegar à sociedade sem classes. Conseguiram, de fato, erigir uma sociedade dirigida por opressores desclassificados como Stálin e seus asseclas. Depois de 70 anos de comu-nismo, acabaram dando razão a Adam Smith, e tendo que recorrer às regras de uma economia de mercado para destravar a paralisia da economia soviética.

A questão levantada por marxistas de que não faz mais sentido ver a História como mestra da vida, negando a importância dos grandes feitos e dos grandes homens, é que caducou depois do esfacelamento da antiga URSS. Claro que, ao longo do século XIX e boa parte do XX, ainda podiam sustentar a fantasia de que a História nada tinha a nos ensinar. Mas como esquecer os crimes de Stálin, do Khmer Vermelho e muitos outros patrocinados por regimes comunistas? Ou seja, na verdade, a História como mestra da vida continua viva. E, como nos diz Leandro Karnal, a História continua a nos orientar.

Estando com 78 anos, na mesma faixa etária de JMC, num evento da ABL – Academia Brasileira de Letras, eu lhe passei um artigo meu, publicado nos jornais de Petrópolis, onde afirmava que havia razões para certo otimismo. A quantidade de livros e publicações, referentes ao nosso século XIX e anteriores, era reveladora do grande interesse do público leitor pela nossa real História.

Quem sabe foi mesmo a idade, com suas falhas de memória, que lhe impediu de relembrar que sua própria obra, em boa medida, era um resgate daquilo que não pode ser esquecido em nossa História. Em especial, a qualidade do arcabouço político-institucional do Império, que nos permitia controlar os desmandos do andar de cima. E que hoje está desativado, mas não perdido para sempre. A boa notícia é que essas informações estão vindo à tona.

Tenho certeza que JMC, como adepto do debate civilizado, encararia com naturalidade essa minha discordância bem fundamentada, em que reafirmo a História como mestra da vida. E é provável que concordasse comigo.

Ele lutou o bom combate, como o apóstolo Paulo.

Foi com surpresa – e extremo pesar – que tomei conhecimento da morte do historiador José Murilo de Carvalho (JMC), na madrugada de domingo, 13/08/2023. Eu o conheci pessoalmente nos idos de 1992/1993, meses antes da realização do plebiscito ocorrido em 21 de abril de 1993. Desde então, acompanhei sua brilhante carreira de historiador e professor, mantendo eventuais contatos pessoais. Num desses encontros, ainda me lembro de um comentário dele sobre alunos de mestrado, naquela época, para quem a História do Brasil havia começado com a Revolução de 1930.

Ao tomar conhecimento de sua obra, sempre observei seu cuidado em ir às fontes primárias em suas pesquisas para os muitos livros que publicou, 19 no total. “A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial”, “Os Bestializados” e “A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil” são livros de leitura obrigatória. Eles me abriram os olhos para muita coisa mal contada em nossa História do século XIX, época em que o País tinha rumo. Na mesma tecla, bate Heitor Lyra em sua monumental “História de Dom Pedro II”, recém-reeditada, em volume único, também imperdível.

No plebiscito de 1993, embora JMC reconhecesse que havia um diferencial político-institucional a favor das instituições do Império, reconhecido,em 1889, por presidentes latino-americanos, como Rojas, da Venezuela, ele não via uma real possibilidade de vitória para o parlamentarismo monárquico. E a razão era pública e notória. Havia uma mídia completamente tomada pela esquerda de então, em que se tratou essa possibilidade como piada. Era o apagão de nossa memória histórica em seu triste esplendor. Felizmente, hoje, este clima mudou.

É fato que JMC, em seus últimos anos de vida, em duas entrevistas, uma dada em 2019 a Zuenir Ventura, e outra, em 2022, ao jornalista português Manuel Carvalho, que lhe perguntou se “O Brasil vive um ambiente de desistência cívica?”, ele respondeu a ambos que estava pessimista em relação ao futuro do País. Fez a ressalva de que talvez resultasse de sua idade avançada. E deu razões sólidas para tal, basicamente resumidas na incapacidade histórica de a república cuidar da educação pública de qualidade e de reduzir significativamente a desigualdade num ritmo de crescimento pífio do PIB.

Na entrevista dada ao Zuenir Ventura, JMC estava pessimista inclusive em relação a seu ofício de historiador: “Hoje já não se fala mais da História como mestra da vida. A própria ideia de que a História deve descobrir a verdade caducou”. Por certo, ele conhecia a visão do famoso orador romano Cícero (106-43 a.C.), em seu livro “Da Oratória”, onde era categórico sobre a História como mestra da vida: “A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mensageira do passado. Que voz, se não a do orador, pode torná-la imortal?”.

É fato que, desde o século XIX, o historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886) defendeu que a História tivesse uma metodologia e uma teoria, como forma de respaldar seu caráter profissionalizante, sério e ao mesmo tempo uma tendência à cientificidade. A História deixaria de ser uma narrativa de exemplos provenientes dos grandes homens e dos grandes feitos. Outro historiador e filósofo, Jörn Rüssen, propunha fazer uso da utilidade do saber histórico. Usar o conceito da práxis: ter poder para agir intencionalmente. Na verdade, é a proposta de Marx de transformar o mundo e não de simplesmente interpretá-lo. Leandro Karnal nos fala da História como um banco de exemplos para não repetir os erros do passado. Hoje, muitos não acreditam nisso, vendo as lições da História como como algo inútil, dada a frequência da repetição de tantos erros. Mas Karnal nos diz que Cícero continua vivo, e que as pessoas em conversas reafirmam sua visão.

É a velha lenga-lenga marxista de propor uma nova História, passando pela luta de classes (ditadura do proletariado) para chegar à sociedade sem classes. Conseguiram, de fato, erigir uma sociedade dirigida por opressores desclassificados como Stálin e seus asseclas. Depois de 70 anos de comu-nismo, acabaram dando razão a Adam Smith, e tendo que recorrer às regras de uma economia de mercado para destravar a paralisia da economia soviética.

A questão levantada por marxistas de que não faz mais sentido ver a História como mestra da vida, negando a importância dos grandes feitos e dos grandes homens, é que caducou depois do esfacelamento da antiga URSS. Claro que, ao longo do século XIX e boa parte do XX, ainda podiam sustentar a fantasia de que a História nada tinha a nos ensinar. Mas como esquecer os crimes de Stálin, do Khmer Vermelho e muitos outros patrocinados por regimes comunistas? Ou seja, na verdade, a História como mestra da vida continua viva. E, como nos diz Leandro Karnal, a História continua a nos orientar.

Estando com 78 anos, na mesma faixa etária de JMC, num evento da ABL – Academia Brasileira de Letras, eu lhe passei um artigo meu, publicado nos jornais de Petrópolis, onde afirmava que havia razões para certo otimismo. A quantidade de livros e publicações, referentes ao nosso século XIX e anteriores, era reveladora do grande interesse do público leitor pela nossa real História.

Quem sabe foi mesmo a idade, com suas falhas de memória, que lhe impediu de relembrar que sua própria obra, em boa medida, era um resgate daquilo que não pode ser esquecido em nossa História. Em especial, a qualidade do arcabouço político-institucional do Império, que nos permitia controlar os desmandos do andar de cima. E que hoje está desativado, mas não perdido para sempre. A boa notícia é que essas informações estão vindo à tona.

Tenho certeza que JMC, como adepto do debate civilizado, encararia com naturalidade essa minha discordância bem fundamentada, em que reafirmo a História como mestra da vida. E é provável que concordasse comigo.

Ele lutou o bom combate, como o apóstolo Paulo.

Autor: Gastão Reis

Economista e escritor

Artigo na íntegra: https://www.diariodepetropolis.com.br/Integra/gastao-reis-246621

22/08/2023