A notícia tem algo do cômico. Everton Cleiton, 21 anos, foi preso no Rio, após assaltar, junto com dois companheiros, uma van de transporte coletivo. E foi preso por causa de sua distração: na fuga, esqueceu a mochila, onde estava um currículo com vários de seus dados, incluindo o endereço. Igualmente engraçado, ou aparentemente engraçado, é o fato de que, no currículo, Everton se descreve como "educado, de fácil trato", com "facilidade para trabalhar em equipe, muita vontade de crescer profissionalmente e disponibilidade de horários".
A gente lê isso com um sorriso, mas depois ficamos pensando. O currículo de Everton nada tem de diferente de milhares de currículos que jovens como ele distribuem diariamente (às vezes, fazem isso no centro das grandes cidades, como a tevê já mostrou): um documento inespecífico, copiado de outro semelhante, e que se expressa mais como uma declaração de intenções do que como um currículo propriamente dito daqueles que contêm títulos de mestrado, de doutorado, lista de trabalhos publicados. Mas, para Everton, esse currículo, mesmo precário, era o instrumento para a conquista de um sonho, um emprego decente, digno, com bom salário. Por quanto tempo terá Everton perseguido esse sonho? Não sabemos. O certo é que, à certa altura, ele cansou. Ou por causa da desesperança, ou porque precisava de grana, Everton, como outros, enveredou pela senda do crime. O rapaz que havia sido ajudante de pintor, serralheiro e estoquista, agora simplesmente é um assaltante, um estigma do qual dificilmente se livrará. Alguém pode dizer que é ex-ajudante de pintor, mas vocês já ouviram falar em ex-assaltante? Para a maioria das pessoas, uma vez assaltante, sempre assaltante.
O currículo de Everton Cleiton, que diz muito acerca da realidade brasileira, agora talvez mude, com o surgimento de uma nova seção. Que começará assim: "Realizou seu primeiro assalto em junho de 2009. Não foi bem-sucedido, mas a experiência adquirida na prisão fez com que...". Completem, se quiserem. Eu prefiro torcer para que essa seção não exista, para que Everton - por algum tipo de milagre - volte a ser serralheiro ou estoquista, profissões das quais o Brasil sem dúvida necessita. Se o azar fez com que Everton esquecesse o currículo, talvez a sorte se lembre dele. Para ajudá-lo, e para ajudar a todos nós.
Finalmente, uma observação irônica: não é a primeira vez que um assaltante esquece o currículo no lugar do assalto. A mesma coisa aconteceu em março de 2006 no roubo de uma joalheria em Bauru, SP. Será que, no fundo, os assaltantes não estão querendo, na verdade, distribuir currículos?
Na semana passada participei de um evento simbólico e até histórico: um painel realizado na Academia Brasileira de Letras. Ali estavam, na mesa, o presidente da ABL, jornalista Cícero Sandroni, o historiador e escritor Alberto da Costa e Silva, também da ABL, e eu. Os três outros componentes da mesa eram Daniel Munduruku, Graça Graúna, Darlene Taukane.
Estranharam os sobrenomes? Não estranhem. Os três são indígenas. E estavam ali justamente para discutir, conosco e com o público, que incluía vários índios, alguns de cocar, a literatura indígena no Brasil. Em termos de currículo, e em outros termos, credenciais não lhes faltam. Daniel, escritor infanto-juvenil de renome, é graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia, e é doutorando em Educação na Universidade de São Paulo. Graça, indígena potiguara, é doutora em Letras, e Darlene, da etnia kurabakairi, é meste em Educação. Pois estas pessoas, integrantes de um grupo humano sofrido, vítima de brutal genocídio, ali estavam, na casa de Machado de Assis (também uma figura sofrida, um mulato de origem humilde), falando sobre a literatura de sua gente. Um fato animador, consolador até. Daniel, Graça e Darlene alcançaram seus objetivos, venceram os obstáculos. Esperemos que os Everton da vida também o consigam.
Zero Hora (RS), 23/6/2009