Apresso-me em tranqüilizar os que temem que, nas linhas abaixo, eu venha a expor uma intrincada trama, segundo a qual o presidente eleito Obama trabalhou sob identidade falsa na Petrobrás e agora seu primeiro plano de ação, em conluio secreto com os interesses petrolíferos do antecessor, é invadir o Brasil e levar com ele nosso precioso pré-sal. (Falar nisso, o jornal bem que podia pautar alguém para descobrir o que é pré-sal, porque só se fala nele, mas, ao que parece, ninguém sabe bem do que se trata - existirá alguma água no mar anterior ao sal, ou qualquer coisa assim, triste ignorância?)
Não, não tem nada conspiratorial hoje, aliás lamentavelmente, porque confesso que sou meio chegado a pelo menos um complozinho engenhoso, costumo acreditar em tudo o que me contam. Imagino que o olhar de quem escreve romances acaba ficando meio torto, prestando atenção em coisas que outras pessoas nem notam. Estou pensando em todo o oba-oba internacional e brasileiro por causa da eleição de Barack Obama. Aqui, li e ouvi coisas que ficavam apenas um pouco abaixo de quem anunciava a chegada de um Messias, o mundo subitamente virou um lugar decente porque ele foi eleito.
Foi bonito ele ser eleito, concordo. Mas foi bonito principalmente por causa do muito de feio que houve antes. Nós costumamos bater no peito mestiço com vergonha de termos sido o último país (não fomos, até mesmo porque a escravidão ainda é legal em alguns países e praticada inclusive aqui, no Brasil) a abolir a escravidão. Esquecemos que, até bem pouco tempo, negros americanos não votavam, não freqüentavam escolas ou universidades brancas, eram, certos Estados, proibidos de casar com brancos (já na década de 60, um casal foi condenado a dois anos de cadeia por ela ser branca e ele ser negro), às vezes não encontravam um lugar onde fazer xixi numa cidade negra como New Orleans, esquecemos que não vemos soldados negros nos filmes deles sobre a Grande Guerra porque as Forças Armadas deles só foram integradas durante ou logo depois da Guerra da Coréia, que o reverendo Martin Luther King lutou para tirar da lei aquilo que discriminava sua raça e por aí vai. Esquecemos até mesmo que, para quem conhece inglês americano razoavelmente, se sabe logo se quem está falando no rádio é branco ou negro, excetuados os casos em que o sotaque é estudadamente mudado. E o apartheid foi tanto que o antigo inglês "errado", "degenerado" ou "corrupto", falado pelos negros, adquiriu autonomia e acabou reconhecido como um ramo legítimo do inglês do qual se originou, o chamado Black English. Hoje é tido pelos lingüistas como um dialeto, com suas próprias regras e usos corretos.
Então realmente o progresso foi colossal, indescritível, para esta que é a única verdadeira raça, a raça humana. Não há o que discutir sob esse ponto de vista. Só que esse triunfo, que não é somente dos negros, mas de toda a humanidade (desculpem, mas não consigo resistir a um parêntese impertinente; não é verdade que eles foram o primeiro grande país do Ocidente a eleger um presidente negro; pelos critérios deles - uma gota de sangue negro faz um negro - acho que todos os nossos foram negros desde Deodoro, tirantes aí o general Geisel e o general Médici, os únicos que agora me vêm à cabeça), não se estende além desse campo. E já é campo suficientemente vasto e valioso para justificar grande atenção para ele.
Em outros campos, deve-se lembrar que, antes de ser negro, Barack Obama é homem. E, depois de homem, é americano. Os negros de nações diferentes são tão irmãos entre si quanto um branco francês de um branco alemão, vizinhos da mesma raça que sempre se detestaram e se consideram absolutamente diferentes em tudo, se duvidar até na cor. Até agora mesmo, num congresso literário realizado no Recife, escritores de países africanos se revelaram de saco cheio dessa besteira de Mama África e de serem apresentados sempre de bolo, como "escritores africanos". E é verdade, o que existe lá são dezenas ou centenas de nações diversas entre si, num continente enorme e complexo, chegando mesmo a ser um insulto o sujeito abrir a boca e falar em "cultura africana", como se lá só houvesse uma cultura, tudo "cultura de negro".
Portanto Barack Obama só é irmão dos negros brasileiros em Cristo. E aí somos todos, pelo menos os que crêem em Cristo. E os que conhecem rudimentos da antropologia física contemporânea sabem que raça não quer dizer nada em termos biológicos e pesquisas comprovaram fatos surpreendentes, tais com o de Daiane dos Santos provavelmente ser muito mais "branca" do que alguns que são tidos como negros claros ou morenos. Barack Obama é homem, americano, presidente e democrata. Os democratas sempre tiveram uma política externa fechada aos interesses de gentinha como nós, pois são dados a protecionismo comercial, a subsídios agrícolas e a outras políticas prejudiciais a nossos interesses e benéficas aos interesses deles. Como Barack Obama não é irmão de ninguém aqui, vai fazer o que achar melhor para os americanos, porque é esse o papel dele. Se por acaso o que ele resolver também for bom para nós, ele faz. Se for ruim, faz do mesmo jeito, é claro.
Portanto, solto foguetes a uma pisadela maiúscula nesse atraso de vida que é a noção de raça, mas não solto foguete nenhum a mais um presidente americano de quem ainda não vi nada. Foi assim que, ao pensar nele, pensei no pré-sal, que já resolveu tudo, embora ninguém saiba direito o que é, como é que se vai chegar lá e nem mesmo se o petróleo será a fonte de energia que é hoje, daqui a uns 15 anos, quando se calcula que ele poderia entrar em produção. Verdade, mas é domingo e sejamos otimistas: tanto Obama quanto o pré-sal nos salvarão. Vão esperando aí.
O Globo (RJ) 16/11/2008