O escritor Arthur Koestler, numa época famoso por seus romances de temática política, falava de um personagem que, dizia ele, tinha um curioso estrabismo intelectual: podia ver ao mesmo tempo a cara e a coroa da moeda, o lado positivo e o lado negativo de uma questão qualquer.
O destino colocou-me numa posição semelhante quando, de um lado, trabalhei médico de saúde pública e, de outro, colaborava com este jornal. Podia assim ver como a questão de uma doença epidêmica era enfocada desde estas perspectivas, diferentes e não raro contrárias. Ao pessoal da saúde cabia combater a doença; ao pessoal da imprensa, informar o público sobre a mesma.
Choques eram inevitáveis. No começo, podiam ser atribuídos a informação equivocada, resultante do desconhecimento dos jornalistas sobre uma área especializada (lembro de uma notícia que falava em um “vírus da morte”, o que quer que isto seja). À medida que o tempo passou, contudo, esse problema foi deixando de existir. Os jornalistas hoje estão extremamente bem informados, alguns têm conhecimento de causa para debater com médicos, sem falar dos médicos que fazem jornalismo.
Mas as queixas dos técnicos não se limitavam a isso. Vamos tomar como exemplo o sombrio episódio que foi a epidemia de meningite meningocócica de 1974. A doença disseminou-se rapidamente em grandes cidades brasileiras, São Paulo, Porto Alegre, causando muitos óbitos, sobretudo em crianças.
E esses óbitos davam manchete. Ao lê-las, os técnicos ficavam por conta. Lembravam que outras doenças, como a diarreia infecciosa, matavam muito mais, fato que raramente era noticiado. E queixavam-se também do alarmismo que teria sido desencadeado pelo abundante noticiário.
Por que a epidemia de meningite recebia tanto espaço na mídia? Em primeiro lugar porque era, claro, um problema grave e real. Depois porque, diferente da diarreia infantil, que era uma coisa sistemática e crônica, tinha aparecido subitamente.
Por último, mas não menos importante: diarreia era, e é, basicamente doença de pobre, enquanto a meningite não poupava a classe média, aquela que forma a chamada opinião pública, que lê jornais e revistas, e que se manifesta a respeito. Os jornalistas estavam veiculando uma preocupação de pessoas com quem conviviam.
E aí vem a questão do alarmismo. Com este, o governo de então (era, lembrem, a época da ditadura) lidou de forma radical, proibindo o noticiário sobre meningite. O resultado foi catastrófico. O vácuo de informações acionou a rede informal de comunicação, movida principalmente a boatos. Se antes as pessoas estavam assustadas, a partir dali entraram em pânico.
É melhor falar do que calar. Sempre: seja nas relações pessoais, seja num problema de saúde da população. Mesmo porque falar é o primeiro passo para a ação. Há muitas coisas que as pessoas podem fazer para combater a disseminação do vírus da gripe.
O que a mídia está fazendo, independentemente do tamanho das manchetes, é ensinar as pessoas a fazer essas coisas. E está ensinando muito bem.
Aquilo que Arthur Koestler rotulou como estrabismo não é um problema ocular. É uma virtude, como aos poucos vamos descobrindo. Conhecer todos os aspectos de um problema ajuda a decidir o que fazer. E nos torna cidadãos melhores, seres humanos melhores.
Quando comecei a escrever para Zero Hora, muitas vezes me beneficiei dos conselhos que me dava o Lauro Schirmer. Ele era preciso, sintético, objetivo. Se Deus está pensando em lançar um jornal, fará bem em consultá-lo.
Zero Hora (RS), 28/7/2009