Dia desses, assuntos burocráticos me obrigaram a ir até o centro da cidade. Não tenho hábito nem gosto de andar por lá, e procuro evitar, sempre que posso, encarar aquelas ruas tumultuadas e barulhentas. E estava justamente passando pelo olho do furacão, esquina da Avenida Rio Branco com a Rua do Ouvidor, quando reparo em dois homens, um ainda jovem e o outro já com mais de 60, que discutiam aos gritos e gestos.
Não deu para perceber o motivo, mas se xingavam, ofendiam-se, envolviam as mães. Estavam partindo para o homicídio quando o mais velho lançou ao outro uma expressão que havia muito eu não ouvia: “Você vai ver com quantos paus se faz uma canoa!”. Uma excomunhão não teria efeito tão letal.
Quando menino, era comum a ameaça contida no exato número de paus que fazem uma canoa. Nunca me explicaram suficientemente o poder de seu malefício, na verdade, nunca me interessei em saber.
Terminada a missão pelas ruas empoeiradas do Centro, e já no final da tarde, da minha varanda pude contemplar a tarde que morria. Ainda havia barcos deslizando sobre as águas da Lagoa. Na margem que dá para a Fonte da Saudade, uma canoa aparentemente abandonada. Devia ser de algum pescador fatigado de nada pescar.
Não deu para contar de quantos paus ela fora feita. Na realidade, não distingo exatamente a diferença entre um barco e uma canoa. Nenhum desafeto circunstancial ou permanente me obrigou a saber com quantos paus se faz uma delas. Além do mais, seria um conhecimento inútil. Vivi até hoje na ignorância de muitíssimas coisas – inclusive do número de paus para fazer uma canoa.
Mesmo assim, não há dia que deixe de lembrar um verso de Ribeiro Couto: “Se eu tivesse um barco, partiria agora”.
Jornal do Commercio (RJ), 16/3/2009