Seguir a trajetória de Fernando Pessoa é ter a oportunidade real de surpreender os momentos em que o poeta optou por uma escolha, abandonou uma tendência e fixou os rumos de sua vida. Tendo sido criado em Durban, na África do Sul, tornou-se aluno de língua inglesa, idioma em que também escreveu seus primeiros poemas e ensaios.
Como se a heteronímia lhe fosse desde o começo natural, usou um primeiro heterônimo em inglês, Alexander Search. Aos 16 anos de idade, era um expert em literatura inglesa, dedicando seu tempo ao estudo de autores da Inglaterra, principalmente Shakespeare, Milton, Shelly, Keats, Byron e Tennison. Escreve poesia e prosa em inglês e escolhe mais dois heterônimos: Charles Robert Anon e H.M.L Lecher.
Só aos 17 anos, ao regressar a Portugal (em 1905), passa a usar preferencialmente a língua portuguesa e registra, em notas, haver tido a influência de Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Cesário Verde e Antônio Nobre. Mesmo assim, em 1910 - ano da proclamação da República Portuguesa - ainda escrevia poesia e prosa em português, inglês e francês.
Por ocasião do centenário de nascimento do poeta, em 1988, participei na Inglaterra de um ato organizado pela Universidade de Essex sobre Fernando Pessoa, quando falei sobre a influência do poeta no Brasil. No mesmo ato, o escritor inglês Francis King lamentou que Pessoa tivesse abandonado o idioma inglês para escrever, depois de algum tempo, somente em português.
Dir-se-á que Pessoa, como acontece nos casos de extrema excelência num setor, virou mito. E mito continuará sendo. A realidade onipresente e indestrutível tem sempre contrabalançado o possível efeito desgastante do mito. Diga-se que também o mito é necessário, sem ele nada existe que dure. No seu livro, "Fernando, rei da nossa Baviera", discorre Eduardo Lorenço sobre o mito e registra, a respeito do assunto, uma definição do próprio Fernando Pessoa: "O mito é o nada que é tudo".
Eduardo Lorenço coloca o fim do império português ainda no século XIX até os princípios do século XX. Pergunta Lorenço: "Como ser o Camões de um Império extinto, o D. Sebastião de um futuro improvável e necessário para sair de um abismo bem mais fundo do que a antiga e vil tristeza?"
A nostalgia do Império, provocada pela derrota de Dom Sebastião em Alcácer-Kibir, perpassou desde então por toda a literatura portuguesa, dos sermões de Vieira aos poemas de Fernando Pessoa. Neste, a nostalgia se multiplicou e atingiu o Pessoa-Caeiro e mais o Pessoa-Campos, o Pessoa-Reis, todos ligados ao Pessoa-Pessoa, tentando - ou não tentando - ser o poeta de um mundo morto, ou prestes a morrer, ou milagrosamente ressuscitado, e conseguindo essa coisa espantosa, que só os poetas conseguem, que foi lançar a comunidade lusitana - com sua presença de gente, idioma, presença gritante na terra, factibilidade, compaixão e o sentimento cada vez mais ampliado de que "Navegar é preciso" - lançar o mundo criado pelo português, repito, para um futuro que, mesmo sem Império nem sebastianismo, aplica a vocação universalista de um povo civiliza dor.
"Navegar é preciso" foi lema e foi realidade. Portugal tomou conta do mar e seu poeta épico foi um poeta do mar. Não somente em seus versos, mas também na vida que levou. Pouco se sabe de viagens fora de suas regiões natais seja de Homero, Virgílio, Shakespeare ou Milton. No caso de Camões, não. Navegar era preciso, e ele navegou. Atravessou os grandes oceanos, foi além da ponta Sul da África, esteve na Ásia, a tradição o coloca, inclusive, em Macau, chegou a mergulhar com seu poema no mar.
Para Fernando Pessoa, o mar surgia como base de um Império e do avanço de um povo. O livro em que foi mais Pessoa - independente de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - chamou-se "Mensagem" e é nele que avulta a importância do Quinto Império para o poeta. No poema nº X da parte II de "Mensagem" , Pessoa interpela o "Mar português": "ó mar salgado, quanto de teu sal/ são lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar! // Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena."
Dom Sebastião seria o herói de Fernando Pessoa em sua luta para manter um Portugal mítico, para ele real. A prosa do poeta, instigante como sua poesia, fala na diferença entre o mar para Portugal e o mar para o inglês. Diz: "Viagens marítimas como as de Drake, Forbisher, Cooke e outros semelhantes são tão insignificantes na sociologia da descoberta (seria melhor para o inglês nunca mencioná-las absolutamente) seria mais sábio patriotismo da parte dos ingleses omitir qualquer referência a eles, exceto como incidentes nacionais de um impulso estrangeiro. Política, e não navegação, é contribuição inglesa à substância da civilização. A Inglaterra só descobriu o mar depois que lhe mostraram onde ele estava."
E, dando um ponto final à sua "Mensagem", reafirma a lusitanidade do mar: "E ao imenso possível oceano / Ensinam estas Quinas, que aqui vês, / Que o mar com fim será grego ou romano: / O mar sem fim é português."
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"Estranho estrangeiro: uma biografia de Fernando Pessoa", de Robert Bréchon, tradução de Maria Abreu e Pedro Tamen, é edição da Editora Record.
Tribuna da Imprensa (RJ) 18/11/2008