O legado de John Lennon Manezinho é um menino comportado, que aprendeu os sábios valores da civilização O GAROTO é franzino, meio desconjuntado. O corpo parece ter 12, 13 anos de idade no máximo. A cabeça não: é grande, comprida, o queixo para frente, narinas abertas e defeituosas. A primeira impressão é clara: a cabeça não foi feita para aquele corpo. Ou vice-versa.
Reparo as mãos do garoto: são relativamente grandes. Não há força em seu corpo: é possível que, no futebol que gosta de jogar, lembrasse alguma coisa de Garrincha. Aquele desconjuntado Mané Garrincha, que driblava qualquer um, graças às pernas tortas, ao gingado que parecia ir para um lado e ia para o outro. Por isso o apelido do garoto: Manezinho.
Pois Manezinho é um menino comportado, reza o terço, aprendeu os sábios e piedosos valores de nossa civilização. O pai humilde, porteiro de um condomínio no alto da Gávea, educa os filhos na base da compreensão, não bate neles, dá conselhos. Mas sem abrir mão de sua autoridade e da autoridade do Estado: quando o locutor da TV anuncia: "senhores pais, são tantas horas, por ordem do Juizado de Menores o programa a seguir é proibido para menores de 16 anos", só ficava na sala o filho mais velho, que tem 17 anos. Com os demais, Manezinho ia dormir, pois tem apenas 14 anos.
A cinco, seis metros do portão de Manezinho, há uma das casas do condomínio. Nela moravam um corretor da Bolsa desempregado, sua terceira ou quarta mulher, Angélica, uma loura, nem bonita nem feia, mas atraente, de 20 e poucos anos, e um dos filhos, Felipe, de 14 anos, rapaz bonito e levado.
Gosta de brigar. Certa vez, não muito longe no tempo, desentendeu-se com o porteiro do prédio onde mora sua mãe e deu-lhe navalhadas. Foi parar na polícia, como lá foi parar em outras ocasiões, pois é menino exibicionista, volta e meia arria as calças diante de mulheres e se mostrava, gosta de se fotografar nu diante do espelho, tem especial predileção pelo próprio pênis, fotografou-o de todos os ângulos, curte adoidado essas revistas, tipo expressamente proibido para menores, e gosta de mulher mesmo.
Ali naquela casa, ele vivia em aparente promiscuidade com a terceira ou quarta mulher de seu pai. Em um dezembro, numa tarde de chuva, moradores do condomínio ouviram gritos na casa do corretor da Bolsa. Ninguém foi lá para ver o que se passava. Só depois de algum tempo, quando ninguém mais gritou, começaram as suspeitas.
Um pequeno grupo entrou pela cozinha, encontrou o corpo da moça, nu, com quase 40 facadas, inclusive uma, profunda, no baixo ventre. A polícia, os jornais, a cidade e, principalmente, os moradores do condomínio formaram logo uma opinião: só podia ser Felipe. A novela estava lançada, o conflito armado, esperava-se o seu desenvolvimento.
Mas a polícia não deu uma de Janete Clair. Se a história estivesse sendo contada por um profissional, fatalmente o criminoso acabaria sendo Felipe mesmo.
Tal como Dmitri Karamazov seria o assassino de seu pai, o velho Fédor Karamazov. Mas Dostoiévski era epiléptico, tinha uma cuca fora de série, armou seu drama e descolou outro criminoso, o bastardo e epiléptico Smerdiakov.
A vida também é epiléptica. O criminoso do alto da Gávea não é Felipe. É Manezinho, que não assistia sequer aos inocentes bangue-bangues da televisão porque o pai cumpria as determinações do Juizado de Menores. Ele ia para cama então, sonhar com as mãos livres e suas, para atender ao apelo cruel que havia dentro dele.
Naquele tempo, sem poder escrever o que pretendia, fiz reportagens policiais para uma revista, usava diversos pseudônimos.
Entrevistei os dois rapazes, o inocente e o culpado. Tinham um único ponto em comum: desprezavam os pais. Um deles não podia dormir sem antes ouvir aquilo que chamou de "legado de John Lennon". Não sei bem o que é isso, mas anotei. O outro, que afinal era o criminoso, nem sabia quem era John Lennon. Não tinha ídolos. Sua única ambição era que o deixassem em paz.
A mídia estava então sob censura, não apenas na política, mas na moral e nos bons costumes. Não pude publicar a matéria. Hoje daria um excelente filme na chamada recuperação do cinema nacional.
Folha de S.Paulo (SP) 13/3/2009