Uberaba, onde estive há algumas semanas para uma palestra, é uma bela e culta cidade, com magníficos e antigos prédios, situada numa região de tradicional riqueza, o Triângulo Mineiro. Mas há um problema decorrente dessa localização. O problema é que o triângulo tem três vértices e, no caso de Minas, um dos vértices restantes chama-se Uberlândia. Cidade que, ao menos para algumas pessoas com quem falei, incomoda. É bem maior do que Ubaraba e, aparentemente, mais próspera. O que cria uma sub-reptícia rivalidade que não é exceção nem do Brasil nem em outros lugares. Cidades rivais existem por toda parte. Aqui no RS temos vários exemplos: caxias do Sul e Bento Gonçalves, Lajedo e Santa Cruz. E, claro, existe a antiga e paradigmática rivalidade entre Rio e São Paulo.
Como é que cidades se tornam rivais? Em primeiro lugar, elas devem estar próximas, ou relativamente próximas. São Paulo nunca competirá com Pequim ou com Moscou ou com Nova York. É preciso que os moradores da cidade se encontrem com uma certa frequência, que tenham notícias uns dos outros.
Em segundo lugar, precisa haver algum motivo para a competição. Esse motivo classicamente é o poder: poder político e/ou econômico. O Rio foi durante muito tempo a capital federal; tinha o poder político e isso, de alguma maneira, associava-se ao poder econômico. Um país não pode ter duas capitais, de modo que São Paulo (o estado e a cidade) resolveu apostar no crescimento econômico, uma aposta que se revelou acertada. Coincidentemente a capital passou a ser Brasília, o que, queiram ou não os cariocas, representou uma perda, pelo menos no que se refere ao status político. O Rio ainda tem a beleza natural (se bem que o país agora está cheio de resorts) e uma vida artística e cultural intensíssima, mas é grana, e a grana gosta de São Paulo.
Em terceiro lugar a rivalidade tem de se expressar de alguma maneira. Existe um folclore da rivalidade. Os habitantes de um lugar caracterizam (depreciativamente, mas com humor) os habitantes do lugar rival. Os cariocas, dizem os paulistas, são uns folgados, não querem nada com o batente. Os paulistas, dizem os cariocas, não têm imaginação, não têm criatividade, só pensam em ganhar dinheiro, mesmo enquanto estão em seus carros, dirigindo nas rodovias congestionadas, rumo às praias distantes e cheias de gente.
Esse folclore se expressa num anedotário semelhante àquelas historinhas étnicas: brasileiro conta anedota de português e de argentino, os americanos (ao menos antes do politicamente correto) referiam-se depreciativamente aos poloneses. Para os franceses a sífilis era a doença italiana; como para os portugueses era a doença castelhana; para os poloneses, a doença alemã; para os russos, a doença polonesa. havia ainda a denominação peste dos marranos, marranos sendo os judeus convertidos à força pela Inquisição - acreditava-se que a sífilis fosse consequência das maldades do judaísmo. Essas denominações mostram o grau de disseminação da doença e o estigma que representava, coisa que o México descobriu recentemente quando foi associado à gripe (que é suína; os bovinos devem ter pressionado em favor dessa denominação). Mexicanos foram barrados em vários locais, o que gerou protestos, justificados, de seu país.
A rivalidade - entre pessoas, entre grupos, entre regiões - tem raízes psicológicas. Resulta de um mecanismo de projeção. Colocamos nos outros coisas que existem dentro de nós mesmos. É claro que os paulistas gostariam de ter a cuca fresca que atribuem aos cariocas. É claro que os cariocas gostariam de trabalhar e de faturar como os paulistas. Como essas coisas nem sempre são possíveis, ocorre a projeção acompanhada de um caráter depreciativo. Mas no fundo, no fundo, somos todos iguais, não importa a cidade em que vivemos.
Correio Braziliense, 5/6/2009