A narrativa de Euclides da Cunha a respeito de Antônio Conselheiro, em “Os Sertões”, é bem elucidativa do seu personalíssimo estilo: “Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerceu grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos...”
Dois paulistas se encontram, na Academia Brasileira de Letras, e o tema é o centenário da morte de Euclides da Cunha, nascido em Cantagalo (RJ), no dia 20 de janeiro de 1866. A recordação foi até aquela manhã de domingo, 15 de agosto de 1909, quando o genial autor de “Os Sertões” morreu, no duelo com o aspirante Dilermando de Assis, com quem trocou tiros no bairro carioca da Piedade. Um dos interlocutores (Cícero Sandroni) lembrou as sucessivas ausências de Euclides do lar, absorvido pelas obras a que estava obrigado, como engenheiro, inclusive a famosa ponte de São José do Rio Pardo, até hoje de pé. O outro (Paulo Nathanael Pereira de Souza) confirmou esses vazios: “Foi no interior paulista que ele escreveu as sucessivas matérias do jornal “O Estado de São Paulo”, que deram origem à epopéia de “Os Sertões”. E construiu diversas casas.
Deixando de lado a tragédia que marcou o fim de um dos nossos maiores escritores, concentramo-nos na obra literária do acadêmico Euclides da Cunha. Homem de grande cultura, misto de civil e militar, foi engenheiro, historiador, geógrafo, jornalista, poeta e permanente defensor da natureza, o que na sua época não era muito comum. Ajudou a compreender melhor o Brasil.
Antes do episódio histórico, chegou a criticar o movimento messiânico de Antônio Conselheiro, mas ao testemunhar pessoalmente, durante pouco menos de dez dias, o horror da chacina, mudou drasticamente de posição, produzindo o seu livro de repercussão internacional. Foi então que nasceu a expressão “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Como lembrou o historiador Cássio Schubsky, Euclides foi além e condenou, há mais de 100 anos, as queimadas e desmatamentos. Utilizou o seu linguajar erudito, algumas vezes até incompreensível, para defender a Amazônia e os seus rios caudalosos. No livro “Contrastes e confrontos”, Euclides da Cunha, que discursou diante do caixão de Machado de Assis, seu contemporâneo, parece adivinhar que a leitura dos seus textos não é um exercício dos mais fáceis.
É preciso dissecar esse pensamento, para compreender o sentido do que ele pretendeu com os seus escritos. Vale a advertência, para os que se irão iniciar em Euclides da Cunha, de que é importante ultrapassar os primeiros passos da caminhada literária. Mesmo em “Os Sertões”, se não houver paciência, é bem possível que o leitor desista antes da metade. Mas se vencer essa etapa, conhecerá as luzes de um dos textos mais bonitos da língua portuguesa.
Jornal do Commercio (RJ), 31/7/2009