Houve confusão em torno do Acordo Ortográfico da Unificação da Língua Portuguesa.
Enquanto os meios intelectuais, no Brasil, aceitaram bem a reforma, em Portugal há uma grande reação. Um abaixo-assinado de 100 mil pessoas pediu a revisão do assunto.
Alguns escritores chamam a decisão de "bizarrice" e acusam o texto do Acordo de "inúmeras contradições e até mesmo equívocos", o que não representa nenhuma tragédia, pois a correção poderá ser feita até 2012.
Se o português for unificado, como acontece com o francês e o inglês, certamente ganhará pontos a tese da sua presença como língua oficial nos organismos da ONU -o que hoje é impossível dadas as diferenças de grafia nas oito nações lusófonas (aí já incluído o Timor Leste).
Em 1911, quando se pensou pela primeira vez no assunto, escreveu-se muito a respeito, mas a decisão foi unilateral: fez-se o que foi determinado pelo governo português. Ninguém "deu bola" para a posição brasileira, então uma nação bastante atrasada e com altíssimo índice de analfabetos.
Hoje, temos um grande peso específico na matéria, pois somos 190 milhões de falantes, quase 20 vezes a soma de todos os demais países da comunidade de língua portuguesa.
Parece, no entanto, impossível o entendimento. Demonstramos uma grande boa vontade, não ocorrendo o mesmo por parte dos parceiros.
Dirigentes de Angola concordam com tudo, desde que palavras como quitanda sejam escritas com k, como acontece naquele país africano.
Portugal não abre mão do António, como se pronuncia a palavra em seu território -e aí se estabelece a confusão, apesar de haver um acordo de cavalheiros para que não se altere a fonética, o que é bastante inteligente.
O Ministério da Educação avaliará os livros didáticos, no próximo ano, somente se estiverem de acordo com a "nova ortografia". Seriam comprados para distribuição gratuita em 2011. A Academia Brasileira de Letras lançou o seu primeiro Dicionário Escolar, com 30 mil verbetes. Está naquela situação bem retratada pela "cantora" Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, na música interpretada pelo humorista Castro Barbosa, na famosa PRK-30 (Rádio Nacional): "Ah, eu tenho dois amores -um aqui, outro acolá. O de cá pede que eu fique; o de lá pede que eu vá. Não sei se vou ou se fico". A Casa de Machado de Assis prepara a nova versão do Vocabulário Ortográfico, com todos os seus mais de 360 mil verbetes.
Temos a solidariedade completa de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
O que dói um pouco, nisso tudo, é a posição de alguns escritores de Lisboa. Escrevem contra o Acordo e contra o Brasil, acusando-nos de tentativa de neocolonialismo. Seguramente, esse não é o melhor caminho para que venha o entendimento desejado.
Em meio a essa tormenta transatlântica, tem havido muita troca de informações e até visitas por parte da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa.
Os de lá veem, os de cá vão, como tem ocorrido com os imortais Evanildo Bechara, Moacyr Scliar, Domício Proença, Antonio Carlos Secchin e Ivan Junqueira. Sem nenhuma pretensão de arrogância ou predomínio, pois isso é coisa do passado.
Enquanto aqui o Ministério da Educação, para cumprir decreto do presidente Lula, marcou prazo para as alterações nos livros didáticos, em Portugal há um eloquente silêncio quanto às novas regras gramaticais.
O escritor Vasco Graça Moura condena o Acordo, considerando que para os brasileiros é mais fácil a sua implementação. Já para o filólogo João Malaca Casteleiro, que foi companheiro de Antonio Houaiss nas discussões iniciais do projeto de unificação, "o ideal teria sido que todos os países lusófonos implantassem as mudanças simultaneamente, o que infelizmente não está acontecendo".
Os meios culturais de Portugal estimulam uma "guerra de palavras". Só três jornais, dos mais importantes, adotam os novos procedimentos. A explicação é até curiosa: nosso público, dizem eles, não aceitaria de bom grado se aparecesse a palavra exceção sem o p ou espetacular sem o c. "Isso retira qualidade estética às palavras", afirmou um especialista, num evidente exagero. Há um fato positivo, nisso tudo: intelectuais como o acadêmico António Valdemar, que é presidente da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa, são francamente favoráveis à imediata implantação do Acordo Ortográfico. Segundo ele, que também é da Academia das Ciências, "quanto mais rápido isso acontecer, melhor será para o destino comum dos povos que têm o privilégio de utilizar a mesma língua de Camões, Fernando Pessoa e Euclides da Cunha".
Folha de S. Paulo (SP) 11/3/2009