Não parece: justamente agora, quando pensávamos em desafios da era moderna, ecologia, internet, conquista espacial, somos obrigados a viver e conviver com velhas palavras e usanças que julgávamos desativadas para sempre. Uma delas, que voltou ao cartaz com força total, é nepostismo.
Em sua origem latina teria duplo sentido, pois tanto pode significar alguma coisa relativa a um neto ou a um sobrinho, enfim, a um descendente. Sem querer deitar uma erudição que não tenho, lembro um caso do mais deslavado nepotismo, também um dos mais escandalosos: foi o daquele papa (Pio 4º) que nomeou seu sobrinho para o Sacro Colégio, ou seja, fez um jovem, quase um menino, tornar-se cardeal.
Tratava-se do nosso doméstico São Carlos, padroeiro involuntário de uma antiga escola de samba e do morro homônimo aqui no Rio. No calendário religioso, é venerado como São Carlos Barromeu (alguns grafam Barromeo), por sinal, meu santo onomástico, embora não lhe tenha nenhuma devoção. Seu corpo está hoje na cripta do Duomo de Milão, cidade onde foi bispo e herói. Morreu de peste, tentando salvar as vítimas da epidemia que assolava a sua cidade.
O seu irmão Frederico foi importante personagem do romance italiano mais famoso, "I Promessi Sposi" (Os noivos) de Manzoni, uma espécie de Alexandre Dumas com menos imaginação e melhor estilo. Carlos foi canonizado, é santo de trânsito mundial e, pelo menos no que lhe toca e concerne, justificou em parte a escolha do tio. Foi realmente um exemplo de pastor que deu a vida por suas ovelhas.
Mesmo assim, a excessão não firma a regra. Se o nepotismo fizesse santos por aí afora não seria, como é, umas das pragas dos governos autoritários e paternalistas. Justiça seja feita aos governos militares dos quais ficamos livres: houve muita corrupção, muita leviandade no trato dos cargos e dos dinheiros públicos, sobretudo muita violência e muita tortura, mas não houve, realmente, um caso escancarado de filho ou um sobrinho em evidência.
Evidente que, nos escalões inferiores, ser parente de um general contava ponto no funcionalismo da nação, que era a espinha dorsal do nosso mercado de trabalho.
Pelo que se saiba, ninguém chegou ao primeiro escalão pelo fato de ser filho ou sobrinho do principal governante.Já no finalzinho do regime, o último general de plantão (João Figueiredo) se empenhou pela nomeação de um irmão teatrólogo para cargo de segundo escalão no Rio de Janeiro, presidente da Funarj ou coisa assim.
Já comentei em crônica da página 2 a onda moralista que atacou a mídia e alguns setores da sociedade quanto ao nepostismo específico dos atuais senadores. Moralismo suspeito, que lembra, pela virulência, os piores momentos da velha UDN, cujos principais líderes berravam nas manchetes dos jornais: "Somos um povo decente governado por ladrões". No passado, Getúlio nomeara um Vargas para chefe de polícia - foi a gota d´água que derrubou em 1945. Levando em conta a situação da época, foi dose.
Nos quadros funcionais de todas as casas do Legislativo, Senado, Câmara, Assembleias estaduais e Câmaras municipais, um exame superficial nas folhas de oagamento mostrará a concentração massiva de parentes na cota dos colegas.
Foi assim que uma filha de FHC parou no gabinete de um senador onde podia trabalhar em casa, alegando que o Senado é uma bagunça.
Um senador estreante declarou que já empregou mais de 5.000 pessoas em sua vida pública. Lula perguntou a Eduardo Suplicy se em 18 anos de Senado ele não sabia de nada. O próprio Lula, nos quatro anos em que foi deputado, usou as passagens aéreas a que teria direito para levar sindicalistas do ABC a Brasília. Na ocasião, seriam eles uma espécie de cabos eleitorais do futuro presidente da República.
Evidente que o abuso não justifica o uso. Mas a grita, as gravações da PF e o espaço da mídia dedicados ao pedido de um emprego para o namorado da neta de um senador me pareceram redundantes. Quando os fariseus de sempre quiseram apedrejar a pecadora, foram desafiados na base: quem nunca pecou atire a primeira pedra.
Folha de S. Paulo, 31/7/2009