Se existe área em que a desproporção entre recursos disponíveis e necessidades a serem atendidas chega a ser desesperadora, esta área é a saúde pública. Todos que ali trabalham ou trabalharam sabem: qualquer que seja o país, qualquer que seja a região simplesmente não dá para prover medicamentos, ou leitos hospitalares, ou próteses, para todos que disso necessitam. E assim chega-se à difícil situação: é preciso decidir o que será feito primeiro.
Tomemos o caso do Brasil. O famoso artigo 196 da Constituição Cidadã de 1988 (artigo este sobre o qual há 240 mil referências no Google) diz que “A saúde é direito de todos e dever do Estado”, uma afirmação justa e generosa, que procura corrigir séculos de desigualdade no país. Mas saúde não se faz só com boas intenções. Saúde faz-se com saneamento, com vacinas, com remédios, com exames, com procedimentos, e tudo isso custa dinheiro. Cada vez mais dinheiro: o custo da assistência à saúde sobe a um ritmo maior que o de qualquer inflação (não por outra razão, o presidente Obama apresentou, ontem, um plano de redução de custos na área). Milhares de pessoas têm recorrido à Justiça quando necessitam de medicamentos ou procedimentos não disponíveis no Sistema Único de Saúde, o SUS. Isto ganhou um nome: é a judicialização da saúde, que vem crescendo ao longo dos anos: só no Rio de Janeiro são cerca de mil mandatos judiciais por mês. Na imensa maioria dos casos, as demandas resultam de necessidades reais, dramáticas; mas às vezes incluem coisas como xampus (não medicamentosos, mas alguém dirá que saúde do cabelo também é saúde) e produtos não licenciados, quando não resultam de fraude: recentemente em São Paulo, um grupo foi detido porque organizava a solicitação de remédios para psoríase destinados a pessoas que sequer tinham o problema.
Os constituintes previam que distorções poderiam ocorrer e que algum limite deveria ser traçado no amplo conceito; por isso, a frase acima, sobre direito à saúde, tem continuidade: o direito à saúde deve ser “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços”. Política, com P maiúsculo, supõe planejamento, supõe programação – supõe prioridades, e estas por sua vez, significam que alguns problemas têm precedência sobre outros.
Esta questão ganha atualidade porque breve o STF, Supremo Tribunal Federal, vai decidir se o Poder Judiciário pode obrigar as secretarias da Saúde a fornecer medicamentos e outros recursos de assistência à saúde. Muita discussão já está ocorrendo a respeito, como mostrou um recente Conversas Cruzadas, notavelmente conduzido por Lasier Martins, e também a Folha de S. Paulo do último sábado, em que representantes da área judiciária, de um lado, e da área da saúde, de outro, responderam à pergunta “A judicialização do acesso à saúde contraria os princípios do SUS?” – negativamente, em um caso, positivamente, em outro. Constata-se, nesses debates, aliás extremamente necessários para a consolidação da cidadania, que Justiça e Saúde falam linguagens diferentes. A Justiça fala no direito de pessoas; a Saúde fala em prioridades condicionadas pelos recursos disponíveis. A Justiça recorre ao raciocínio jurídico; a Saúde trabalha com indicadores epidemiológicos. O importante, porém, é que tanto o Judiciário como o Executivo, do qual faz parte a saúde pública, buscam o bem-estar dos cidadãos. É preciso, portanto, construir uma linguagem comum, mediante adequados canais de comunicação.
A solução dos numerosos e graves problemas da saúde coletiva e individual só pode resultar de decisões colegiadas, tomadas num foro comum Saúde-Judiciário, que não limite a independência dos poderes e que permita a participação, ainda que indireta, de instâncias comunitárias: associações de pacientes, ONGs. A saúde é um direito de todos, é dever do Estado – e é uma questão de bom senso e de sabedoria.
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Falando em saúde, este 12 de maio é o Dia da Enfermagem. Grande categoria profissional. Grande trabalho.
Zero Hora (RS), 12/5/2009