IMPOSSÍVEL a um cronista dos dias de hoje não comentar a posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos. Este tipo de assunto não pertence à minha praia, mas tanto se escreveu e falou, tanto se especulou e enalteceu uma nova era nascendo para a humanidade, que, embora redundante, vou meter minha modesta colher neste substancioso mingau que está sendo servido ao mundo em generosas doses de otimismo e esperança. Fiel ao hábito de integrar a turma do contra, não perderei a oportunidade. Não irei desenvolver um pensamento lógico e ordenado, não é do meu feitio. Darei algumas pinceladas tentando explicar para mim mesmo as razões da minha dissidência no coro geral que se ergueu para saudar a Idade de Ouro que todos esperam no novo presidente.
Começo pelo partido dele, o Democrata, mais liberal do que o Republicano mas com um histórico nada recomendável. Foi no governo de um democrata, John Kennedy, que a Guerra do Vietnã teve início. Na mesma gestão, e com a aprovação pessoal do próprio presidente, foi tentada a invasão na baía dos Porcos para derrubar o regime de Fidel Castro.
Ao Partido Democrata é atribuído o mérito de ter livrado o país da Grande Depressão causada pelo desastre da Bolsa, em 1929. Sem dúvida, Franklin D. Roosevelt foi um grande presidente, mas a crise econômica dos anos 30 não acabou com o New Deal, que é tido como o salvador da lavoura que, juntamente com o comércio e a indústria, entrara em colapso no governo anterior de Herbert Hoover, um republicano.
As medidas tomadas por Roosevelt para vencer a depressão foram praticamente assistencialistas, ele criou diversas "Bolsas Famílias" e "Fomes Zero" que deram resultado proveitoso no campo social mas que em nada modificou o perfil econômico abalado pela crise. Ampliou a previdência, deu auxílio aos idosos e desempregados, promoveu discreta recuperação da indústria e concedeu maiores verbas para a agricultura do país.
Tudo bem. Embora pontual, o New Deal tirou o país do sufoco mas não o fez andar para a frente de forma articulada. Foi a Segunda Guerra Mundial que deu aos Estados Unidos o status de superpotência, graças ao esforço da nação em abastecer industrialmente os aliados e, a partir de Pearl Harbor, em sua própria defesa e interesse.
Os estudiosos daquele período começaram a falar no "complexo industrial-militar" (o hífen é necessário, independentemente do novo acordo ortográfico). Com o fim do conflito mundial, a máquina não podia parar. Coreia, Vietnã, Guerra Fria, duas guerras no Golfo, apoio financeiro, militar e tecnológico a Israel, atacado tenazmente por seus vizinhos -não faltaram desafios internacionais para manter a engrenagem em funcionamento.
Esta engrenagem é que na realidade presidirá o país mais poderoso de nossa época. O fato simpático e até comovente de haver um negro na Casa Branca encherá nossos olhos de lágrimas, afinal, 60 anos atrás, Obama não poderia sentar no mesmo banco de Bush, nem usar o mesmo banheiro. Este é o lado realmente novo e positivo. Quando Martin Luther King, em 1963, pronunciou seu célebre discurso ("I have a dream!"), não podia sonhar com um negro governando um país que ainda não se libertara do racismo.
Vista por esse ângulo que transcende a política e a economia, a posse de Obama é realmente um fato histórico, e me parece que inédito na crônica da humanidade. Se é verdade que um cabo corso chegou a imperador da França, houve antes uma revolução que aterrorizou as monarquias europeias. Na eleição de Obama não houve revolução, não houve sangue.
Nada entendo da política interna dos Estados Unidos -e nunca fiz esforço para isso. É possível que Obama seja um ótimo presidente para os norte-americanos. Já é grande lucro. Agora, no plano internacional, ele será o poder decisório, o executivo principal da máquina, do complexo industrial-militar que continuará mantendo e buscando novos mercados onde desaguar a produção.
Folha de S. Paulo (SP) 23/01/2009