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Mestre Vitalino, trancado vivo

 

Vitalino Pereira dos Santos, nosso Vitalino, é um dos maiores escultores em barro do Brasil. Nasceu, faz um século, no lugarejo Ribeira dos Campos, perto de Caruaru. Em seu depoimento a René Ribeiro, da Fundação Joaquim Nabuco, diz “Eu, além de analfabeto, criei-me trancado vivo, (...) cismado que só saguim criado no meio do mato.” Seu pai era agricultor e a mãe, além de trabalhar em casa, ajudava nas lides da roça e fazia louça de barro na entressafra.


Mudou-se desse ambiente rural para o Alto do Moura, bairro de Caruaru. A grande transformação e aceitação do seu trabalho na feira daquela cidade, feira famosa na região, obrigou-o a mudanças.


Quando menino, fazia a chamada “louça de brincadeira”, pequenos animaizinhos e vasilhas, com as sobras de barro da louça que sua mãe produzia para vender na feira.


Na realidade, foi grande o sucesso que causaram na feira de Caruaru as suas “invenções”, como qualificavam as peças do seu ofício os companheiros ceramistas.


Com a sua chegada, passou a atuar como mestre entre os demais artesãos.


Formou-se ali, em torno dele, a primeira geração de “bonequeiros:” Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Zé Rodrigues e outros.


Vitalino foi o primeiro a retratar, na região, a vida no sertão e na cidade.


Inicialmente figuras isoladas, como O Caçador de Onça, a que se seguiram grupos, que retratam desde o trabalho agropastoril do camponês até o seu desterro, nas representações que faz dos retirantes, tão adequadas à sua linguagem dramática, solidária e expressionista. Fixa igualmente ritos de passagem – nascimento, casamento e morte – e ergue do barro figuras míticas de cangaceiros, bois, lobisomens sangrando homens, o diabo tripudiando sobre o bêbado.


A crescente popularidade, tanto local como nacional, trazida pelo seu trabalho inovador, em nada altera o seu comportamento. Homem religioso, expansivo na idade adulta e com gosto pelo convívio, Vitalino tinha prazer em conversar com o seu público na feira, em beber com os amigos, em tocar na banda de pífanos. Esse seu modo comunicativo e alegre de ser, contraposto à dura condição da sua vida material, reflete-se em composições como Homem Foliando Samba, Vaqueiros, Queda de Braço, Banda, que mostram o artista gostando de estar no mundo, entre os homens.


Foi uma exposição organizada por Augusto Rodrigues, no Rio de Janeiro, 1947, – prefaciada pelo poeta Joaquim Cardozo – que revelou Vitalino aos olhos do grande público. Esse fato, um dos indicadores da “descoberta” das artes do povo pelas elites intelectuais, é conseqüência do processo histórico-cultural ligado às premissas do Movimento Modernista de 1922 e do Movimento Regionalista do Recife.


Tratava-se de tornar visíveis, para a norma erudita, os valores das culturas do povo, que até hoje mantém com a primeira e entre si uma grande circularidade, que confere à civilização brasileira uma fisionomia plural, híbrida, única no mundo, conforme Lélia Coelho Frota, na costumeira argúcia, observa muito bem.


O fato é que Vitalino alinha-se hoje entre os grandes artistas brasileiros, uma vez que estão ultrapassados os obstáculos epistemológicos que consideravam a arte do povo inferior à arte de tradição letrada ocidental.


A arte do povo tem, a partir do século XX, autoria, padrões de gosto e fruição estética próprias, de forte representação simbólica e invenção formal.


Em Flauta de Papel, o poeta Manuel Bandeira escreve várias páginas sobre Vitalino, e diz que a significação plástica dos bonecos de Caruaru “valia a de Lipchiz”, considerando-os realmente “obras de arte.”


Os trabalhos de Vitalino colocam-nos diante de “toda uma vida sentida e comentada”, como bem observou, lá em 1947, Joaquim Cardozo, na sua apresentação da primeira mostra de Vitalino e seus companheiros, no Rio de Janeiro.


Nesses até então desconhecidos escultores do povo, o olhar radiográfico de Cardozo soube ver “uma riqueza formal e uma emoção particular e duradoura.”


Tantas décadas depois de escritas, as palavras do poeta são válidas até hoje para quem se encontrar no pórtico do conhecimento da obra de Vitalino:


“Aqueles que entrarem nesta sala, livres de conceitos prejulgados ou com o espírito cuidadosamente desprovido dos símbolos e expressões nele criados pelo automatismo da memória, verão que as formas puras da beleza nem sempre repousam nas terras altas da ciência e da sabedoria dos grandes artistas, mas descem, como pássaros divinos, sobre a igualdade dos homens comuns.”


Apesar de ter a sua obra exposta no extraordinário Museu de Arte Popular de Viena e em grandes museus nacionais, em Fundações como a Joaquim Nabuco, no Recife, e Raimundo Castro Maia, no Rio de Janeiro, Vitalino, cujo centenário celebramos, morreu de varíola, em 1963, pobre e famoso, na sua casa do Alto do Moura. Hoje, mais de quinhentas famílias vivem ali da arte do barro, que ele inovadoramente implantou na cidade, considerada o maior centro de ceramistas existente da América Latina.


Jornal do Commercio (PE), 12/5/2009